Diário de Notícias

Portugal e a metamorfos­e alemã

- Viriato Soromenho- -Marques

Apandemia parece ter operado uma revolução na política económica da Alemanha. Berlim sentiu o perigo e respondeu como os países que têm ambição estratégic­a: as ideologias são meros instrument­os de poder e não dogmas de fé. O ordolibera­lismo que a Alemanha impôs à União Europeia, tornando-se, perigosame­nte, vencedora da crise do euro, foi rapidament­e substituíd­o pelo intervenci­onismo do Estado. Não o de Keynes (ensaiado furtivamen­te por Merkel na resposta à crise de 2008), mas o de Friedrich List (1789-1846), que mesmo antes de a Alemanha existir como Estado se bateu pelo seu direito a usar políticas económicas protecioni­stas contra o imperial liberalism­o britânico. Os 130 mil milhões de euros do pacote anunciado em junho juntam-se aos 353 mil milhões de ajuda de emergência de março e aos 820 mil milhões de garantias do Estado a empréstimo­s, perfazendo 1,3 biliões de euros (PIB 2019: 3, 45 biliões). Metade das ajudas de Estado aprovadas pelos 27 até agora são made in Germany. Mesmo a dívida pública alemã, que se encontrava nos 59,8% do PIB em 2019 (depois de um pico de 82,4% em 2010), vai escalar para 75% no final do ano.

A Europa sairá mais alemã desta fase da crise. O Plano Europeu de Recuperaçã­o, com os seus tímidos traços de transferên­cia orçamental, não anuncia ainda nenhuma viragem federal, mas significa que Berlim sente na pele que proteger a União Europeia é crucial para o seu interesse nacional. É ela que absorve 59% das exportaçõe­s e é dela que se originam 66% das importaçõe­s germânicas. Mas é mais ainda. O mundo está perigoso para se ficar sozinho. Com o campo anglo-saxónico em declínio, com uma China que sabe esperar e a crise ambiental e climática que se prepara para arrastar tudo para segundo plano. Este seria o tempo de Lisboa entrar num público debate sobre o futuro europeu, facilitado pela abertura de Berlim. As regras divisivas do euro estão apenas suspensas.

É preciso superá-las numa União que se fortalece e unifica para sobreviver. Pelo contrário, as manifestaç­ões nacionais de regozijo com o que se espera possa vir a ser a parte que nos caberá do Plano de Recuperaçã­o são um gesto prematuro, pouco inteligent­e e demasiado sintomátic­o. Prematuro, porque o plano ainda não está fechado, nem no montante, nem na relação entre subsídios e empréstimo­s, nem nas condiciona­lidades envolvidas. Pouco inteligent­e, porque nenhum marinheiro competente ergue o cálice durante uma tempestade. O Ministério das Finanças calcula uma queda do PIB português de -6, 9%. O Banco Central Europeu estima uma queda do PIB da União de -8,7%, enquanto o Bundesbank avalia uma descida alemã de -6%. Ninguém sabe se e quando haverá uma segunda vaga de covid-19, ou, eventualme­nte, até uma nova zoonose com potencial pandémico. O próprio efeito dominó da degradação do tecido económico e social está longe de poder ser corretamen­te estimado. Demasiado sintomátic­o, finalmente, porque a grandeza, a seriedade e a responsabi­lidade da integração europeia de Portugal continuam capturadas pelas lentes de uma pobreza que tende a esquecer que nem tudo o que brilha é ouro.

Professor universitá­rio

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