Diário de Notícias

Isabel Stilwell “O rei D. Manuel I era um sonso”

Ao nono romance, tem pela primeira vez um protagonis­ta – mesmo que ladeado por duas mulheres – em vez das rainhas que a tornaram a autora de romances históricos mais vendida em Portugal. São 640 páginas sobre uma época que ainda hoje causa muita polémica.

- JOÃO CÉU E SILVA

Há um tema que raramente está ausente nos romances históricos de Isabel Stilwell em cenário de fundo ou até como elemento da ação: as epidemias. Por isso, pergunta-se-lhe se agora, após esta pandemia de covid-19, será mais fácil descrever o ambiente e ter uma melhor compreensã­o da parte do leitor. A resposta é: “Claro que sim. Há até neste

D. Manuel I – Duas Irmãs para Um Rei um capítulo em que D. Manuel e João Manuel estão a experiment­ar o vinagre em tempos de peste porque os ladrões usavam-no para retirar os anéis dos dedos dos mortos, ou o facto de D. Leonor não vir a Lisboa durante quase trinta anos e o Alentejo como lugar para onde se foge porque é onde há menos peste – situação que se repete. Será muito mais fácil compreende­r esse ambiente, o que até me acontece quando vejo as conferênci­as de imprensa e recordo o que escrevi. É uma repetição da história.”

Pode dizer-se que o leitor fica com mais conhecimen­to histórico após a leitura destas 600 e tal páginas? “Creio que sim, e é isso que me dizem sobre todos os meus livros. Que visitam palácios e museus e sabem o que lá está e porque está lá, bem como decifrar o presente ao perceber de onde vimos.”

O lançamento de D. Manuel estava previsto para abril mas teve de ser adiado devido ao fecho das livrarias. Será que os livros perderam espaço na vida dos leitores ou vão regressar com a mesma força? “Notei uma grande diferença na pré-venda entre o

D. Maria I (2019) e este D. Manuel, pois os leitores deram um salto gigante no uso da internet para compra de livros. Não há comparação com agora, já que nas últimas semanas autografei mil livros em pré-venda e antes não seria mais do que um terço. Esta é uma boa notícia para o livro físico e para quem o encomenda e recebe em casa, mas não para as livrarias”, diz.

Este é o primeiro romance em nove que não é dedicado a uma rainha. O que aconteceu?

Primeiro, porque gosto de experiment­ar coisas novas. Segundo, achei que este reinado de D. Manuel I e destas duas rainhas não seria apenas a voz de um homem mas também as das mulheres da vida dele.

Como foi encontrar a sua voz masculina?

Não foi logo, mas ajudaram-me muito os cronistas – eram todos homens – que deixaram registos escritos, tornando mais fácil entrar na voz do homem.

Rivalizar com as palavras de Garcia de Resende, Rui de Pina e Damião de Góis não deve ser coisa fácil.

Pelo contrário, até foi divertido. De qualquer modo não queria rivalizar com os cronistas, antes usar de algum modo as suas descrições, que atribuo aos próprios pois são personagen­s do livro. Tento com os dois primeiros quase citá-los e ir buscar frases suas por ser um olhar contemporâ­neo muito precioso.

Para os livros anteriores existiam crónicas assim?

Havia sim, no D. Amélia tinha os diários da própria, em D. Maria as cartas aos filhos e deles para ela, e os diários dos embaixador­es. Textos que são quase biografia, mas que deixam mais margem para a ficção.

Até que ponto estes cronistas eram “ficcionist­as”?

Acho que eram, sabemos que a voz imparcial e neutra não existe. Rui de Pina está num determinad­o tempo a fazer a crónica do patrão e sabemos que ele é um grande admirador de D. João II. Quando fala de D. Manuel é de maneira diferente – não é quem mais admira. Garcia de Resende é um bajulador. Mas, conhecendo bem esses relatos, podemos retirar algum do enviesado naquilo que escreveram.

Na bibliograf­ia que leu encontrou novas visões ou nada tem sido acrescenta­do ao que se escreveu?

Existe sim, como no historiado­r François Soyer, que publicou um livro sobre D. Manuel e os judeus em Portugal, com uma visão muito crítica sobre os historiado­res portuguese­s mais tradiciona­is sobre essa época. Não só no caso da expulsão dos judeus e dos mouros, como também dos cristãos-novos que vinham fugidos de Castela. Senti que era um olhar muito diferente e que dá uma perspetiva mais refrescant­e. Existe uma história mais elogiosa de D. Manuel e outra, como a de Oliveira e Costa, com alguma distância. Coexistem várias versões, mesmo que se registe frequentem­ente a versão do Afortunado, mas quem herda o que D. João II deixa tem um problema. Ele continua a obra e tem a inteligênc­ia para o fazer mesmo sem ser muito criativo. Ou seja, foi um bom aluno, é um hiperativo a trabalhar e, não tendo a força do antecessor, apresenta-se mais humano e sensível, misturando enquanto rei várias contradiçõ­es, afinal é muito vaidoso, narcísico e convencido de que tem uma missão divina.

Considera que foi capaz de dar uma nova perspetiva histórica de D. Manuel ou já nada há para inventar?

Não sou historiado­ra, o que faço é dizer “o meu Manuel”, “a minha Maria” ou “a minha Isabel”, porque tenho a consciênci­a de que é a minha visão. No entanto, acho que se consegue encontrar um D. Manuel muito completo por ser visto de fora: de Castela, da mãe para o filho, de Inês que faz a voz do cristão que discorda no que respeita à questão dos judeus…

Esse é um tema muito polémico no romance!

Nem sempre existia um grande consenso sobre esta última questão e o bispo do Algarve levanta-se várias vezes nas cortes para dizer que converter uma pessoa à força é contra tudo. Essa voz do não consenso é interessan­te pois estamos habituados a achar que todos concordara­m na decisão de expulsar os judeus, um assunto que se repercute ainda hoje com os sefarditas em Portugal, e o livro pode dar uma visão mais completa. Temos uma história dos Descobrime­ntos que é bipolar: somos os melhores do mundo, nunca tratávamos mal os outros, não somos colonialis­tas como tantos; depois existe a outra versão, muito absurda, a de que nada descobrimo­s, ou a visão do politicame­nte correto, de que não houve aventura nem coragem e que foi tudo uma violência.

Falta enquadrar no tempo?

Em relação à expulsão de judeus e de mouros tendemos a dizer “naquela altura”, como se as pessoas não tivessem consciênci­a, não houvesse bem e mal. É uma página vergonhosa de D. Manuel e escamoteam­os tudo, atribuindo a pressões dos reis de Castela. É mais papista que o Papa e responsáve­l pela expulsão tanto de judeus como de mouros. Aliás, estes foram tão expulsos como aqueles e ninguém fala deles.

Diz no romance que D. Manuel acredita que será uma “medida popular”. Estava entusiasma­do?

Claro, tal como com a conversão. Ele tem um objetivo, o de ir recebendo bulas papais para poder catequizar e converter os infiéis dos outros países e questiona-se como “é que poderei ser imperador do novo mundo se no meu país o Papa pode dizer que tenho judeus e mouros”. É um homem muito prático...

Capaz de fazer uma limpeza étnica?

Não chega a ser limpeza étnica, porque basta batizar, dar-lhes 20 anos para ninguém indagar a fé… É uma situação bastante hipócrita e de estratega.

A polémica em torno da palavra Descobrime­ntos deu-se enquanto escrevia o livro. Alterou-lhe algo?

Não, mas tive consciênci­a de que muito do que foi escrito sobre, por exemplo, Afonso de Albuquerqu­e, faz que não consigamos achar que o processo foi minimament­e suave. Éramos pequenos, estávamos distantes, e ou metíamos medo ou notava-se a desigualda­de de forças. Mas aqui não podemos fazer um julgamento dos métodos utilizados como se fosse hoje – não há pior do que a história lida à luz da atualidade.

A religião foi muito usada para justificar esse lucro?

D. Manuel quer os dois lados: enfraquece­r os infiéis, conquistar Jerusalém, destruir Meca. Ser o único rei mago do Ocidente, o que parte de Belém e vai resgatar tudo; há um fervor messiânico e até se incompatib­iliza com Albuquerqu­e por este não se preocupar com a fé, mas em todos os documentos se percebe que ele está preocupado é que os navios venham carregados com especiaria­s. D. Manuel era um sonso, basta ver quando escreve para Veneza a dizer “devem estar muito contentes porque agora há pimenta a um preço mais baixo e podem vir buscá-la a Lisboa”, arruinando o negócio deles.

Não podemos deixar de fazer a velha pergunta: para onde foi tanta riqueza?

Exatamente, esta e a dos fundos comunitári­os. O que vamos ver nos reinados seguintes é que escoou toda por Lisboa e não retivemos nada. É evidente que D. Manuel fez muitas obras e por todo o lado, na música e na cultura, mas a fonte era externa e nunca se tornou interna. Esta gente toda quer embarcar desde o tempo do Infante porque Portugal era um país pequenino e pobre e não pela glória. Eles metiam-se naquelas cascas de noz porque os Descobrime­ntos eram uma forma de emigração e foi a pobreza que nos fez tão aventureir­os.

D. Manuel é a figura central, mas coexiste com duas mulheres. Como foi estruturar esta tríade?

Foi um desafio porque há menos informação sobre elas. A que existe chega-nos porque são filhas, mulheres ou mães de homens poderosos. No caso de Isabel é mais fácil porque esteve sempre ao lado da mãe, herdeira e com bastante atenção da parte dos cronistas. Sobre D. Maria consegue perceber-se pouco pelos cronistas, no entanto, como os filhos falam da mãe, existe matéria para conhecê-la melhor. Aliás, D. Manuel recusa duas vezes casar-se com ela, mesmo que tenha um perfil mais de acordo com um homem vaidoso do que Isabel.

Escreve que “a rivalidade entre Portugal e Castela podia estar adormecida mas seria preciso muito mais do que um casamento para a fazer desaparece­r”. É uma frase bem real?

É muito autêntica porque quando se dá o casamento de D. Afonso com D. Isabel, o embaixador está sempre a dizer “estão a tentar fazer melhor do que nós e com dinheiro que não têm”. Este olhar dos embaixador­es que acompanham as rainhas é sempre bastante trocista sobre a nossa situação. Não é como disse recentemen­te o ministro holandês, mas é quase! Gastamos o que não temos e só quando chega a riqueza com D. Manuel é que os Reis Católicos pressionam para que ele case com D. Maria.

A questão da união ibérica passa muito pelo romance. Acredita nessa possibilid­ade?

Acho que não. A união económica já existe, com tantas multinacio­nais com sede em Madrid, mas a nível político já lhes chega as dores da cabeça para manter o reino unido que não precisam de mais problemas.

A desavença ibérica ainda entusiasma os leitores?

Creio que sim, embora se perceba que é um pouco artificial esta nossa divisão porque não só os nossos falam todos castelhano como a corte anda de cá para lá e de lá para cá como se estivessem em casa. Não há sensação de ir para o estrangeir­o. O que é mais interessan­te é que os Filipes são tão portuguese­s e castelhano­s como era D. Sebastião, pois casam todos entre eles. Se é pelo sangue, e ele é tão importante, o que corre de um lado e do outro é igual.

“Em relação à expulsão dos judeus e dos mouros tendemos a dizer ‘naquela altura’, como se as pessoas não tivessem consciênci­a, não houvesse bem e mal.”

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D. MANUEL I – DUAS IRMÃS PARA UM REI de Isabel Stilwell Editora Planeta 640 páginas
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