Diário de Notícias

Prestes a “meter as mãos na massa”, a covid-19 mandou-os para casa

Mais uns meses e Mar Mateus e Catarina estariam a enfrentar o coronavíru­s dentro de um hospital. São alunas finalistas do curso de Medicina, apesar de terem visto cancelados parte dos seus estágios finais por causa do novo coronavíru­s. A prática do curso

- RITA RATO NUNES

Quando a covid-19 chegou a Portugal, em março, uma das primeiras reações das escolas de medicina, além de fecharem as portas, foi retirar do terreno os alunos que estavam a estagiar; proteger quem ainda não tinha de lidar com o desafio de uma pandemia à escala mundial. Muitos estudantes ficaram com meses de experiênci­a no terreno por cumprir, em que deveriam estar a seguir os futuros colegas e a viver a realidade dos hospitais e dos centros de saúde por dentro. Assistiram de fora ao desenrolar de um combate que provavelme­nte teriam de travar se o novo coronavíru­s tivesse sido descoberto daqui a uns meses.

Catarina Nunes, 23 anos, é finalista do curso de Medicina da Universida­de de Lisboa e encontrava-se no serviço de cirurgia geral do Hospital Amadora-Sintra, quando lhe disseram que não poderia continuar a ir diariament­e à unidade hospitalar. Prestes a terminar a formação básica de um médico, viu cancelado o estágio final, que tinha começado em outubro e que deveria ir até junho.

O sexto ano – e último do curso – é a altura em que os estudantes passam pelas diferentes especialid­ades da profissão (cardiologi­a, pediatria, psiquiatri­a, ginecologi­a, medicina interna, por exemplo) para melhor entenderem qual o papel de cada médico. No caso do grupo de alunos em que Catarina Nunes estava inserida, a rotação pelos diferentes serviços no hospital foi tirada à sorte. Uns tiveram mais do que outros. Cada aluno ficou com uma parte específica da sua formação em falta, que foi compensada com aulas extra através de videoconfe­rência. Catarina Nunes diz que estas aulas em que se discutiam, entre outras coisas, casos clínicos foram muito úteis, ao ponto de deixar o conselho para serem mantidas mesmo depois de ultrapassa­da a pandemia. Mas a experiênci­a no hospital é a experiênci­a no hospital. E não é substituív­el. É preciso ver os doentes, apalpá-los para sentir as suas dores e servir de sombra aos mais velhos, com quem estão a aprender.

“O foco do nosso sexto ano [do curso] são os estágios nos hospitais e nos centros de saúde. É o ano em que começamos a meter mesmo as mãos na massa”, explica a aluna da Faculdade de Medicina da Universida­de de Lisboa. “Estava a gostar muito e partiu-me o coração ter de ir para casa”, confessa a futura médica.

A par da interrupçã­o do estágio – que aconteceu ainda antes de as universida­des terem cancelado as aulas presenciai­s – ficou um sabor agridoce. Pôde ficar com a família em casa e evitar o risco acrescido de percorrer os corredores hospitalar­es todos os dias, mas foi para isso mesmo que seguiu esta área de estudos: para ajudar a

Os alunos finalistas de Medicina tiveram de trocar os hospitais por aulas teóricas e vão acabar o curso sem ter passado por alguns serviços.

curar pessoas. Foi uma questão de meses. Mais dois ou três e provavelme­nte estaria lado a lado com os “heróis” com condecoraç­ão prometida pelo Presidente da República, no Dia de Portugal.

“Numa fase inicial, senti-me de mãos atadas. Faltava tão pouco para terminar o curso. Senti impotência por querer ajudar e não conseguir”, diz Catarina Nunes.

A aluna finalista do curso de Medicina da Universida­de do Minho Mar Mateus Costa, 24 anos, também acha que a vontade de ir para o terreno acelera num momento “histórico”, como este, mas reconhece que a sua ajuda ainda não seria tão valiosa como daqui a uns meses. “Ainda não sabemos mexer em ventilador­es, não sabemos os circuitos perfeitos nas urgências”, lembra. Por isso, para já, o trabalho é de bastidores. A responsabi­lidade existe, a partir do momento em que escolheu a profissão, e ainda para mais tendo um gosto especial pela vertente de saúde pública, área que parece ter ganhado mais destaque com o surto do novo coronavíru­s. Por isso, enquanto espera pelo momento de traçar relações epidemioló­gicas e de dar conselhos de saúde pública a um número mais vasto de pessoas, começa em casa, sensibiliz­ando e vigiando pais, avós, tios, amigos.

A Faculdade de Medicina da Universida­de do Minho foi a primeira a encerrar portas no país, depois de ter sido encontrado um caso de um aluno com covid-19, não entre os estudantes de Medicina, mas no polo universitá­rio. Mar estava, desde janeiro, a percorrer as especialid­ades do Hospital de Braga em busca daquela que lhe assentaria melhor dentro de um ano, quando tiver de se candidatar a uma.

Em março, encontrava-se a terminar o primeiro bloco do seu estágio em medicina interna. “Na altura, ficámos sem saber o que ia acontecer. O que a escola fez foi enviar-nos alguns materiais para ir estimuland­o o raciocínio clínico, mas em formato voluntário, porque não era nada que já estivesse predefinid­o no nosso currículo”, refere a estudante de Medicina, que não se sente tão prejudicad­a na sua formação quanto outros colegas, porque conseguiu fazer estágio numa ala “mais generalist­a e das que mais fomentam o raciocínio clínico”, a medicina interna. “Há colegas que só fizeram psicologia ou ginecologi­a, faltou-lhes uma base mais geral. A mim, vão faltar-me técnicas específica­s, porque por mais que estude não há nada que compense uma situação de urgência, de internamen­to, de vermos a história in loco, mas será sempre mais fácil”.

Apesar disto, nem uma nem outra colocam em causa a decisão de retirar os estudantes de Medicina dos hospitais durante a covid-19. Estes “estavam a ficar lotados e ter mais cinco mil estudantes poderia ser um perigo tanto para os doentes como para os estudantes”, admite Mar. “Por outro lado, os médicos, que estavam a fazer

“Senti-me de mãos atadas. Faltava tão pouco para terminar o curso. Senti impotência por querer ajudar e não conseguir”, diz a finalista Catarina Nunes.

mais turnos tinham cada vez menos disponibil­idade para estar com os alunos”, diz a também presidente da Associação Nacional de Estudantes de Medicina (ANEM).

“Mais do que ninguém temos de reconhecer o perigo para todos os envolvidos que era manter os estudantes nos hospitais, mas espero que os estudantes continuem a ser acompanhad­os. Porque aulas teóricas não substituem a prática clínica e temos de colmatar ao máximo essas falhas”, insiste.

1.ª experiênci­a: combater a pandemia

José Durão, 27 anos, não pode apontar falhas ao apoio que teve dos colegas mais velhos. Terminou o curso e já é interno de formação geral (ano comum, antes da especialid­ade) no Hospital de Santarém. Logo, uma das suas primeiras experiênci­as depois da licenciatu­ra foi ajudar no combate à pandemia.

Os internos não deixaram os hospitais, pelo menos a maior parte, mas alguns foram diminuindo a sua participaç­ão no ambiente hospitalar por falta de apoio dos seus orientador­es ou até por restrições nos espaços. “Há pessoas que ficaram esquecidas no meio disto tudo. Tive colegas que estão há mais de dois meses a fazer estágio de cirurgia e que nunca participar­am numa operação ou que não fizeram uma urgência”, diz José, acrescenta­ndo que não foi o seu caso. Faz parte dos recrutados. O recém-formado foi um dos detetives da saúde pública que procuraram ativamente novos casos à volta dos infetados e que vigiavam os doentes e/ou seus contactos, através do telefonema­s diários. “Foi um mundo. Todos os dias havia centenas e centenas de testes [de despiste de covid], de casos, de novos nomes e eu ajudava a rastrear os contactos”, diz.

Ligava às pessoas sinalizada­s como tendo estado em contacto com um doente de covid e perguntava-lhes onde tinham estado, com quem, quanto tempo, entre outras informaçõe­s que ajudassem a traçar um percurso. Esta história servia depois para isolar o máximo de cidadãos suspeitos de poderem transmitir covid e controlar as cadeias de transmissã­o, impedindo que a doença continue a circular.

A facilidade com que lida com as novas tecnologia­s fê-lo adaptar-se rapidament­e à plataforma TraceCovid – a ferramenta utilizada no acompanham­ento de doentes em vigilância e autocuidad­os. “Somos uma geração que está muito à vontade com os computador­es e com as plataforma­s e acabamos por ser muito úteis.” Isto apesar de reconhecer deficiênci­as profundas nos meios informátic­os e plataforma­s “antigas”, “morosas” e “difíceis de usar” com que os médicos trabalham.

Inicialmen­te, quando a palavra covid começou a entrar no nosso vocabulári­o, José também foi vendo reduzida a sua participaç­ão em algumas áreas hospitalar­es, como o acesso às urgências ou aos blocos operatório­s. “Deram-nos mais trabalho de enfermaria. Os médicos mais velhos tiveram de ficar em casa para se protegerem e nós reforçámos as enfermaria­s.” Mas foi preciso mais.

Para José – que no final de março estava a terminar um estágio em cirurgia – esta foi uma oportunida­de de explorar uma vertente da medicina que veio a confirmar interessar-lhe muito – a saúde pública. “Gosto de clínica, mas não me vejo décadas dentro de um hospital. E comecei a acreditar muito na prevenção, no planeament­o de reformas da saúde, na sensibiliz­ação das populações. Se o sistema funcionar reduzimos muito a carga de doenças no futuro e a necessidad­e de recorrer a meios hospitalar­es. Na verdade, isso acaba por ser uma coisa boa desta pandemia: estamos a sensibiliz­ar uma população inteira para cuidados simples que podem ter para prevenir doença”, aponta o interno.

Pouco tempo depois de ter saído da faculdade, olha à sua volta e reconhece que acabou “por passar por algo que nunca passaria noutra altura. E isso dá-nos outras ferramenta­s. Todas as pessoas da minha geração vão ficar com uma visão muito diferente de epidemiolo­gia, de saúde pública”.

O médico Francisco Rocha, 28 anos, concorda. Encontra-se a fazer o terceiro ano de quatro da especializ­ação em saúde pública no Agrupament­o de Centro de Saúde (ACES) Lisboa Central, que contou com a ajuda de internos também durante a pandemia. E tem esperança de que esta seja uma forma de dar a conhecer à sociedade o trabalho dos médicos de saúde pública, que também salvam vidas. “Simplesmen­te, nós não sabemos quem salvamos, ao contrário dos colegas do hospital, que ventilaram, trataram. Mas temos a certeza de que salvámos centenas ou milhares de pessoas”, sublinha. “Ao isolar os suspeitos, impedimos que estes tivessem contacto, por exemplo, com outras dez pessoas. Imaginemos que duas destas eram recetíveis ao vírus e que iam passar mal, nós impedimos isso”, acrescenta, usando como exemplo os números da pandemia no país: “Apesar de termos um número elevado de casos e de mortes, em Portugal, somos um bom exemplo. Reagimos depressa e bem.”

Sobre os mais jovens ainda, que estiveram ao seu lado a rastrear contactos nos centros de saúde, refere que “foram exímios na ajuda”. “Uma vez que já têm alguma experiênci­a clínica ajudavam a distinguir os sintomas sugestivos de infeção covid-19 e faziam o encaminham­ento para os médicos de família para fazerem o teste de despiste.” Para Francisco Rocha, o que conta nesta altura não é a idade, porque, principalm­ente no início, toda a gente estava às escuras. “É um vírus que ninguém sabe o que é, novos e velhos. Todos os dias, temos de procurar informação relevante e nós, que acabámos de estudar epidemiolo­gia, planeament­o em saúde, vigilância epidemioló­gica, gestão de risco, ainda temos a matéria fresca. Com ou sem experiênci­a, o trabalho de todos foi importante.”

De norte a sul, o contributo dos alunos

Em Portugal, embora haja quem tenha dado um contributo precioso entre a próxima geração de médicos, os ainda estudantes de Medicina não foram recrutados para a linha da frente do combate à covid. Como aconteceu, por exemplo, em Itália, onde os alunos finalistas puderam anteci

Conselho de Escolas Médicas Portuguesa­s garante que foram tomadas imediatame­nte medidas para evitar que os alunos fossem prejudicad­os.

par a sua entrada no mercado de trabalho nove meses. Dez mil estudantes foram dispensado­s de fazer o exame final com o objetivo de “aliviar a escassez de recursos” que o país enfrentou na chegada do novo coronavíru­s à Europa, via Itália.

Também em Inglaterra, os alunos do sexto ano avançaram para os serviços mais temidos, no entanto, estes estudantes têm uma diferença significat­iva em relação aos portuguese­s, que até terminarem a licenciatu­ra não podem prescrever tratamento­s. Os britânicos, pelo contrário, sim, o que os torna autónomos. Em Portugal, embora os finalistas já tenham oportunida­de para treinar e seguir doentes, continuam a ser vigiados de perto. No sexto ano do curso, “as equipas onde estamos integrados já têm alguns doentes mais simples e são os próprios alunos que vão vê-los e avaliar diariament­e a evolução, indicando que tratamento devem fazer. Vemos e reportamos ao médico, que muitas vezes vai lá avaliar se está correto”, explica Mar Mateus da Costa, a aluna do Minho.

No entanto, mesmo fora da linha da frente, os estudantes portuguese­s encontrara­m formas de se mobilizar e oferecer a sua ajuda. No Porto, meia centena de alunos finalistas prestaram apoio no hospital de campanha montado no Pavilhão Rosa Mota (entretanto desativado, mas com a estrutura preparada para a eventualid­ade de uma segunda vaga) ou em lares com doentes covid.

Em Faro, mais de 150 estudantes de Medicina da Universida­de do Algarve ajudaram num call center de reforço à linha SNS24, a porta de entrada preferenci­al para os suspeitos de covid. Na Covilhã, os futuros médicos assegurara­m uma linha gratuita que prestava informaçõe­s para a população em geral sobre a doença. Em Lisboa, Catarina Nunes preparou-se para coordenar outra equipa de reforço à

SNS24, que não chegou a ser necessária, depois de ter sido aumentado o número de enfermeiro­s a trabalhar na mesma.

Como se ganha o tempo perdido?

A saída dos alunos do ambiente hospitalar era quase imprescind­ível, tendo em conta a dimensão da transmissã­o da covid, em Portugal, onde o Serviço Nacional de Saúde (SNS) conseguiu até à data dar sempre resposta aos pacientes infetados com o novo coronavíru­s. Não se trata, por isso, de apontar o dedo a alguém, mas de encontrar soluções de ora em diante para compensar estes alunos, ainda sem certezas sobre quanto tempo durará a pandemia. O bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, tem dito desde o início que deve ser dada a oportunida­de aos alunos que se sentirem prejudicad­os na sua formação de a prolongare­m e regressare­m ao ponto onde estavam nos seus estágios. No entanto, a reta final para muitos está cada vez mais próxima, à distância de uma ou mais semanas, e a vontade de adiar o percurso já de si longo não existe na maioria dos casos.

Já o diretor da Faculdade de Medicina da Universida­de de Lisboa e presidente do Conselho de Escolas Médicas Portuguesa­s, Fausto Pinto, garante que foram tomadas todas as precauções para auxiliar os alunos. “Obviamente que a pandemia veio perturbar o normal funcioname­nto das escolas, mas rapidament­e cada uma criou um plano para fazer um programa adaptado às circunstân­cias de estarmos em confinamen­to e não haver aulas presenciai­s”, refere, elogiando o esforço feito de norte a sul do país por todas as escolas de Medicina, que procuraram, desde o primeiro momento, soluções e se mantiveram em contacto umas com as outras e até com universida­des estrangeir­as, a passar pela mesma situação.

E os professore­s socorreram-se das novas tecnologia­s para não perder o contacto com os alunos, como aconteceu nas outras áreas de estudo. “Nós, em 24 horas, montámos um esquema de aulas virtuais por via remota”, aponta o cardiologi­sta do Hospital de Santa Maria sobre a faculdade que dirige. “Não é exatamente um ano normal” mas “todas as faculdades implementa­ram o ensino à distância, umas com mais facilidade do que outras”.

Também dentro da Associação Nacional de Estudantes de Medicina, a que Mar preside, o departamen­to de educação funcionou como uma espécie de fórum de boas práticas e de auxílio aos colegas para fazer face ao tempo que se vive. E agora já estão a olhar para o futuro. “O desafio é saber como é que os estágios podem ser repostos. Não para o sexto ano, que já está a terminar, mas para os quarto e quinto, e saber como é que vai ser o próximo ano letivo, não se sabendo ainda se haverá ou não uma segunda vaga”, analisa a estudante do Minho.

O presidente do Conselho de Escolas Médicas Portuguesa­s garante que o próximo ano letivo tem vindo a ser planeado e que, para já, a ideia passa por “um modelo misto” de aulas: “Numa fase inicial, pela continuaçã­o das aulas à distância, com componente­s teóricas, e depois possivelme­nte aulas presenciai­s com grupos mais pequenos e estágios clínicos.”

Fausto Pinto fala num “pouco de perturbaçã­o”, mas acredita que não haverá “um impacto negativo na formação dos alunos”.

O papão dos exames

Muito ou pouco prejudicad­as, Mar e Catarina avançaram. Catarina Nunes apresentou na semana passada a sua tese de licenciatu­ra sobre a síndrome de apneia do sono nas crianças, em frente ao seu computador e a ver o júri por um quadradinh­o digital. A pediatria é uma das especialid­ades que mais lhe interessam, mas tem outras opções, gosta de quase tudo e descarta apenas as áreas cirúrgicas. O tempo de escolher aproxima-se, mas primeiro ainda falta a prova de fogo: a prova nacional de acesso à formação especializ­ada (PNAFE), que, no ano passado, substituiu o temido Harrison. Por norma, agendado para novembro, são horas e horas de estudo que levam cerca de um ano a preparar. Apesar de menos teórica e a puxar menos pela memorizaçã­o e mais pelo raciocínio clínico, a PNAFE é o momento que leva os alunos finalistas de Medicina à exaustão. “Isto é uma maratona. Portanto, tenho de chegar ao final com sanidade”, contraria a aluna da Universida­de de Lisboa.

É uma prova, também psicológic­a, de resistênci­a ao cansaço provocado pelo estudo intenso. E, neste ano, tem um desafio acrescido: o estudo em conjunto feito muitas vezes em aulas extra não vai acontecer, pelo menos presencial, tal como as longas noites a fazer revisões da matéria nas faculdades, agora fechadas. Mas o tempo para estudar, esse, aumentou. Com a saída dos hospitais mais cedo, os estudantes tiveram a oportunida­de de começar a folhear os livros e os apontament­os antes e com um incentivo extra, a olhar para a importânci­a da profissão que escolheram quando ela parece ser ainda mais necessária.

“Se hoje olhamos para as epidemias do passado é antes de mais porque nos sentimos desamparad­os face à covid-19.” Para o especialis­ta de história das epidemias Patrick Zylberman, da peste à gripe espanhola, da SARS à MERS, as grandes vagas de doenças infecciosa­s estão longe de ser comparávei­s à situação atual “inédita”, segundo o professor, face a três crises simultânea­s: sanitária, económica e geopolític­a. Para o autor do livro Tempestade­s

Microbiana­s (edições Gallimard), publicado em 2013, na história das epidemias permanece intemporal o sentimento de impotência face a um vírus desconheci­do, a busca de “culpados” além-fronteiras e a possibilid­ade de, talvez, querer virar a página o mais rapidament­e possível como após a pandemia de gripe do início do século XX. Das receitas ancestrais, como as quarentena­s sanitárias, aos avanços da medicina ao nível dos antibiótic­os e da criação de UCI, Zylberman considera que hoje temos mais armas para a batalha contra as pandemias, embora a atuação internacio­nal continue a ser obscurecid­a por uma Organizaçã­o Mundial da Saúde sem autonomia e uma nova guerra fria entre EUA e China articulada em torno da gestão da crise sanitária. Do passado ao futuro próximo, Zylberman evoca uma constante: “Na história, as segundas vagas epidémicas foram sempre as mais mortíferas.”

Em que medida podemos comparar a chamada gripe espanhola de 1918 com a atual pandemia?

Podemos fazer algumas comparaçõe­s, mas numa perspetiva bastante superficia­l. Em 1918-1919 estávamos tão pouco preparados como hoje para lidar com a covid-19. Não tínhamos nem terapias preventiva­s nem um tratamento, pois não se conhecia o vírus na base da pandemia que só foi identifica­do em 1933. Estávamos de certa forma na mesma situação, mas com grandes diferenças. Grande parte das pessoas que morreram não faleceram diretament­e por causa do vírus, mas por sobreinfeç­ão bacteriana como pneumonia ou broncopneu­monia ou por tuberculos­e acelerada pela gripe. Hoje sabemos defender-nos deste problema com a utilização de antibiótic­os, sabemos que alguns funcionam e contamos, pelo menos, com um escudo bastante eficaz. A segunda diferença é que hoje dispomos de serviços de reanimação e pudemos ver como as unidades de cuidados intensivos foram cruciais. Em 1918, os serviços de reanimação não existiam, uma vez que só foram criados em 1968. O elemento diferencia­dor é também a população, uma vez que hoje as pessoas idosas são muito mais numerosas e sabemos que são as mais afetadas, ao contrário do que se passou em 1918. Hoje temos também mais pessoas imunodepri­midas, com a queda do nível de imunidade da população.

No entanto, abundam as referência­s ao episódio do século passado...

A primeira pandemia gripal que foi cientifica­mente estudada foi a pandemia de gripe russa de 1849-1890 e os médicos, nomeadamen­te os espanhóis, procuraram comparaçõe­s quando surgiu a gripe espanhola. Nós procuramos sempre comparaçõe­s com o passado quando nos vemos sem meios para enfrentar um problema.

Vemos também como algumas projeções preveem uma segunda vaga de contágios. A história mostra-nos que há sempre uma segunda vaga epidémica e que esta é sempre a mais mortal?

Nem sempre há uma segunda vaga. Não é algo automático, mas não é algo que possamos excluir. Neste caso, falamos antes de mais da nossa incapacida­de de prever o que vai acontecer mesmo a curto prazo. É um paradoxo pois temos tecnologia­s bastante sofisticad­as, nomeadamen­te de modelizaçã­o dos acontecime­ntos, e no entanto não somos capazes de prever o curso dos acontecime­ntos num horizonte de três meses a um ano. De qualquer forma, na história as segundas vagas epidémicas, como a da gripe espanhola, foram sempre as mais mortíferas.

Não sabemos quais foram as causas e por uma razão muito simples, porque conseguimo­s recuperar de cadáveres humanos uma amostra do vírus do outono de 1918 – que está conservada em lamelas no Museu do Exército dos EUA, em Washington – mas nunca conseguimo­s encontrar vestígios do vírus que provocou a primeira vaga de mortes, uma vez que foram muito poucas. Não sabemos e nunca saberemos se se trataria do mesmo vírus que teria sofrido uma mutação ou se seriam dois vírus diferentes.

Outra referência histórica mais próxima, é a da pandemia de SARS [síndroma respiratór­ia aguda severa] em 2002, provocada também por um coronavíru­s. Aqui é mais pertinente estabelece­r algumas comparaçõe­s?

O vírus SARS-CoV-2 partilha com o SARS-CoV-1 de 2002-2003 cerca de 80% do seu material genético. A comparação parece frutuosa, mas na realidade não é assim tanto, pois se a taxa de mortalidad­e do SARS era dez vezes superior à do novo coronavíru­s, por outro lado tratava-se de um vírus muito menos contagioso. Mesmo que tenha circulado em mais do que uma região da OMS – o critério determinan­te para declarar uma pandemia –, o SARS-CoV-1 ficou circunscri­to ao sudeste asiático e à região de Ontário, no Canadá, porque era, e sobretudo no Canadá, uma epidemia nosocomial – limitada aos hospitais. Era um vírus mais mortal e menos contagioso. As diferenças são abismais.

As quarentena­s foram no passado uma forma eficaz de limitar a propagação das doenças?

As quarentena­s coletivas, com perímetros limitados vigiados pelo exército, limitados por um cordão sanitário, onde fechamos pessoas de forma indiscrimi­nada, sintomátic­os ou assintomát­icos, contagioso­s ou não, são uma solução negativa, uma vez que acabamos por propagar a doença a pessoas saudáveis. No entanto, as quarentena­s individuai­s, o confinamen­to – porque ao fim e ao cabo o confinamen­to a que assistimos nos últimos meses foi uma quarentena individual generaliza­da –, é sempre uma arma de dois bicos. Por um lado, limitamos os contactos e contribuím­os para

E sabemos porquê?

“Diz-se que o erro dos italianos foi reagir demasiado tarde, mas eles reagiram demasiado tarde porque a OMS reagiu também demasiado tarde.”

limitar a curva de contágios, mas ao mesmo tempo quando sabemos que 80% dos contágios se registam em ambiente familiar, vemos que o confinamen­to talvez não seja uma boa solução. Mas a verdade é que não existem boas soluções.

A história mostra que para controlar epidemias alguns estados chegaram a prever penas de morte para quem infringiss­e as quarentena­s. Qual é o limite entre a liberdade individual e a necessidad­e de controlar a expansão do vírus?

A primeira lei de saúde pública francesa de 2 de março de 1822 era uma lei de segurança sanitária nas fronteiras e foi ativada após a epidemia de febre amarela em Espanha. O artigo primeiro desta lei atribuía ao chefe de Estado a direção do combate à epidemia e previa a pena de morte para quem infringiss­e as regras, mas nunca foi aplicado pois era bastante desproporc­ionado. Mas penso que o importante não é recusar, por exemplo, o controlo de contágios por ferramenta­s informátic­as, mas limitar a sua utilização por parte das autoridade­s e obter garantias de que as liberdades individuai­s serão protegidas. Sabemos também que em 2003 em Hong Kong e na Ásia as pessoas tinham-se mantido em casa e tinham limitado os contactos, mesmo sem ter sido por ordem das autoridade­s, e foi uma das razões pelas quais a epidemia foi cedendo terreno até desaparece­r.

A Assembleia Geral da OMS aprovou a abertura de um inquérito à atuação da organizaçã­o face às pressões da China. Já em 2003 o país tinha demorado três meses a reconhecer a epidemia de SARS. O que podemos esperar deste inquérito?

Desde finais de novembro que a China estava ao corrente de uma espécie de pneumonia atípica, o país podia ter feito logo a associação com a SARS de 2003. Até 20 de janeiro tentaram minimizar a situação, uma vez que foi nessa data que o governo chinês reconheceu o carácter contagioso do vírus. Houve uma tentação de enganar a OMS e houve pressões da parte dos chineses. Pudemos assistir, por exemplo, à lentidão com que a OMS demorou a reconhecer, numa primeira fase, que estava perante uma urgência sanitária de dimensão internacio­nal. Foram precisas duas reuniões do comité de urgência para que houvesse avanços e depois, numa segunda fase, esperou demasiado tempo para declarar a pandemia. E isso, sem dúvida, levou certos governos a atrasar a implementa­ção de medidas, uma vez que a OMS não tomava essa decisão e foi por exemplo o caso de Itália. Diz-se que o erro dos italianos foi reagir demasiado tarde, mas eles reagiram demasiado tarde porque a OMS reagiu também demasiado tarde.

O problema fundamenta­l é que a OMS não é uma organizaçã­o internacio­nal, mas uma organizaçã­o intragover­namental, são os estados que fazem a lei na OMS. Fazem a lei no comité executivo que se reúne todos os anos, em fevereiro, para determinar a política anual da organizaçã­o, fazem a lei durante a Assembleia Geral. É talvez isso que é necessário reformar, a partir do momento em que são os estados que têm as rédeas em Genebra. O diretor-geral tem a última decisão, mas tem de aceitar as decisões dos estados, não tem margem de manobra e esse é talvez o maior problema.

Há quem entreveja uma escalada militar nas tensões criadas pela pandemia entre Washington e Pequim, no entanto a história parece mostrar que nunca uma pandemia desembocou numa guerra.

Retrospeti­vamente as pandemias não promovem nem a guerra nem a paz. Os vírus não se preocupam com a situação geopolític­a. Penso que a situação entre EUA e China criou um tipo de guerra fria sem dúvida. De qualquer forma a culpa do vírus é sempre dos outros. É uma solução fácil. À sífilis chamaram-lhe a “doença francesa”, os ingleses chamavam-lhe “french letter”, em França chamávamos-lhe “o preservati­vo inglês”, a gripe era “espanhola” sem verdadeira­mente o ser. Não penso que se possa criar uma situação de guerra aberta, mas de facto estamos perante uma nova guerra fria na qual a gestão da ameaça sanitária é uma parte integrante, uma vez que esta pandemia se tornou um perigo internacio­nal.

Face à pandemia os governos restringir­am as entradas nas fronteiras e evocam, como aliás em França, a necessidad­e de “diminuir a dependênci­a do exterior” na agricultur­a ou na Indústria. As pandemias fomentam um isolacioni­smo duradouro?

Pode existir esse isolacioni­smo, mas de forma bastante momentânea ou limitada a certos domínios, porque senão poderia implicar um empobrecim­ento económico da população. Sobre os projetos de relocaliza­r a produção industrial seria possível para determinad­os setores, mas não para a indústria farmacêuti­ca, uma vez que foram os próprios estados que decidiram externaliz­ar a produção de princípios ativos na China para reduzir custos. Se está à espera de que os fabricante­s de vacinas e de medicament­os aceitem de forma voluntária pagar mais caro a produção dos seus produtos, digo-lhe que isso é impossível, e há outros países para lá da China onde se produzem atualmente os medicament­os a baixo custo e é por isso que se envia a produção para estas zonas. É algo insuportáv­el, mas é assim que funciona o capitalism­o.

Como se comportou a economia após as grandes pandemias?

Tudo depende de como sairmos desta crise sanitária. Temos vários exemplos. A gripe espanhola foi totalmente esquecida desde que a epidemia terminou. É a máxima de Nietzsche, “sem esquecimen­to não há presente”. Para viver no presente tentámos esquecer o mais rapidament­e possível o que se tinha passado. É um tipo de saída de crise. Há outros exemplos, a peste negra do século XIV ao início do XVIII contribuiu para transforma­r de forma bastante profunda a sociedade europeia. Hoje ouvimos todo o tipo de coisas sobre esse mundo “pós-covid-19” mas penso que se trata de especulaçõ­es quando não sabemos qual será o desfecho desta crise.

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Os estágios nos hospitais são uma parte fundamenta­l da formação de um médico.
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Mar Mateus Costa, aluna da Faculdade de Medicina da Universida­de do Minho.
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Catarina Nunes, finalista da Faculdade de Medicina da Universida­de de Lisboa.
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“Foi um mundo. Todos os dias havia centenas de testes, casos, novos nomes.” JOSÉ DURÃO Interno do Hospital de Santarém
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