Um activismo global para pessoas locais
A resposta-padrão aos gritos de censura é explicar que nada foi “censurado”, que há uma diferença entre a decisão de uma empresa privada e uma sanção com força legal.
Quando se estreou na BBC, em 1999, The League of Gentlemen exibiu duas virtudes raras: conseguiu ser uma genuína “comédia de terror”, mostrando competência em ambos os modos; e criou algo verdadeiramente original, apesar de composto quase na totalidade por elementos avulsos de imaginários estabelecidos (vaudeville, pantomina, contos infantis, teatro grotesco e a tradição inglesa do horror folclórico).
Royston Vasey, o local fictício onde a acção decorre, é uma literalização hiperbólica de estereótipos sobre um certo tipo de comunidade insular no norte de Inglaterra: paroquial, incestuosa, aberrante e com uma suspeita congénita de “forasteiros”. Num segundo nível, é também uma antiterra suspensa, onde os estereótipos alimentados pelos próprios habitantes sobre esses “forasteiros” podem tornar-se não apenas reais, mas reais na sua forma mais monstruosa.
Uma das personagens mais memoráveis da série é Papa Lazarou, um cocktail de mil pesadelos de infância, preconceitos adultos e clichés do terror canónico (o papão, o palhaço demoníaco, o capataz tirânico, o coleccionador de almas, o estrangeiro esquisito que vem roubar as nossas mulheres) e uma das personagens televisivas mais incómodas e sinistras fora dos mundos de David Lynch. É sempre claro que Papa Lazarou é uma figura sobrenatural, que usa uma máscara de circo para camuflar o seu verdadeiro aspecto; sucede que a máscara é indistinguível do blackface clássico – e terá sido esse o motivo que levou a Netflix a retirar a série do seu catálogo, na mesma atarefada semana em que retirou The Mighty Boosh, e outras plataformas de streaming fizeram o mesmo com Little Britain e com um episódio específico de Fawlty Towers.
O próprio Pavlov não conseguiria inventar um conjunto mais eficaz de campainhas, portanto, o que aconteceu a seguir foi exactamente o mesmo que aconteceu da última vez, e da penúltima, e da antepenúltima. Os rituais são tão frequentes que as etapas podem ser previstas e reproduzidas por um algoritmo. As pessoas que se irritam irritaram-se, as que se divertem com a irritação divertiram-se, as que preferem repetir a centésima versão dos mesmos argumentos repetiram-na. A previsibilidade torna-se uma espécie de conforto, tanto a dos que acreditam viver num prólogo permanente a 1984, como a dos que insistem na tese das tempestades em copos de água.
A resposta-padrão aos gritos de censura é explicar que nada foi “censurado”, que há uma diferença entre a decisão de uma empresa privada e uma sanção com força legal, e que todas as pessoas que desejem ver as obras em questão podem continuar a fazê-lo: noutras plataformas digitais ou em suporte físico. O aspecto mais curioso deste argumento é que defende o valor de um acto descrevendo-o como inconsequente. E a inconsequência é de facto a sua principal característica: é inconsequente como censura, como pedagogia ou como solução para o que quer que seja.
A ligação entre brutalidade policial, desequilíbrios sistémicos ou racismo institucional e a facilidade de acesso a sitcoms inglesas do início do século XXI andará entre o ténue e o nulo. Essas lutas são antigas, não vão acabar amanhã, e a dimensão da tarefa é tão grande que se torna difícil sequer imaginar o aspecto que um triunfo vai assumir, portanto, a impaciência é compensada com a acumulação de vitórias imaginárias. Celebram-se os alvos que foi possível atingir hoje, mesmo que sejam irrelevantes.
O próprio processo pelo qual os artefatos “problemáticos” são detectados é condicionado por esse impulso. A redução de um problema complexo a sinédoques meramente visuais, divorciadas de qualquer contexto, fomenta uma vigilância superficial e arrisca-se a confundir criações que surgem de universos éticos totalmente diferentes. Mesmo quem concede que determinada imagem ou palavra é sempre problemática deve saber que não é sempre problemática da mesma maneira. Mas quando um aparato conceptual se decompõe em teatro simbólico, por muito que insista que a sua crítica de fundo (em teoria) seja estrutural, a prática acaba sempre por reduzir-se a casos individuais – os tais alvos que é possível atingir. Objectos são essencializados e classificados de acordo com um único elemento: são bons ou são maus. E um activismo supostamente dedicado a forçar mudanças sistémicas reduz-se a uma colecção de escalpes provisórios.
A principal consequência de gestos como o da Netflix é a produção instantânea de manchetes, enquadramentos e opinião. Posições prévias são reforçadas, linhas demarcadas. Algumas noções de História são invocadas. Mas o princípio operativo acaba por ser o que caracteriza muito do debate político quando praticado online: o valor intrínseco de um acto é determinado pelo tipo de pessoas que o acto irrita, não por ser a expressão legítima de uma luta comum. E algo que surgiu da suposta preocupação em não perpetuar estereótipos raciais acaba por entrincheirar dois estereótipos políticos ad hoc: dois antagonismos definidos pelos seus aspectos mais irrelevantes – o lado que reage sempre a X com Y, e o lado que reage sempre a X com Z.
Retirar produtos de um catálogo, neste contexto, não é muito diferente do desfile homogéneo de “posições” assumidas por várias marcas em resposta às circunstâncias recentes: o vago misticismo de logótipos, hashtags, vocabulário testado e pensamento positivo que garantiu aos clientes da L’Oréal, da Nike ou do Spotify que eles estavam do lado correcto, e que depressa se transformou num campeonato de contrição competitiva. Há um espaço óbvio para acções de pressão concertada por parte de consumidores que obriguem empresas de grande dimensão a alterar práticas negativas ou a usar essa dimensão para alcançar mudanças substanciais. Mas se esse poder é dissipado a aplaudir ou desdramatizar gestos inócuos ou inúteis, o incentivo é para que se repitam no futuro as mesmas posturas vazias.
O corolário mais cómico deste ciclo é que uma geração que adquiriu tamanha fluência nos vários modos discursivos anticapitalismo se contente em declarar como vitórias as sôfregas estratégias de marketing concebidas em cima do joelho por multinacionais em resposta às estratégias de marketing de outras multinacionais.
O que se segue, provavelmente, é a discreta revogação ou qualificação de alguns destes gestos. Algumas séries vão voltar intactas aos catálogos, outras vão voltar com edições cirúrgicas, outras com um aparato pedagógico de avisos e contextualizações. Algumas pessoas vão aproveitar para ver ou rever as séries em causa, e a maioria vai reforçar as opiniões que quis ter desde o início. Nada de substancial vai mudar, e o que mudar será por motivos completamente diferentes.
É improvável que a possibilidade de revisitar artefactos culturais do passado alguma vez deixe de ser lucrativa (e, portanto, de continuar a existir) numa indústria que nos últimos anos soube monetizar tão competentemente o impulso nostálgico. E há uma consequência interessante das alterações ao modo como o nosso património cultural é distribuído, em que a posse individual (cassetes, DVD, memórias) foi substituída pela posse descentralizada de um arquivo permanente, mas externo – algo que não é bem “meu”, mas pode ser de “todos”, porque está sempre “ali”.
A reacção de confronto com a nostalgia costumava ser uma complicada operação individual, que podia gerar emoções diversas e nem sempre confortáveis: desilusão, embaraço, reavaliação, etc. Mas depois de terem encontrado uma forma mais eficiente de vender essa nostalgia, as plataformas de streaming estão também a encontrar uma forma mais eficiente e sistematizada de nos vender a nossa própria reacção, fazendo o trabalho prévio por nós, dividindo esse património entre o que e aceitável e o que não é. É uma função que não lhes devia caber, mas também é um caso em que a oferta só existe porque há procura.