Conde de Ferreira O traficante de escravos que ofereceu 120 escolas a Portugal
Na história nada simples nem linear da escravatura avultam personagens paradoxais como Edward Colston, cuja estátua, em Bristol, foi derrubada na semana passada por manifestantes antirracistas. Mas Portugal também teve figuras destas, como o 1.º conde de Ferreira, benemérito da saúde e da instrução pública graças à fortuna amealhada no tráfico negreiro entre Angola e a costa do Brasil.
Convencido de que a instrução pública é um elemento essencial para o bem da sociedade, quero que os meus testamenteiros mandem construir e mobilar cento e vinte casas para escolas primárias de ambos os sexos nas terras que forem cabeças de concelho, sendo todas por uma mesma planta e com acomodação para vivenda do professor.” Assim determinava, já entrado nos anos, o 1.º conde de Ferreira, nascido sem brasão e registado, segundo o assento paroquial, como Joaquim Ferreira dos Santos, filho de agricultores pobres do norte de Portugal. A generosidade do gesto, que dotava o reino, sempre parco em instrução pública, de uma primeira rede de ensino elementar, terá sido reconhecido pelos seus contemporâneos. À boca pequena alguns ainda lhe chamariam “brasileiro”, nome então dado aos portugueses de torna-viagem que tinham conseguido amealhar fortuna na antiga colónia, enquanto outros, decerto mais raros, talvez ainda lembrassem que na origem desse sucesso estavam os vastos lucros do comércio negreiro, entre Angola e o Rio de Janeiro, Bahia ou Pernambuco, para abastecer de mão-de-obra jovem e vigorosa os engenhos da colónia tornada independente em 1822. Milhares de homens, mulheres e crianças arrancados às suas aldeias em África e metidos à força, acorrentados, no insalubre porão de navios cargueiros. Os que morriam durante a travessia (e não eram poucos) eram prontamente lançados ao mar. Os que chegavam eram leiloados em praça pública como vulgar mercadoria, à mistura com marfim e animais de carga.
Assim fora durante muito tempo, mas, nas primeiras décadas do século XIX, o impacto dos movimentos abolicionistas na opinião pública tornou tal prática um negócio degradante. As mãos dos que a ele se dedicavam tinham enriquecido soberanos, que não se coibiam de cobrar a sua percentagem nos lucros como acontecia com os nossos reis D. Manuel I ou D. João III, mas a gradual consciencialização dos direitos humanos das populações escravizadas passou a vê-las maculadas de sangue.
Na segunda metade do século XIX, Eça de Queiroz dava conta, em Os Maias, da repugnância que as fortunas obtidas com tal tráfico tinham passado a suscitar. A burguesia lisboeta começara por admirar a extrema beleza de Maria Monforte, mas, invejosa, não tardou a aplicar-lhe o epíteto malsão de “a negreira”. Quando Pedro da Maia todo se arrebatou pela beldade, disposto a casar, o pai dele, Afonso, viu nesse amor a ameaça da desonra e do estigma social. Porquê? Porque “havia uma treva na história do Monforte. Parece que servira algum tempo de feitor numa plantação da Virgínia... Enfim, quando reapareceu à face dos céus comandava o brigue Nova Linda, e levava cargas de pretos para o Brasil, para a Havana e para a Nova Orleães. Escapara aos cruzeiros ingleses, arrancara uma fortuna da pele do africano, e agora rico, homem de bem, proprietário, ia ouvir A. Corelli a São Carlos”. A fortuna, manchada de sangue inocente, assombrava o próprio futuro da filha.
Monforte procurava esconder os fantasmas do passado com os novos hábitos requintados, exibidos no “palco” do Chiado, ou com as toilettes da linda filha. Outros, que não foram personagem de ficção como 1.º visconde de Loures (1791-1858), mandaram erguer palacetes como aquele que hoje acolhe o Grémio Literário. Manuel Pinto da Fonseca, proprietário de várias feitorias na costa ocidental africana e no Brasil, foi benemérito de várias ordens religiosas, entre as quais a do Bom Jesus de Braga, cidade de onde era originário. Mais de 200 anos antes, quando a escravatura ainda era vista como qualquer outro negócio, o próprio Edward Colston, cuja estátua foi agora derrubada
em Bristol, adquiriu notoriedade pública ao transformar parte dos seus muitos dividendos obtidos no comércio negreiro na construção de hospitais para os pobres da cidade. Assim conseguiu a gratidão dos seus conterrâneos e um lugar no Parlamento britânico.
Nobreza fresca e filantropia
Nascido no Porto em 1782, Joaquim Ferreira dos Santos embarcou para o Brasil em 1800, levando consigo pouco mais do que uma carta de recomendação, dirigida a um parente que se encontrava estabelecido como comerciante no Rio de Janeiro. Ali, ajudado e protegido pelo seu parente, foi prosperando no negócio, dedicando-se ao comércio por consignação de produtos enviados da então metrópole.
Fosse porque Joaquim era, por sua natureza, irrequieto, fosse porque as guerras napoleónicas ameaçavam a estabilidade do comércio com a Europa, em breve reforçava os negócios entre a sua casa e a praça de Buenos Aires, ao mesmo tempo que dirigia as suas atenções para África. Na costa angolana montou três postos cujo principal objetivo era a exportação de escravos para os engenhos brasileiros de açúcar e cacau, dando lucrativa continuidade a um comércio secular entre as duas costas atlânticas que se manteve mesmo após a independência do Brasil, em 1822 (a ponto de vários negociantes angolanos terem chegado a equacionar a hipótese de se unirem à coroa do Brasil, em detrimento da soberania portuguesa).
Já viúvo e sem filhos, regressou a Portugal, dedicando-se, pelo menos à luz do dia, à banca e a outros investimentos financeiros. Rico como Midas, viu no liberalismo emergente uma oportunidade de afirmação social. Faltavam-lhe pergaminhos de nascimento? Em plenas lutas entre liberais e miguelistas declarou-se partidário da causa política da pequena rainha D. Maria, para a qual contribuiu financeiramente com avultadas somas. O favor não foi esquecido pelo novo poder: feito visconde e, mais tarde, conde (com direito a brasão de armas), tornou-se par do reino por Carta Régia de 3 de maio de 1842. Mais tarde foi membro do Conselho de Sua Majestade, comendador da Ordem Militar de Cristo e da Ordem de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa, e recebeu, em Espanha, a Grã-Cruz da Ordem de Isabel, a Católica.
O novo conde de Ferreira não se limitaria, todavia, a passear as condecorações pelos corredores do paço. Era um homem de ação e a proximidade com o poder político não lhe retirara essa faceta. Informava-se, lia, acompanhava o que de mais moderno se passava por essa Europa fora. Certa vez, o rei D. Pedro V, filho e sucessor de D. Maria II, que morrera nova, falara-lhe da sua preocupação com o abandono a que eram votados os doentes mentais – os alienados, na linguagem da época. O conde ficou a matutar no caso. Do mesmo modo, inquietava-o a falta de acesso dos jovens portugueses, nomeadamente os mais pobres, às primeiras letras.
No seu testamento deixaria, pois, os recursos financeiros para ajudar a colmatar tais lacunas. Em 1883 inaugurava, no Porto, o primeiro hospital português pensado de raiz para a psiquiatria, que receberia o nome do seu benemérito. Aí seriam instalados doentes vindos de Santo António de Rilhafoles, assistidos por alguns dos mais conceituados médicos especialistas da época.
Este cuidado que evidencia, pela riqueza de pormenores, uma longa reflexão sobre o tema, estendeu-se à sua disposição para criar uma rede de 120 escolas públicas de norte a sul de Portugal. Do seu testamento consta o primeiro tipo de planta concebido de origem para servir de escola primária, com uma arquitetura utilitária e facilmente identificável. Por razões de eficácia económica, os edifícios eram uniformizados, incluindo o escolar, de linhas depuradas, com fachada encimada por frontão triangular com sineira, porta axial e uma janela de cada lado. Na fachada podia ler-se 24 de março de 1866 (data da morte do benfeitor) e o seu nome. Destinada a rapazes e raparigas, incluía ainda muitas vezes uma modesta residência para o docente. Das 120 escolas previstas, foram construídas 91. Desse conjunto hoje restam cerca de 70, algumas ainda na sua função primitiva e outras adaptadas a outros serviços municipais.
O que fez “correr” homens como este? A necessidade de comprar o esquecimento dos seus contemporâneos, a simples vaidade ou o íntimo impulso de limpar a consciência? No requinte das vidas novas que construíam, que fantasmas os assombravam à noite? Sendo o espírito humano o mais imperscrutável dos continentes, o mais provável é que nunca o saibamos.
Os edifícios eram uniformizados, incluindo o escolar, de linhas depuradas, com fachada encimada por frontão triangular com sineira, porta axial e uma janela de cada lado. Na fachada podia ler-se 24 de março de 1866 (data da morte do benfeitor) e o seu nome.