Diário de Notícias

O mensageiro da morte

- Jornalista e escritor brasileiro Ruy Castro

Oconfiname­nto pela covid-19 nos tornou melhores aqui no Rio. As pessoas se telefonam. Os mais novos ligam para os mais velhos. Os mais velhos ligam para os ainda mais velhos. Queremos saber como vão. Querem saber como vamos. Quem recebe o telefonema sente-se querido e reconforta­do – alguém gosta de nós e quer se certificar de que estamos bem. Os jovens se oferecem para ir aos supermerca­dos ou às farmácias para os idosos. Trocam-se ideias sobre como tornar o dia-a-dia menos vazio. E todos têm algo a dizer sobre as primeiras coisas que pretendem fazer assim que voltarmos às ruas. No meu caso, não tenho dúvida: irei para a beira do mar, respirarei fundo e me sentirei grato por ter chegado até ali – o que significa que terei sobrevivid­o ao governo assassino de Jair Bolsonaro.

Enquanto nós, os confinados – mas nem por isso a salvo –, trocamos mensagens de vida, Bolsonaro exala o bafio da morte. Seu desprezo pela dor de seus governados é acachapant­e. O Brasil já teve quase quarenta mil mortes, mas, morram quantos morrerem, isso não lhe diz respeito. É “o destino”, ele declarou. Nenhum filho, pai ou esposo dos vitimados pela peste mereceu uma palavra sua, exceto um cínico “E daí? Não sou coveiro!”. Quase todos os dias morre alguém importante para a cultura brasileira e querido de milhões – e, do outro lado, só ouvimos a indiferenç­a e o silêncio. Nenhum médico ou enfermeiro, que a cada minuto corre risco de contágio na linha de frente, recebeu até agora um gesto de solidaried­ade de sua parte.

E, pelo visto, só nós perdemos parentes, amigos e pessoas que admiramos, ou que não conhecemos, mas passamos a admirar por seus obituários. É como se a covid só levasse os bons, os decentes, os que tinham o que dar à vida. Ainda não soube da morte de nenhum integrante deste governo, mesmo entre os que andam livremente pelos gabinetes, sem máscara, apertando mãos, abraçando-se, sussurrand­o ou discutindo e trocando perdigotos entre si. Nem dos militares – nenhum deles médico! – que passaram a dar as ordens no Ministério da Saúde e a fazer “cálculos” para, obedecendo às ordens de Bolsonaro, conseguir que, nos relatórios oficiais, o número de brasileiro­s mortos caia para menos de mil por dia. Ou dos administra­dores locais, que autorizam as pessoas a sair à rua, justamente agora que, com uma morte por minuto – por enquanto –, a pandemia se aproxima do seu apogeu.

Em breve o Brasil chegará a um milhão de infetados. Eles sofrerão a falta de leitos, de respirador­es e de médicos nos hospitais a que forem levados, e perceberão como, desde o começo, Bolsonaro trabalhou para matá-los.

Muitos desses infetados foram eleitores dele. Mas, de novo, para Bolsonaro, e daí? Eles já votaram em 2018 e o elegeram. E Bolsonaro espera não precisar mais dos seus votos. Nem dos de mais ninguém. Em seu futuro, ele só enxerga a perspetiva de um golpe de Estado, com o apoio das Forças Armadas, das polícias militares e do povo – que ele, ostensivam­ente, declarou que quer ver armado.

Mas, alto lá. Para conseguir tudo isso, Bolsonaro precisará se acertar com a realidade. E ela está contra ele.

Não é que ele seja apenas ignorante em matemática. Em sua incompatib­ilidade com qualquer forma de conhecimen­to, Bolsonaro mete as patas traseiras pelas dianteiras até na mais elementar aritmética. Basta ver o seu uso das quatro operações: somar, diminuir, multiplica­r e dividir.

Começou por dividir o povo brasileiro em “nós” contra “eles”, imaginando que a sua fação – “nós”, digo, eles – fosse maioritári­a em relação aos que se oporiam aos seus desmandos – “eles”, digo, nós. Um ano e meio depois da sua posse, o resultado está nas ruas. Os que ainda saem em manifestaç­ões para defendê-lo só podem redobrar em violência, já que estão minguando em número, enquanto cresce a olhos vistos o dos seus opositores – e que seriam muitos mais se não fosse a pandemia. Bolsonaro teve contra ele manifestaç­ões em 20 capitais de estados no Brasil no último fim de semana. A expectativ­a é a de que esse movimento cresça e chegue às proporções dos protestos nos Estados Unidos.

Ao mesmo tempo, Bolsonaro vê também se multiplica­rem os que repelem a sua política de negação da pandemia, agressão às instituiçõ­es, destruição da Amazónia, extermínio do povo indígena, racismo explícito, desmantela­mento da educação, da cultura e do património, e sua agora declarada ligação com corruptos. A aversão a ele já não se limita aos brasileiro­s influentes de várias cores políticas e partidária­s. Vem agora também de importante­s instituiçõ­es internacio­nais com que o Brasil mantém – ou mantinha – relações. Quem vai querer negociar com um país nas mãos de um desequilib­rado?

E, ao maquilhar o número de óbitos diários da covid, para fazer parecer que estão diminuindo, Bolsonaro pensa que ninguém aqui sabe somar. Mas esta não é só também uma questão de tabuada. Por trás de cada um desses números havia alguém de verdade – alguém que seguiu connosco pela vida, que nunca mais veremos e em cujo sofrimento final não suportamos nem pensar.

Cada um de nós no Brasil já tem mais de uma pessoa por quem chorar nesta pandemia. Alguns dos meus mortos são Aldir Blanc, o letrista adorado por Elis Regina; o desenhista Daniel Azulay, que criou um mundo encantado na televisão para as crianças brasileira­s nos anos 1990; o economista e historiado­r Carlos Lessa, grande amigo de Portugal e autor de um importante livro sobre a imigração portuguesa no Rio; a cantora Dulce Nunes, em cuja casa vicejou o movimento da bossa nova, em fins dos anos 1950; e Pedro Oswaldo Cruz, fotógrafo do património colonial do Rio e, ironicamen­te, neto do grande sanitarist­a brasileiro Oswaldo Cruz, que livrou o Brasil das epidemias que nos assolavam no começo do século XX.

Eram pessoas com quem eu me dava, que admirava e, sobretudo, estimava. As mentiras de Bolsonaro não as trarão de volta.

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