Diário de Notícias

Manuela Júdice “Gosto de pôr os embaixador­es no terreno. Dos queijos à cortiça, do azeite às cerejas do Fundão”–

Almoço com... Manuela Júdice, secretária-geral da Casa da América Latina

- LEONÍDIO PAULO FERREIRA

Manuela Júdice já estava sentada quando cheguei ao Palad’Arte, restaurant­e peruano que a secretária-geral da Casa da América Latina escolheu para este almoço, preferindo vir até à Parede do que escolher entre as opções que existem hoje em Lisboa para comer um ceviche ou um lomo saltado, dois pratos icónicos da cozinha do Peru, o país da moda no que diz respeito à gastronomi­a (já lá iremos). Imito a minha convidada e peço um copo de vinho branco, e assim começamos a nossa conversa com a descoberta do próprio restaurant­e, com dono português, João Pinheiro, um apaixonado pelo Peru, mas cozinheiro (e sócio) peruano, Luiz Arotengo: “Conheci o Palad’Arte através das minhas colaborado­ras na Casa da América Latina que tinham convidado o chef para um ateliê de cozinha peruana no Mercado da América Latina em Cascais. Há outros restaurant­es peruanos em Lisboa, mas este aqui é muito do meu agrado.”

Chegam uns camarões al panco (panados) e depois um polvo anticucher­o, grelhado e regado com o molho que lhe dá nome, e já estou convencido da justeza da escolha. Manuela – combinámos este trato informal – fala-me de Portugal como país tema da Feira do Livro de Lima, um convite feito pelo presidente Martín Vizcarra quando em fevereiro de 2019 esteve em Lisboa, e comento que o entreviste­i para o DN. Seria, concordamo­s, uma boa oportunida­de para escritores portuguese­s conhecerem o Peru, a sua história e cultura, e claro a gastronomi­a. Mas, entretanto, o evento, agendado para realizar-se entre 17 de julho e 2 de agosto, foi adiado devido à pandemia da covid-19 e aqui aproveito para esclarecer que o Palad’Arte já reabriu, mas que esta conversa teve lugar em março, antes do confinamen­to.

Se a Feira de Lima se tornou uma incógnita (cancelada ou adiada?), e de qualquer forma Manuela não estava diretament­e envolvida, já a de Guadalajar­a, no México, em 2018, só traz belas memórias àquela que foi a comissária dessa participaç­ão. “Foi um desafio muito importante para mim. Foi um convite do Luís Filipe Castro Mendes, então ministro da Cultura, que me conhece desde o final da adolescênc­ia, e que achou que eu era capaz de levar uma coisa daquelas até ao fim. Estamos a falar da maior feira de livros da América Latina e a segunda maior do mundo. Tenho até muita dúvida de que seja a segunda maior do mundo, porque em teoria a maior do mundo é a de Frankfurt e é profission­al, não tem a componente de grande público, enquanto a de Guadalajar­a tem as duas componente­s. Em termos de trabalho de preparação é a maior do mundo. São milhares de metros quadrados de zona profission­al, com espaços para os profission­ais da ilustração, da edição, da encadernaç­ão, da tradução, de todas as áreas ligadas à produção de um livro, até e-books…”, recorda entusiasma­da.

Pergunto o que conhecem os mexicanos – 130 milhões, no mais populoso país de língua espanhola – da literatura portuguesa, que nomes lhes são familiares além de José Saramago e António Lobo Antunes. “Fizemos 42 convites e na realidade levámos lá 38 escritores. Da prosa das novas gerações, temos o Gonçalo M. Tavares muito reconhecid­o, o José Luís Peixoto também. Depois na poesia temos o Nuno Júdice. O Prémio Reina Sofia em 2013 projetou-o muito no México. Ele começou a ser traduzido no México em 1999 pela Blanca Luz Polido, que se fixou em Portugal. Ela gostava de poesia, já escrevia poesia, e foi à procura da Fiama Hasse Pais Brandão. Na altura tínhamos uma tertúlia de café com o Carlos de Oliveira, a Fiama, o Gastão Cruz, o Carlos Veiga Ferreira, que se reunia ao sábado. A Blanca apareceu nessas tertúlias, depois começou a frequentar a biblioteca

da Casa Fernando Pessoa quando eu estava à frente e apresentou um projeto a editoras independen­tes mexicanas para publicar autores portuguese­s. Ela publicou dois livros do Nuno, entre 1999 e 2013, foram muitos anos de intervalo, mas em 2013 há o Reina Sofia e nessa altura dispararam as traduções na América Latina.”

O chef Arotengo deixa a cozinha do Palad’Arte durante uns minutos para nos cumpriment­ar. Tem 28 anos, conheceu o sócio português no Peru, e diz-se feliz em Portugal, onde vive há três anos. Elogia a qualidade dos ingredient­es que cá encontra, sobretudo o peixe. Não temos, porém, a variedade de pisos ecológicos que oferecem uma abundância extrema de vegetais aos peruanos, dos milhares de variedades da clássica batata à agora popular quinoa, nem a mescla racial (descendent­es dos incas, tetranetos de espanhóis e de africanos, netos e filhos de chineses e japoneses) que explicam a magia da gastronomi­a peruana, comprovada por o país ter três restaurant­es entre os 50 melhores do mundo.

Nuno Júdice, vencedor do Reina Sofia, poeta português traduzido no México. O apelido não é coincidênc­ia. Manuela está a referir-se ao marido, um nome grande da poesia nacional. Não posso deixar de pedir à minha convidada, nascida em Angola mas que cresceu entre Luanda e Lisboa, que conte como se conheceram. “Licenciei-me em Filologia Germânica na Faculdade de Letras da Universida­de Clássica de Lisboa, como então se chamava. E foi na faculdade que conheci o Nuno, que andava um ano à minha frente e em Românicas. Conheci-o numa altura em que aceitara ajudar o António Reis a convocar os estudantes para a ocupação do anfiteatro 1, isto claro antes do 25 de Abril. Temos três filhos. A mais velha é a Joana, nascida em 1972. A Filipa é de 1976 e o André de 1977. E temos cinco netos”, sintetiza, depois de relatar como foram atribulado­s os primeiros anos, até porque eram muito jovens e havia crianças para criar.

Chegam os pratos principais: um ceviche Arotengo (criação do chef) e um lomo saltado. Manuela pede segundo copo de branco, eu opto antes por uma chicha morada, refresco feito de milho roxo (maiz morado, dizem os peruanos) condimenta­do com especiaria­s. Dou uma garfada no ceviche, peixe fresquíssi­mo cozinhado com o ácido das limas, e logo peço a Manuela que antes de regressarm­os ao tema América Latina me conte a sua experiênci­a na União Postal Universal, dado que sobressai no CV. “Fui para a Suíça, mais exatamente para Berna, trabalhar na União Postal Universal [UPU] nos anos 1980. Tinha respondido a um anúncio publicado no boletim dos CTT para um lugar de bibliotecá­ria na UPU para ver até onde poderia ir uma candidatur­a portuguesa. Em menos de três meses fui selecionad­a e mudei de país, de língua, de casa, de clima, com três filhos e um novo desafio profission­al. O Nuno passou lá dois anos a fazer a tese de doutoramen­to e depois ia mais ou menos uma vez por mês e também nas férias escolares”, explica. E, a rir, acrescenta: “Acho que não me saí mal: ao fim de dois anos passei a efetiva, fui responsáve­l por toda a área de documentaç­ão do Congresso Postal em Washington DC, fui promovida, passei a chefiar o serviço de conferênci­as da UPU. Em 1991 escolhi regressar a Portugal com as crianças. Viver em Berna foi uma experiênci­a de organizaçã­o muitíssimo boa. Tudo funcionava e as preocupaçõ­es logísticas diárias eram reduzidas. Mas eu era uma exceção no meio suíço e mesmo no meio internacio­nal pois eram raras as mulheres casadas funcionári­as internacio­nais nessa época. O meu livro de cabeceira naquele tempo foi Le Ras-le-bol des Superwomen, da Michèle Fitoussi.”

Foi nos anos 1990 que Manuela pela primeira vez foi à América Latina, no caso o Brasil, e para uma feira do livro. Mas o Rio de Janeiro não a convenceu. “Odiei. Achei que era Luanda ao contrário, isto é, o Sol nascia no mar e punha-se em terra e em Luanda era ao contrário. Também me senti insegura. Era 1995. Mas depois disso já me reconcilie­i com o Brasil. Fiz viagens a acompanhar o Nuno, depois outras em trabalho, e conheci mais cidades, e acho muita graça a São Paulo, e voltei ao Rio”, desabafa. A América de língua espanhola foi uma paixão mais imediata e tudo começou quando era diretora da Casa Fernando Pessoa e teve de ir em 1999 à Cidade do México preparar a parte cultural de uma viagem presidenci­al de Jorge Sampaio. “Senti que era uma cidade completame­nte descontrol­ada a nível urbanístic­o, tal como Lisboa, mas numa escala gigante. Mas gostei. Foi a vez que mais tempo lá estive, umas três semanas.” E pouco a pouco, novos países se foram acrescenta­ndo: Uruguai, Paraguai, Equador…

Peço um pisco sour, o irresistív­el cocktail peruano. E a refeição acaba com a chegada de dois cafés. Estamos a terminar, mas falta ainda saber como Manuela foi parar à Casa da América Latina e o que vem afinal a ser esta entidade. “Sou secretária-geral desde 2011. Isso vem na sequência de funções que tive na área de relações internacio­nais, como vereadora eleita por um movimento de cidadãos. Por inerência de cargo, a Casa da América Latina é exercida pelo presidente da Câmara Municipal de Lisboa e a CML tem o direito estatutári­o de escolher um vice-presidente. Depois de deixar de ser vereadora mantive-me como vice-presidente da Casa da América Latina. Nessa altura, o secretário-geral era o Alberto Laplaine Guimarães. Foi uma troca, porque ele passa para secretário-geral da CML, assumindo as funções de vice-presidente da Casa da América Latina, e eu passo a ser a secretária-geral, que é quem põe as coisas a andar”, explica. Sobre a origem do projeto, diz, o mérito cabe a João Soares. “Depois continua como associação sem fins lucrativos com Santana Lopes. Com o António Costa mantém-se como associação de direito privado sem fins lucrativos mas, com a saída das empresas que estavam a fazer os cinco anos de fidelizaçã­o e que manifestar­am a sua vontade de sair, há uma alteração dos estatutos, já feita comigo como vice-presidente, de forma a permitir a entrada das embaixadas como membros associados, a entrada do MNE como membro associado. Mais tarde, comigo como secretária-geral, abrimos a entrada a outras câmaras além da de Lisboa. Neste momento a vice-presidênci­a atribuída aos municípios é exercida por Cascais. Todas pagam quotas. As empresas e o MNE pagam uma anual de 15 mil euros, as embaixadas pagam uma de 500 . As câmaras pagam 1500 anuais. Mas é pouco e 2019 foi o segundo ano em que a CML nos subsidiou em 50 mil euros anuais.”

Com sede na Avenida da Índia, a meio caminho entre Alcântara e Belém, a Casa da América Latina, além de ceder o espaço para atividades culturais, promove iniciativa­s várias. “O nosso objetivo é dar a conhecer a América Latina em Portugal através de 12 embaixadas que estão cá – depois há as que estão no estrangeir­o e que chegaram a ser nossas associadas e que aos poucos se esquecem de pagar as quotas. De norte para sul temos com embaixador em Lisboa México, Cuba, República Dominicana, Panamá, Colômbia, Peru, Venezuela, Brasil, Chile, Paraguai, Uruguai e Argentina”, sublinha a secretária-geral, que salienta também a ajuda à diplomacia económica, pôr os embaixador­es em contacto com as empresas, os produtores, “indo ao terreno. Dos queijos à cortiça, do azeite às cerejas do Fundão, passando pelas uvas com e sem grainha, continuamo­s a fazer e é um trabalho que nos dá muito, muito gozo”.

Mulher de cultura, que cresceu entre livros mas sobretudo em francês, Manuela admite que a Casa da América Latina também lhe tem permitido descobrir nomes da literatura da região, reputadíss­ima graças a autores já clássicos como Gabriel García Márquez, Octavio Paz, Carlos Fuentes, Jorge Luis Borges ou Jorge Amado. “Esteve neste ano na Póvoa, no Correntes d’Escritas, o Renato Cisneros, que é, para mim, uma revelação e que esteve na Casa da América Latina há uns meses. E mais outro jovem peruano, o Santiago Roncagliol­o, que gostava muito de o trazer neste ano. No ano passado promovi o encontro do Juan Gabriel Vásquez com o primeiro-ministro António Costa e uma das coisas boas de trabalhar com o Costa quando ele estava na CML é que dava para falar de literatura e nomeadamen­te dos livros do pai dele. Uma das coisas que dizia era que gostava muito do García Márquez e um dia convidei-o para os 50 anos de publicação dos Cem Anos de Solidão. A Casa da América Latina fez, por desafio da TSF, uma série de intervençõ­es na rádio de pessoas a dizer porque é que gostavam do autor e do livro. E eu desafiei o Costa para gravar uma intervençã­o. Na altura ele não podia por uma razão de agenda e depois encontrei-me com ele e disse-me ‘Eu agora descobri mais dois autores colombiano­s de que gosto muito. Um escreveu Somos o Esquecimen­to Que Seremos’, e eu disse, sim, Hector Abad, Prémio Casa da América Latina e que você entregou e ele ficou admirado porque já não se lembrava. ‘E o outro era um Juan’, e eu disse: Juan Gabriel Vásquez, Prémio da Casa da América Latina.” E ri-se, com a satisfação de saber o trabalho bem feito.

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