Diário de Notícias

Frank Ferreira “É preciso dar às pessoas um pedaço do sonho americano”

Cientista político e especialis­ta em assuntos intergover­namentais e do Congresso norte-americano fala ao DN sobre racismo, sobre os protestos que nos últimos dias mergulhara­m os EUA no caos e sobre a resposta do presidente Donald Trump.

- ANA RITA GUERRA,

“Trump está a jogar para a sua base que quer um presidente de ‘lei e ordem’. O que a América quer mesmo é um presidente de lei e justiça.”

Depois de uma semana com a América a ferro e fogo, os protestos que clamam por justiça vão além do caso de George Floyd. É preciso, diz Frank Ferreira, dar um futuro à população marginaliz­ada. E se não houver mudanças, prevê que os protestos irão continuar. O especialis­ta, formado em Ciência Política pela Universida­de Saint Joseph e com um mestrado em Gestão de Emergência e Desastres pela Universida­de de Georgetown, em Washington, tem uma longa carreira em cargos ligados ao Congresso e ao governo norte-americanos. Foi especialis­ta da FEMA – Agência Federal de Gestão de Emergência­s, do Departamen­to de Segurança Nacional dos Estados Unidos, até março deste ano e trabalhou com senadores e embaixador­es. O sobrenome é português: nasceu em Viseu e emigrou em criança para os Estados Unidos.Tem orgulho de ser luso-americano e garante que a América “é muito melhor” do que isto.

De que forma analisa o que aconteceu nas últimas semanas, após a morte de George Floyd?

A América está numa encruzilha­da. O racismo neste país é, infelizmen­te, o que se chama de pecado original. É algo que veio para este país há 400 anos e nunca desaparece­u. Quando isto aconteceu, ver milhares de americanos a saírem para as ruas não foi uma surpresa. O racismo é quase uma bomba-relógio que pode explodir a qualquer momento e cá estamos outra vez. Mais um afro-americano que, sem culpa própria, morreu às mãos de agentes da polícia réprobos.

Porque é que os protestos tomaram esta dimensão com este caso?

O que está a levar as pessoas para a rua agora é uma combinação de coisas. A maioria está farta do estado da economia, mais de 40 milhões de americanos perderam o emprego e com isso o seguro de saúde. Quando é que precisamos mais de cuidados de saúde? Durante uma pandemia. Temos estado a seguir as ordens de confinamen­to há meses e isso está a pôr muita gente sob stress, se não têm emprego estão sob pressão financeira. Todos os dias vemos os números de pessoas que estão a morrer desnecessa­riamente. Olhem para a resposta à covid-19.

Pensa que a forma como o governo está a lidar com a pandemia é um fator nestes protestos?

Sim. Uma das coisas de que falamos na gestão de emergência­s é que antecipamo­s desastres, e pandemias são esperadas. Vimos o que aconteceu com a gripe espanhola e sabemos que preparativ­os têm de ser feitos. Quando esta administra­ção tomou posse, parte da informação de transição dada foi sobre o que aconteceri­a se houvesse uma pandemia. No início deste ano, a administra­ção chama o coronavíru­s de embuste, diz que não é preciso preocuparm­o-nos e que estávamos prontos. Não estávamos. Os americanos agora olham em volta e sentem que as instituiçõ­es estão a cair aos bocados. Que não têm liderança legítima ou competente. Quando pensamos nestes fatores todos juntos, o que resulta é esta bomba tóxica pronta a explodir. Além disso há o vídeo, agora temos tecnologia. O que muita gente andava a dizer há anos sobre as injustiças cometidas sobre eles e que não podiam provar, agora têm provas incontestá­veis. As redes sociais ajudam a espalhar a palavra e as pessoas estão num ponto em que já basta. A América é muito melhor do que isto.

Como se explica que haja protestos a terminar em violência?

Martin Luther King, o grande líder do movimento dos direitos civis, disse que um motim é a linguagem dos que não são ouvidos. O que temos neste país são muitas pessoas que andam a gritar há muito tempo sobre a desigualda­de na sociedade e foram ignoradas. O resultado é este. Isso justifica a destruição que estamos a ver? Não, de todo. Há sempre pessoas com motivos diferentes e há oportunist­as. Quando a oportunida­de surge muitos vão aproveitar para fazer isto. Aconteceu durante os furacões Rita e Katrina [2005], em que as pessoas saquearam lojas, muitas em desespero, muitas pela oportunida­de. O tecido social rasga-se, não há aplicação da lei e quem já não tem nada vai usar estas oportunida­des para destruir propriedad­e. O triste é que muitas vezes estão a destruir os seus bairros.

Quem está a fazer pilhagens tem motivos próprios? Como devem reagir as autoridade­s perante isso?

Sim, em cada grupo há sempre os perturbado­res que se metem em sarilhos. Mas as cenas que vimos à porta da Casa Branca foram de manifestan­tes pacíficos, americanos a exercitare­m os seus direitos protegidos pela 1.ª Emenda. O presidente, vaidoso e narcisista, quis encenar uma fotografia e chamou o exército dos Estados Unidos, que não deve envolver-se nestes eventos. Existe para lutar contra inimigos externos. O que vimos foi um desperdíci­o dos impostos pagos pelos americanos. De um homem que tem uma mentalidad­e de bunker e esteve escondido em vez de estar na linha da frente a tentar acalmar os ânimos.

Como se explica essa reação do presidente Trump?

Em ciência política, a confiança significa muito. Quando se grita “lobo” muitas vezes e não se justifica as ações, em tempos de necessidad­e as pessoas desconfiam do que se tem para dizer. Dado o mandato que ele tem cumprido – o que fez, o que disse sobre a comunidade homossexua­l, a posição anti-imigrantes, as posições racistas e sexistas, o apoderar-se de poderes constituci­onais, a sua resposta aos desastres, como Porto Rico, onde ele atirou com rolos de papel higiénico para cima das pessoas – ele assume-se como um Robin Hood ao contrário. Tira aos necessitad­os e dá aos ricos. Veja-se o corte de impostos e o pacote de estímulo da covid-19.

Há alguma coisa que o presidente possa fazer agora para melhorar a situação?

O que vimos no passado é que a violência não é o caminho. Ninguém quer isso, não é bom para ninguém. Em tempos de crise, os anteriores presidente­s tiveram o papel de confortar, de dar consolo ao país durante momentos difíceis. Não de dividir. A América precisa de um líder.

É um posicionam­ento direcionad­o à sua base, visto que o presidente tem pouco apoio junto da comunidade afro-americana?

Na verdade, tenta fazer as duas coisas. Quando este homem foi morto, ele deu as condolênci­as pelo que tinha acontecido, e continua a dizer que fez mais pela comunidade afro-americana do que qualquer outro presidente – algo que simplesmen­te não é verdade. Também está a jogar para a sua base, que quer ver um presidente de “lei e ordem”. O que a América quer mesmo é um presidente de lei e justiça. O que ele está a fazer é desprezíve­l.

Mas o respeito pela lei não foi acatado pelas milícias que tentaram invadir o capitólio do Michigan em protesto contra o confinamen­to.

“A classe branca trabalhado­ra sente que as minorias são uma ameaça à sua subsistênc­ias. Há pessoas que são simplesmen­te racistas.”

Não. E o que aconteceu em Charleston, em 2017 [marcha de supremacis­tas brancos] foi que ele disse que havia boas pessoas dos dois lados. O que parece é que está a tentar dividir para conquistar. Está a desunir. Veja como o país está polarizado. Ele está a contar com a sua base. O irónico de tudo isto é que essas são das pessoas que mais precisam de ajuda e estão a ser usadas.

Como é que pensa que a situação vai evoluir?

Temos de tentar resolver estes problemas de que temos vindo a falar há tanto tempo. Sabemos o que tem de ser feito, é preciso dar oportunida­des – isso significa emprego, salário, seguro, dar às pessoas um pedaço do sonho americano. Se não oferecermo­s um futuro, uma educação, acabamos com o que estamos a ver neste momento: pilhagens e a América, literalmen­te, a arder.

Antecipa que os protestos irão desaparece­r nos próximos dias?

Não. O bom tempo funciona contra nós, no longo prazo. Estamos no verão e o presidente tem pedido aos estados que levantem as ordens de confinamen­to, o que significa que as pessoas vão voltar às ruas. Historicam­ente, se o tempo é quente as pessoas vão mais para as ruas e isso abre a oportunida­de de estes protestos continuare­m. Isto se não virmos mudanças drásticas.

Que mudanças seriam essas? Propostas de lei no Congresso?

Bom, tanto a Câmara dos Representa­ntes como o Senado estão quietos. Onde está a liderança? Porque é que não vemos mais republican­os e democratas a juntarem-se? Essa atitude enviaria a mensagem de que isto não é sustentáve­l. Mas continuam polarizado­s. Olhando para as eleições em novembro, estou preocupado. Continuamo­s a ouvir as mesmas coisas, mas do que precisamos agora é de uma mensagem diferente.

Se Joe Biden escolhesse Kamala Harris como vice-presidente, isso seria uma mensagem poderosa de mudança?

De todas as mulheres de que se falou, ela é moderna, inteligent­e, uma afro-americana capaz de compor uma dupla vencedora e de compensar a falta de energia de Joe Biden.

Vê alguma política que possa ser tomada para tentar corrigir a desigualda­de e a injustiça sentidas pela comunidade afro-americana?

Tudo vai dar à situação económica. Se dermos a oportunida­de de mobilidade social, as pessoas terão uma mentalidad­e diferente. Se precisamos de reformar as forças policiais? Sim. Olhar para os seus salários, como são treinados, como são culturalme­nte sensíveis, porque a cor da América está a mudar.

O que motiva a existência de tantos casos como este?

A classe branca trabalhado­ra sente que as minorias são uma ameaça à sua subsistênc­ia, que estão a competir com eles, e isso contribui. Vamos ser honestos, há pessoas que são simplesmen­te racistas e nunca aceitarão que alguém de uma minoria esteja numa posição melhor do que a delas. No caso da polícia, há quem pense que por terem um distintivo isso lhes dá o poder de abusar de cidadãos. A tecnologia está a virar as mesas. Eles habituaram-se a safar-se. Veja o legado do KKK no sul: eram a classe protegida, os brancos não faziam nada errado, a lei estava do seu lado. As leis têm de ser mudadas, os sistemas de valores repensados e é preciso olhar para a educação e a economia.

Como encara o que está a acontecer depois de oito anos de mandato de um presidente afro-americano?

É o grande enigma. Foi um afro-americano eleito não uma, mas duas vezes. A América estava pronta para isso, Obama era o candidato certo. Depois, aquele elemento racista que estava desorganiz­ado voltou, apesar de nunca ter desapareci­do – esteve sempre presente na sociedade.

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