A crise do coronavírus
E´natural que a súbita crise do coronavírus, atingindo o género humano pela pandemia, tenha mudado todo o panorama dos desafios num chamado “mundo sem bússola”, para análises, programas e conflitos que ameaçam os interesses humanos, e dos poderes estaduais existentes, inquietos com a secundarização do multilateralismo mundial defendido pela ONU.
Os estudos sobre a possibilidade da violação da paz ocupam-se da nova perigosidade dos mares, destacando-se a força naval chinesa, a competição entre os EUA, a China, a Rússia, assim como eventualmente a dos restantes chamados emergentes, a Europa atingida pelo Brexit e assumindo a defesa da sua unidade depois de séculos, com novos factos inquietantes como as migrações a violar o cumprimento dos deveres humanitários.
Um general ilustre, que é Abel Cabral Couto, sócio efetivo da Revista Militar, publica um estudo notável intitulado “A crise do coronavírus (covid-19), a guerra e a estratégia: uma reflexão crítica”. O livro de Soromenho-Marques Depois da Queda (2019) tinha elaborado uma pergunta que se evidenciou no ambiente corrente: que Forças Armadas na época de emergência ambiental e climática? O brilhante ensaio do general Cabral Couto aponta para igual pensamento atento à mudança provável da ordem mundial, área que lhe deve uma longa vida de estudo e conclusões.
Temos outras demonstrações dessa experiência do espírito da instituição militar demonstrado no risco institucional sem julgar das decisões políticas que decidem a ação. Foi o caso das paraquedistas da Força Aérea, que intervinham sem distinguir feridos nacionais ou adversários, as quais publicaram um livro-documentário sobre cada uma, incluindo a colega que morreu num desastre de avião, e da qual escreveram que cuidaram do corpo para que ficasse tão bonita como quando era viva. E sobretudo distinguindo-se o livro Crónicas Intemporais – Da Guerra e da Fraternidade, em que catorze autores, no fim de 2019, fazendo 50 anos do juramento de bandeira, relatam, cada um, as experiências vividas, prestando um serviço à história e ao saber.
O notável estudo do general Cabral Couto desenvolve uma experiência que procura organizar os saberes que incluem “o possível fim de um mundo antigo e criação de um mundo novo”, no dizer corrente de J. Carpentier e de um vasto grupo de estudiosos, lembrando a peste negra dos anos de 1347-1352, que implicou a guerra e destruiu a população europeia de 80 milhões em 1300 para 65 milhões em 1400, continuando as perdas, causadas pela guerra, inspirada pelo controle de espaços políticos e económicos nascidos do tipo de vida precedente. A questão é, portanto, a consideração de que os passados epidémicos implicaram uma relação grave entre a paz e a guerra, e entre a guerra e a nova estratégia, visando hoje impedir que qualquer indesculpável leviandade multiplique o desastre.
A intervenção do respeitadíssimo general Cabral Couto presta um serviço que pode não atrair o verbalismo, por vezes surpreendente, e mais próximo do Estado espetáculo do que da posse da prudência governativa, uma prática que produz opiniões perigosas vindas de responsáveis mundiais que assumiram o poder pelo uso do populismo. Assim como a peste negra mudou e inovou o tempo significativamente pelo que Boccace (1348) chamou a “epidemia imortal”, admitindo-se que parte fosse a obra das influências astrais, ou o resultado das novas iniquidades, e que Deus, na sua justa cólera, manifestasse sobre os homens a punição dos seus crimes. Espera-se que não seja por isto que, em França, se discute o futuro das 42 mil igrejas do hexágono, quando o número dos crentes desce inesperadamente.Vender as igrejas é entendido como um sacrilégio pelos cristãos, mas a sua conservação, muito dispendiosa, obriga as dioceses a tomar decisões dolorosas (Le Monde, 31 de maio de 2020).
Mas as palavras e os atos que, em potências consideradas serem das mais poderosas, atacadas desatentas pela crise, desrespeitam ou ameaçam os adversários considerados, com parcialidade ou sem ela, sobretudo os que governam, seria esperançoso que tivessem atenção ao texto militar e académico do general Cabral Couto. Ele, tranquilo, afirma que enfrenta a “falha, nesta área, da cultura, na maior parte das elites políticas, relativamente à problemática da segurança”, e acrescenta que tem 90 anos “mas espera sobreviver à crise”, e que os netos nunca se esqueçam dos Quatro Cavaleiros do Apocalipse. Mas, logo no início, o que sustenta, e não será esquecido, é o seguinte: “As teses que apresento e defendo (de enfrentar o covid-19), embora tenham um carácter abstrato e universal, na realidade, não pude deixar de ter em mente o chamado ‘mundo ocidental’ e, especialmente, a União Europeia e o nosso país.”
Os passados epidémicos implicaram uma relação entre a paz e a guerra, entre a guerra e a nova estratégia, visando hoje impedir que qualquer indesculpável leviandade multiplique o desastre.