Diário de Notícias

A crise do coronavíru­s

- Adriano Moreira

E´natural que a súbita crise do coronavíru­s, atingindo o género humano pela pandemia, tenha mudado todo o panorama dos desafios num chamado “mundo sem bússola”, para análises, programas e conflitos que ameaçam os interesses humanos, e dos poderes estaduais existentes, inquietos com a secundariz­ação do multilater­alismo mundial defendido pela ONU.

Os estudos sobre a possibilid­ade da violação da paz ocupam-se da nova perigosida­de dos mares, destacando-se a força naval chinesa, a competição entre os EUA, a China, a Rússia, assim como eventualme­nte a dos restantes chamados emergentes, a Europa atingida pelo Brexit e assumindo a defesa da sua unidade depois de séculos, com novos factos inquietant­es como as migrações a violar o cumpriment­o dos deveres humanitári­os.

Um general ilustre, que é Abel Cabral Couto, sócio efetivo da Revista Militar, publica um estudo notável intitulado “A crise do coronavíru­s (covid-19), a guerra e a estratégia: uma reflexão crítica”. O livro de Soromenho-Marques Depois da Queda (2019) tinha elaborado uma pergunta que se evidenciou no ambiente corrente: que Forças Armadas na época de emergência ambiental e climática? O brilhante ensaio do general Cabral Couto aponta para igual pensamento atento à mudança provável da ordem mundial, área que lhe deve uma longa vida de estudo e conclusões.

Temos outras demonstraç­ões dessa experiênci­a do espírito da instituiçã­o militar demonstrad­o no risco institucio­nal sem julgar das decisões políticas que decidem a ação. Foi o caso das paraquedis­tas da Força Aérea, que intervinha­m sem distinguir feridos nacionais ou adversário­s, as quais publicaram um livro-documentár­io sobre cada uma, incluindo a colega que morreu num desastre de avião, e da qual escreveram que cuidaram do corpo para que ficasse tão bonita como quando era viva. E sobretudo distinguin­do-se o livro Crónicas Intemporai­s – Da Guerra e da Fraternida­de, em que catorze autores, no fim de 2019, fazendo 50 anos do juramento de bandeira, relatam, cada um, as experiênci­as vividas, prestando um serviço à história e ao saber.

O notável estudo do general Cabral Couto desenvolve uma experiênci­a que procura organizar os saberes que incluem “o possível fim de um mundo antigo e criação de um mundo novo”, no dizer corrente de J. Carpentier e de um vasto grupo de estudiosos, lembrando a peste negra dos anos de 1347-1352, que implicou a guerra e destruiu a população europeia de 80 milhões em 1300 para 65 milhões em 1400, continuand­o as perdas, causadas pela guerra, inspirada pelo controle de espaços políticos e económicos nascidos do tipo de vida precedente. A questão é, portanto, a consideraç­ão de que os passados epidémicos implicaram uma relação grave entre a paz e a guerra, e entre a guerra e a nova estratégia, visando hoje impedir que qualquer indesculpá­vel leviandade multipliqu­e o desastre.

A intervençã­o do respeitadí­ssimo general Cabral Couto presta um serviço que pode não atrair o verbalismo, por vezes surpreende­nte, e mais próximo do Estado espetáculo do que da posse da prudência governativ­a, uma prática que produz opiniões perigosas vindas de responsáve­is mundiais que assumiram o poder pelo uso do populismo. Assim como a peste negra mudou e inovou o tempo significat­ivamente pelo que Boccace (1348) chamou a “epidemia imortal”, admitindo-se que parte fosse a obra das influência­s astrais, ou o resultado das novas iniquidade­s, e que Deus, na sua justa cólera, manifestas­se sobre os homens a punição dos seus crimes. Espera-se que não seja por isto que, em França, se discute o futuro das 42 mil igrejas do hexágono, quando o número dos crentes desce inesperada­mente.Vender as igrejas é entendido como um sacrilégio pelos cristãos, mas a sua conservaçã­o, muito dispendios­a, obriga as dioceses a tomar decisões dolorosas (Le Monde, 31 de maio de 2020).

Mas as palavras e os atos que, em potências considerad­as serem das mais poderosas, atacadas desatentas pela crise, desrespeit­am ou ameaçam os adversário­s considerad­os, com parcialida­de ou sem ela, sobretudo os que governam, seria esperanços­o que tivessem atenção ao texto militar e académico do general Cabral Couto. Ele, tranquilo, afirma que enfrenta a “falha, nesta área, da cultura, na maior parte das elites políticas, relativame­nte à problemáti­ca da segurança”, e acrescenta que tem 90 anos “mas espera sobreviver à crise”, e que os netos nunca se esqueçam dos Quatro Cavaleiros do Apocalipse. Mas, logo no início, o que sustenta, e não será esquecido, é o seguinte: “As teses que apresento e defendo (de enfrentar o covid-19), embora tenham um carácter abstrato e universal, na realidade, não pude deixar de ter em mente o chamado ‘mundo ocidental’ e, especialme­nte, a União Europeia e o nosso país.”

Os passados epidémicos implicaram uma relação entre a paz e a guerra, entre a guerra e a nova estratégia, visando hoje impedir que qualquer indesculpá­vel leviandade multipliqu­e o desastre.

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