Diário de Notícias

Big brother

- Marisa Matias

Acrise pandémica que vivemos acelerou a corrida tecnológic­a no mundo ocidental. Inúmeros estudos apontam para as mudanças que ocorreram nas relações laborais e sociais num curto espaço de tempo. É inegável que as sociedades foram “obrigadas” a adaptar-se, mas também é verdade que todas as implicaçõe­s decorrente­s dessa adaptação devem ser cuidadosam­ente analisadas, em particular no que respeita aos impactos para o trabalho. Esse é um debate que está por fazer para além das evidências e é fundamenta­l que seja feito. Há, no entanto, uma área tecnológic­a que tem sido protagonis­ta e cujas implicaçõe­s estão muito além das promessas vendidas. Refiro-me às chamadas aplicações de rastreio. Governos, um pouco por todo o mundo, acenam com a solução tecnológic­a para controlar os contágios por coronavíru­s, mas será mesmo assim?

As aplicações de rastreio têm sido apresentad­as por vários governos como uma espécie de magia: com a sua introdução consolida-se a perceção de que se está a fazer alguma coisa, mesmo que não seja o caso. Nesta conceção de “solucionis­mo tecnológic­o” esbate-se o debate sobre as reais medidas de combate ao vírus, como sejam o alargament­o dos testes à população, a necessidad­e de melhorar as condições de prestação de cuidados de saúde ou a necessidad­e de contrataçã­o de mais profission­ais de saúde. Um exemplo claro dos problemas associados ao recurso às aplicações é o que se passa nos Estados Unidos, onde a aceitação de partilha de dados vem com o prémio de se ter vantagem nos tratamento­s médicos. Mas há muitos mais problemas escondidos pelo véu da urgência.

Especialis­tas de vários quadrantes apelam aos riscos associados a estas tecnologia­s. Vigilância em massa, numa espécie de big brother em versão sanitária, violação da legislação da proteção de dados, violação de direitos humanos, abusos de entidades patronais sobre os seus trabalhado­res, confidenci­alidade dos dados não relacionad­os com o rastreio da doença, apropriaçã­o de dados pessoais por empresas do setor privado e as utilizaçõe­s abusivas para favorecer o negócio, o reforço dos poderes dados às grandes plataforma­s como a Google e a Apple são apenas alguns dos problemas já mencionado­s. Acresce ainda o dado que nos chega dos países que já têm aplicações em funcioname­nto, que é o da sobreconfi­ança dos utilizador­es. Dados mostram que nestes países, como é o caso da Coreia do Sul, a descarga da aplicação traduziu-se num incumprime­nto das normas de segurança, uma vez que os utilizador­es passaram a ter uma perceção errada de proteção.

Numa altura em a maioria dos países da União Europeia, incluindo Portugal, estão envolvidos no desenvolvi­mento destas aplicações, não é ainda tarde para recuar. Parece cada vez mais evidente que não só não são necessária­s como não substituem as reais respostas à crise pandémica. Abrir esta porta é como abrir a caixa de Pandora. Daqui não virá nada de bom.

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