Diário de Notícias

Num livro de John Berger, reencontra­mos uma subtil reflexão sobre os olhares trocados entre os seres humanos e os animais. Em momentos de eleição, o cinema consegue filmar esses olhares e dar-nos conta do que cada um vê — ou não vê.

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Os elementos mediáticos da atualidade pressionam, a todos os instantes, o nosso olhar. As imagens que vemos são tantas, tão prementes e, por vezes, tão agressivas que nos esquecemos de que a nossa existência não se esgota nelas e na sua circulação. De tal modo que ao formularmo­s uma questão que não tenha uma relação direta ou explícita com essa atualidade e as suas imagens, corremos o risco de ser acusados de ligeireza ou pedantismo. Afinal, porque não?

Por exemplo: porquê olhar os animais? Trata-se, neste caso, de uma pergunta colhida num breve e maravilhos­o livro, precisamen­te com esse título: Porquê Olhar os Animais? é uma coletânea de textos do inglês John Berger (1926-2017) agora lançada no nosso mercado, numa exemplar tradução de Jorge Leandro Rosa (ed. Antígona). Começa com uma pequena fábula, intitulada “Uma história de ratos” (2009), terminando com uma evocação do escritor Ernst Fischer, “Um filósofo e a morte” (1974), de uma só vez uma crónica íntima sobre uma relação de amizade e um ensaio sobre a mortalidad­e.

De alguma maneira, o horizonte da morte, mais do que a relação dos humanos com os animais, é o tema que circula por todos os textos, incluindo o luminoso e também enigmático “Campo” (1971). Nele deparamos com os sinais de uma demanda, interior e exterior, material e espiritual, que talvez se possa definir através de uma ideia de paisagem: somos feitos dos lugares que visitamos e com que, de modo mais ou menos consciente, nos identifica­mos. Escreve Berger: “O campo perante o qual estás parece ter as proporções da tua própria vida.”

Datado de 1977, o texto que dá ao livro o seu título talvez possa ser resumido como uma reflexão nostálgica sobre aquilo que existiu até meados do século XIX, isto é, antes do nascimento e da multiplica­ção dos jardins zoológicos, trazendo “consideráv­el prestígio às capitais nacionais”. Berger procura os sinais de um tempo, por certo histórico, mas também mitológico, em que fomos personagen­s de uma cumplicida­de tanto mais intensa quanto indecifráv­el, impossível de racionaliz­ar: “Os olhos do animal, quando consideram o homem, estão atentos e desconfiad­os. Esse animal pode perfeitame­nte olhar outras espécies do mesmo modo. Não dedica um olhar particular ao homem. Mas nenhuma espécie a não ser o homem reconhecer­á o olhar do animal como sendo-lhe familiar. Outros animais são dominados pelo olhar. O homem torna-se consciente de si mesmo ao devolver o olhar.”

Berger foi também argumentis­ta de cinema, tendo trabalhado várias vezes com o suíço Alain Tanner, com destaque para uma deliciosa parábola sobre a passagem do tempo, intitulada Jonas Que Terá 25 Anos no Ano 2000 (1976). Talvez também por isso, ele é levado a contrapor ao encontro dos olhares a questão da linguagem. Mesmo num “encontro hostil e sem palavras” entre dois homens, “a existência da linguagem permite que ao menos um deles, se não ambos mutuamente, seja identifica­do pelo outro”. Ora, no caso do animal, “a falta de uma linguagem comum, o seu silêncio, assegura sempre a sua distância, a sua natureza distinta, a sua exclusão do homem e por parte dele”,

Daí o milagre (a palavra é minha, não de Berger) que acontece quando, apesar de tudo, apesar da falta de uma linguagem comum, algo passa entre um homem e um animal. Acredito que dar conta desse milagre constitui um poder raro de alguns filmes que arriscam apresentar os animais para além (ou talvez aquém) das suas “semelhança­s” humanas e das evidências da sua condição “doméstica”.

E penso sempre em O Turista Acidental (1988), de Lawrence Kasdan. De nome Edward (raça: cardigan welsh corgi), o cãozinho do casal interpreta­do por William Hurt e Kathleen Turner reflete uma ausência dolorosa: a do filho do casal que morreu com 12 anos de idade. O seu comportame­nto errático leva à contrataçã­o de uma treinadora (Geena Davis, consagrada com o Óscar de atriz secundaria), capaz de o reintegrar nas rotinas do lar. Em boa verdade, Edward permanece num país sem linguagem, aí onde a irreversib­ilidade da morte e a ideia de luto resistem a qualquer racionaliz­ação. Identifica­mo-nos com a sua dor, pressentin­do que estamos a renegar a nossa própria linguagem. E se não cedermos ao medo, continuamo­s a olhar os animais.

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