Polícias africanos confinados na escola
“Foram todos para casa menos nós”–
Quarenta e quatro cadetes africanos a estudar na escola de oficiais da PSP não puderam regressar a casa devido à pandemia de covid-19, como os camaradas portugueses. Fizeram da academia o seu lar, uniram-se, venceram a solidão e até estão a escrever um livro.
Foi no dia do seu aniversário, a 13 de março, que a cadete Elisabete Fernandes ouviu o diretor da academia de oficiais da PSP anunciar que, por causa da pandemia, as aulas presenciais iriam terminar e que os alunos teriam de ir para suas casas. Todos menos ela e os outros 43 cadetes da comunidade de países africanos de língua oficial portuguesa (PALOP) a estudar no Instituto Superior de Ciências Policiais e de Segurança Interna (ISCPSI) para serem oficiais de polícia em Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe. Não puderam regressar aos seus países nem ir ter com as suas famílias como os camaradas portugueses. “Foram todos para casa menos nós”, escreveram no Facebook numa mensagem de saudade aos professores.
Estão confinados na escola há quase três meses e assim vão continuar até ao final do ano letivo e puderem viajar. “Inicialmente vi-me confrontada com uma mistura de sentimentos como a saudade, a incerteza, a impotência e a vontade de lutar contra a covid-19, que veio e alterou tudo. Mas depois pensei: esta é a minha casa. Claro que gostaria mesmo era de estar no meu Cabo Verde, mas cada coisa a seu tempo”, testemunha Elisabete, 30 anos, que veio da ilha de Cesária Évora (São Vicente), onde tem o seu filho de nove anos.
Falamos todos os dias mas a saudade física dói muito”, confidenciou ao DN a agente da polícia que decidiu integrar esta força de segurança depois de ter perdido um amigo num período em que o seu país sofreu uma onda de violência entre jovens.
O diretor do ISCPSI, superintendente-chefe Bastos Leitão, reconhece que se sentiu um pouco apreensivo sobre qual seria a reação dos cadetes quando os informou da reviravolta nas suas vidas, naquela que foi a última vez que todos os alunos e professores estiveram juntos. Guarda a memória desse dia 13 de março e da reação positiva. “Disse-lhes que era a primeira vez em 36 anos de carreira que via o país em estado de emergência e que tinham de ficar confinados. Não podiam sair para ver amigos nem a família. Senti logo uma enorme adesão e sentido de responsabilidade de todos”, conta.
O livro dos desabafos
A psicóloga Isaura Almeida tem acompanhado de perto os polícias africanos nestes dias difíceis e subscreve “a enorme maturidade e responsabilidade” que estes jovens cadetes demonstraram. “Os sentimentos de ansiedade natural acabaram por provocar um aumento do estado de vigilância que se tornou muito positivo, reforçando a adoção de comportamentos preventivos e atitudes responsáveis e protetoras”, sublinha a especialista comportamental da academia da PSP. Nestes dias notou que “o sentimento de solidariedade, entreajuda e apoio revelaram-se excecionais” e assinala “um fortalecimento significativo
“A minha vida é um rascunho. O destino depende do meu empenho, vagas e antiguidade.”
ALBERTO ABUDO, 4.º ANO
Moçambicano “Vi-me confrontada com uma mistura de sentimentos. Saudade, incerteza e vontade de lutar.”
ELISABETE FERNANDES, 1.º ANO
Cabo-verdiana
no relacionamento interpessoal”.
Houve “momentos mais críticos” como aqueles em que familiares morreram e era impossível viajar para ir ao funeral e consolar os entes queridos. “Nesses casos, os sentimentos de tristeza foram os mais evidentes e, em consequência, promoveu-se um apoio e acompanhamento mais próximo e regular. Foi estabelecida uma rede que ajudou a suportar e a aliviar o sofrimento individual e, neste momento, esses alunos estão a fazer o seu processo de luto da forma mais ajustada possível”, afiança Isaura Almeida.
Há umas semanas a psicóloga pensou numa forma de animar o grupo e lançou um desafio a todos os cadetes confinados, além dos africanos, também os portugueses em casa: escreverem um livro, onde cada um pudesse desabafar sobre o que tinha sido a sua experiência nestes dias. “Pensei que ninguém ia ligar nenhuma, mas ao fim de poucos dias tinha textos, em prosa e em poesia, de mais de 80% dos alunos.”
Presos num lugar de portas abertas
Logo a partir da “infinita primeira semana”, como a designou Elisabete no seu contributo para o livro, a preocupação com a segurança de todos era uma constante e também, como frisou o são-tomense Abdoulay Neto, “a determinação em não pôr em risco tudo o que a escola estava a fazer” por eles. Foram definidas regras de circulação no edifício, segregação de espaços, funcionários por um lado e alunos por outro, os alojamentos vagos dos portugueses serviram para acolher os cadetes africanos e, salvo raras exceções, cada um ficou com o seu quarto. “É como estar preso num lugar de portas abertas”, diz Abdoulay, de 26 anos.
Francisca Costa veio de Benguela e temia que “fosse mais duro ter de ficar fechada” na escola durante tanto tempo. “Mas com a ajuda de todos, o convívio e o apoio da escola, estamos todos a superar”, sublinha esta angolana de 26 anos. “A pandemia e o confinamento são duros fisicamente, mas espiritualmente há sempre algo que nos ajuda: da minha janela foquei-me no cantar dos passarinhos em que nunca tinha reparado. Todos os dias ali estavam.”
Moçambicano de Nampula, Alberto Abudo já está no quarto ano e sente falta “dos abraços, dos risos” de irem “estudar para os quartos uns dos outros”. Assume a enorme responsabilidade de ser o único na sua família que trabalha e esta sua bolsa serve para ajudar a mãe, os seus dois filhos e dois irmãos menores que estão a estudar em Moçambique. Tem os pés bem assentes no chão quanto às ambições profissionais no seu país quando regressar oficial de polícia: “A minha vida é um rascunho escrito com o meu nome, o destino que vou ter depende do meu desempenho, das vagas, da antiguidade. Os sonhos podem nunca se concretizar.” Gostaria de melhorar o modelo policial em Moçambique para ser mais preventivo.
Aruna Upanasso Nau é colega de ano de Alberto. Veio de Bissau e tinha o sonho de ser professor. “No primeiro ano aqui percebi logo que estava no meu ADN esta vocação e agora sonho ajudar na segurança das pessoas no meu país.” Diz que o confinamento “foi muito melhor “do que pensou e que “ninguém ficou isolado”.
Esta cooperação com os PALOP começou em 1996 e nestes 24 anos já se formaram nesta academia 191 oficiais de polícia africanos. Em todos os países ocupam lugares de topo. Em Cabo Verde chegaram a diretores da Polícia Judiciária e da Polícia Nacional. Em São Tomé, toda a cúpula da polícia é presentemente ocupada por oficiais formados do ISCPSI da PSP”. O retorno para Portugal “é enorme”, salienta Bastos Leitão. “Cimentam-se relações de confiança que ficam para a vida, criam-se redes de apoio mútuo, de troca de experiências e conhecimentos.”
“Da minha janela foquei-me no cantar dos passarinhos em que nunca reparara.” FRANCISCA COSTA, 1.º ANO Angolana
“Houve determinação em não pôr em risco o que a escola estava a fazer por nós.” ABDOULAY NETO, 1.º ANO São-tomense
“Estava no meu ADN esta vocação. Sonho ajudar na segurança das pessoas no meu país.” ARUNA NAU, 4.º ANO Guineense
Oprimeiro estadista que recebeu um relatório científico sobre o perigo excecional das alterações climáticas foi o presidente L.B. Johnson, em 1965. O período internacional era favorável às políticas ambientais emergentes. Em 1969, nos EUA, foi aprovada a lei-quadro para a política de ambiente (NEPA) e em 1970 foi criada a Agência de Proteção Ambiental (EPA). Em 1971, Marcelo Caetano criou a Comissão Nacional do Ambiente, liderada pelo saudoso José Correia da Cunha. Em 1972, Estocolmo acolheu a primeira Conferência Mundial sobre Ambiente. Contudo, o tema das alterações climáticas era encarado como uma ameaça distante, até como uma mera hipótese académica.
Na mesma altura em que era conhecido o convite do primeiro-ministro a António Costa Silva (ACS), para que fosse o gestor da Partex e professor universitário a desenhar um plano de dez anos para Portugal – numa espécie de Blitzkrieg estratégica que ser concluída em semanas –, abateu-se mais uma tempestade de vento e granizo sobre o centro do país, mostrando a crescente normalidade de fenómenos meteorológicos extremos. No Fundão, calculam-se perdas de 20 milhões de euros na cereja. Em Armamar, oito milhões na maçã. E os prejuízos são incompletos. Enquanto ACS se desdobrava em entrevistas, a concentração atmosférica de CO2 no observatório de referência de Mauna Loa, no Hawai, indicava 417,70 ppmv (contra 414,25 no mesmo dia do ano passado). Não é preciso conhecer pessoalmente ACS para perceber que se trata de um homem inteligente, culto, com uma verdadeira sede de conhecimento, e que sabe pensar para além da sua ligação profissional ao petróleo e ao gás. O problema é que a arquitetura desenhada por ACS, e divulgada em várias entrevistas, parece ignorar que este é já o tempo da emergência climática. Há 25 anos, as linhas de força da expansiva visão de ACS fariam sentido. Hoje, num mundo com um sistema internacional que é uma bolha à espera de rebentar, e com os duros e crescentes golpes da crise ambiental e climática, Portugal precisa de um plano que esteja aberto ao melhor improvável, mas que, sobretudo, o prepare para se adaptar e resistir, com as forças próprias, no pior cenário provável.
O convite de António Costa a ACS parece-me ter duas leituras. Por um lado, desautoriza ministros e peritos do Governo, espelhando a sistemática degradação da capacidade pública de planeamento estratégico, que décadas de austeridade e mantra neoliberal causaram. Por outro lado, insere-se na longa tradição nacional, praticada por sucessivos governos, de convidar cidadãos independentes para produzirem, generosamente, sonoros documentos de política pública, que na maioria dos casos acabam esquecidos no fundo das gavetas. Neste caso, penso que ACS não apenas assinará o projeto como, sobretudo, credibilizará com o seu nome as decisões que vierem a ser tomadas com as verbas que resultem do plano europeu de recuperação. Duvido que o plano de ACS e a sua real implementação sejam criaturas semelhantes. Mas o seu autor é demasiado experiente para ignorar que também na política não há almoços grátis.
Asituação do desafio global em que nos encontramos, sem distinção das definições territoriais e políticas dos humanos, todas a enfrentar o ataque desordenado da ordem da vida, pela covid-19, vai alternando a definição e a função dos Estados, obrigados teoricamente a defender a paz geral, o direito internacional, os direitos humanos. No fim da Segunda Guerra Mundial, a complexidade de redefinição do direito e da ordem evidenciou a questão específica da relação dos EUA, grande interventor na vitória sobre o nazismo, não eliminando, porém, o desacordo bipolar entre ocidentais e soviéticos. A unidade do método europeu ocidental viria a integrar-se com os EUA, este dirigido por homens que foram popularmente apelidados de Cisnes Brancos, nem o tecido da unidade tinha alguma complexidade.
Foi por isso que o famoso Raymond Aron deixou esta observação: “Para fazer uma melhor análise das relações entre a Europa Ocidental e os EUA é necessário considerar sucessivamente os diálogos entre Roma eWashington, Londres eWashington, Paris eWashington, cada um deles diferindo do outro. Mais precisamente, é desejável separar dois problemas: a) as atitudes do Governo americano em relação à Comunidade Europeia, ou, mais facilmente, os esforços para com a unidade europeia; b) a atitude do Governo americano perante os diferentes governos europeus, em relação aos vários problemas postos. Não existe diálogo global entre a Europa como uma unidade e os Estados Unidos” (1977).
Briand, apesar dos sonhos e dos esforços, movendo-se antes do outono ocidental (1862-1932), mas procurando ganhar, ainda depois de sofrer o desastre de 1914-1918, não conseguiu realizar o seu projeto de garantia da vida habitual e pacífica. Aron já não poderia estar atento às lembranças de Churchill sobre as dificuldades que teve com a Cruz de Lorena, na paz com as intervenções de
De Gaulle na circulação da França entre a Aliança Atlântica e a NATO, com relevo para a tentativa de limitar a posse de armas atómicas, um tema de que Kissinger (Dear Henry) se ocupou (1965).
A definição do bipolarismo que durou até à queda do Muro de Berlim não evitou que o projeto global da ONU fosse publicamente enfraquecido pela chamada “diplomacia de costumes”, que prestou serviços. Todavia, a crise da pandemia que vivemos, tendo os EUA Trump como presidente, lembra os comentários de Aron, enfraquece claramente o atlantismo com o Brexit infeliz do Reino Unido e a Comissão Europeia a declarar a necessidade de organizar a defesa, talvez já adiando este projeto porque a segurança é globalmente exigida pela crise da pandemia.
Não surpreende que a dimensão da crise, obrigando à decadência económica, tornando de novo saliente o conhecimento de que a União tem uma clara diferença entre os países do sul mediterrânico empobrecido e os do norte rico dos bárbaros que destruíram o Império Romano, mas apontando para o apoio coletivo, solidário, sem esquecer as diferenças na unidade europeia, uma união que tem uma dimensão geográfica a enfrentar face à dos emergentes, mas uma ciência, uma cultura e um civismo que permitem não esquecer que nenhum dos países europeus tem capacidade de enfrentar, isolado, os desafios mundiais.
Os EUA vão levar mais tempo a compreender, se a presidência atual e a situação caótica do sul do continente se mantiverem, mas a decadência é possível se os avisos de Bismark forem esquecidos. O Brexit e os verbalismos do presidente dos EUA, que faz regressar os estudos esquecidos do Estado espetáculo, são exemplos que chamam à responsabilidade de defender e manter os modelos da União, sem perda, e que assim dão aos Estados europeus a capacidade de enfrentar a crise, num tempo em que nenhum Estado isolado terá capacidade para enfrentar e vencer a crise do globo sem o ordenamento da governança, nem à formulação do regulamento humano das migrações, lutando contra o ataque mundial da pandemia.
A leviandade de assumir que a política de solidariedade global enfraquece a valia e a realidade do Estado, designadamente quando se julga protegido por dois oceanos como se aos EUA fossem um modelo oferecido pela natureza, vai tornar a história gloriosa do país paralisado pela realidade que não se fadiga a estudar. Como disse à Presidência americana, em 1860, o chefe índio Seattle: “De uma coisa temos a certeza: a terra não pertence ao homem branco; o homem branco é que pertence à terra. Disso temos certeza... nosso Deus é o mesmo Deus. Podeis pensar hoje que somente vós O possuís, como desejais possuir a terra, mas não podeis.” É uma grave leviandade recusar a solidariedade global.
Nenhum Estado europeu isolado terá capacidade para enfrentar e vencer a crise da pandemia sem o ordenamento da governança.