Prestes a “meter as mãos na massa”, a covid-19 mandou-os para casa
Mais uns meses e Mar Mateus e Catarina estariam a enfrentar o coronavírus dentro de um hospital. São alunas finalistas do curso de Medicina, apesar de terem visto cancelados parte dos seus estágios finais por causa do novo coronavírus. A prática do curso
Quando a covid-19 chegou a Portugal, em março, uma das primeiras reações das escolas de medicina, além de fecharem as portas, foi retirar do terreno os alunos que estavam a estagiar; proteger quem ainda não tinha de lidar com o desafio de uma pandemia à escala mundial. Muitos estudantes ficaram com meses de experiência no terreno por cumprir, em que deveriam estar a seguir os futuros colegas e a viver a realidade dos hospitais e dos centros de saúde por dentro. Assistiram de fora ao desenrolar de um combate que provavelmente teriam de travar se o novo coronavírus tivesse sido descoberto daqui a uns meses.
Catarina Nunes, 23 anos, é finalista do curso de Medicina da Universidade de Lisboa e encontrava-se no serviço de cirurgia geral do Hospital Amadora-Sintra, quando lhe disseram que não poderia continuar a ir diariamente à unidade hospitalar. Prestes a terminar a formação básica de um médico, viu cancelado o estágio final, que tinha começado em outubro e que deveria ir até junho.
O sexto ano – e último do curso – é a altura em que os estudantes passam pelas diferentes especialidades da profissão (cardiologia, pediatria, psiquiatria, ginecologia, medicina interna, por exemplo) para melhor entenderem qual o papel de cada médico. No caso do grupo de alunos em que Catarina Nunes estava inserida, a rotação pelos diferentes serviços no hospital foi tirada à sorte. Uns tiveram mais do que outros. Cada aluno ficou com uma parte específica da sua formação em falta, que foi compensada com aulas extra através de videoconferência. Catarina Nunes diz que estas aulas em que se discutiam, entre outras coisas, casos clínicos foram muito úteis, ao ponto de deixar o conselho para serem mantidas mesmo depois de ultrapassada a pandemia. Mas a experiência no hospital é a experiência no hospital. E não é substituível. É preciso ver os doentes, apalpá-los para sentir as suas dores e servir de sombra aos mais velhos, com quem estão a aprender.
“O foco do nosso sexto ano [do curso] são os estágios nos hospitais e nos centros de saúde. É o ano em que começamos a meter mesmo as mãos na massa”, explica a aluna da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. “Estava a gostar muito e partiu-me o coração ter de ir para casa”, confessa a futura médica.
A par da interrupção do estágio – que aconteceu ainda antes de as universidades terem cancelado as aulas presenciais – ficou um sabor agridoce. Pôde ficar com a família em casa e evitar o risco acrescido de percorrer os corredores hospitalares todos os dias, mas foi para isso mesmo que seguiu esta área de estudos: para ajudar a
Os alunos finalistas de Medicina tiveram de trocar os hospitais por aulas teóricas e vão acabar o curso sem ter passado por alguns serviços.
curar pessoas. Foi uma questão de meses. Mais dois ou três e provavelmente estaria lado a lado com os “heróis” com condecoração prometida pelo Presidente da República, no Dia de Portugal.
“Numa fase inicial, senti-me de mãos atadas. Faltava tão pouco para terminar o curso. Senti impotência por querer ajudar e não conseguir”, diz Catarina Nunes.
A aluna finalista do curso de Medicina da Universidade do Minho Mar Mateus Costa, 24 anos, também acha que a vontade de ir para o terreno acelera num momento “histórico”, como este, mas reconhece que a sua ajuda ainda não seria tão valiosa como daqui a uns meses. “Ainda não sabemos mexer em ventiladores, não sabemos os circuitos perfeitos nas urgências”, lembra. Por isso, para já, o trabalho é de bastidores. A responsabilidade existe, a partir do momento em que escolheu a profissão, e ainda para mais tendo um gosto especial pela vertente de saúde pública, área que parece ter ganhado mais destaque com o surto do novo coronavírus. Por isso, enquanto espera pelo momento de traçar relações epidemiológicas e de dar conselhos de saúde pública a um número mais vasto de pessoas, começa em casa, sensibilizando e vigiando pais, avós, tios, amigos.
A Faculdade de Medicina da Universidade do Minho foi a primeira a encerrar portas no país, depois de ter sido encontrado um caso de um aluno com covid-19, não entre os estudantes de Medicina, mas no polo universitário. Mar estava, desde janeiro, a percorrer as especialidades do Hospital de Braga em busca daquela que lhe assentaria melhor dentro de um ano, quando tiver de se candidatar a uma.
Em março, encontrava-se a terminar o primeiro bloco do seu estágio em medicina interna. “Na altura, ficámos sem saber o que ia acontecer. O que a escola fez foi enviar-nos alguns materiais para ir estimulando o raciocínio clínico, mas em formato voluntário, porque não era nada que já estivesse predefinido no nosso currículo”, refere a estudante de Medicina, que não se sente tão prejudicada na sua formação quanto outros colegas, porque conseguiu fazer estágio numa ala “mais generalista e das que mais fomentam o raciocínio clínico”, a medicina interna. “Há colegas que só fizeram psicologia ou ginecologia, faltou-lhes uma base mais geral. A mim, vão faltar-me técnicas específicas, porque por mais que estude não há nada que compense uma situação de urgência, de internamento, de vermos a história in loco, mas será sempre mais fácil”.
Apesar disto, nem uma nem outra colocam em causa a decisão de retirar os estudantes de Medicina dos hospitais durante a covid-19. Estes “estavam a ficar lotados e ter mais cinco mil estudantes poderia ser um perigo tanto para os doentes como para os estudantes”, admite Mar. “Por outro lado, os médicos, que estavam a fazer
“Senti-me de mãos atadas. Faltava tão pouco para terminar o curso. Senti impotência por querer ajudar e não conseguir”, diz a finalista Catarina Nunes.
mais turnos tinham cada vez menos disponibilidade para estar com os alunos”, diz a também presidente da Associação Nacional de Estudantes de Medicina (ANEM).
“Mais do que ninguém temos de reconhecer o perigo para todos os envolvidos que era manter os estudantes nos hospitais, mas espero que os estudantes continuem a ser acompanhados. Porque aulas teóricas não substituem a prática clínica e temos de colmatar ao máximo essas falhas”, insiste.
1.ª experiência: combater a pandemia
José Durão, 27 anos, não pode apontar falhas ao apoio que teve dos colegas mais velhos. Terminou o curso e já é interno de formação geral (ano comum, antes da especialidade) no Hospital de Santarém. Logo, uma das suas primeiras experiências depois da licenciatura foi ajudar no combate à pandemia.
Os internos não deixaram os hospitais, pelo menos a maior parte, mas alguns foram diminuindo a sua participação no ambiente hospitalar por falta de apoio dos seus orientadores ou até por restrições nos espaços. “Há pessoas que ficaram esquecidas no meio disto tudo. Tive colegas que estão há mais de dois meses a fazer estágio de cirurgia e que nunca participaram numa operação ou que não fizeram uma urgência”, diz José, acrescentando que não foi o seu caso. Faz parte dos recrutados. O recém-formado foi um dos detetives da saúde pública que procuraram ativamente novos casos à volta dos infetados e que vigiavam os doentes e/ou seus contactos, através do telefonemas diários. “Foi um mundo. Todos os dias havia centenas e centenas de testes [de despiste de covid], de casos, de novos nomes e eu ajudava a rastrear os contactos”, diz.
Ligava às pessoas sinalizadas como tendo estado em contacto com um doente de covid e perguntava-lhes onde tinham estado, com quem, quanto tempo, entre outras informações que ajudassem a traçar um percurso. Esta história servia depois para isolar o máximo de cidadãos suspeitos de poderem transmitir covid e controlar as cadeias de transmissão, impedindo que a doença continue a circular.
A facilidade com que lida com as novas tecnologias fê-lo adaptar-se rapidamente à plataforma TraceCovid – a ferramenta utilizada no acompanhamento de doentes em vigilância e autocuidados. “Somos uma geração que está muito à vontade com os computadores e com as plataformas e acabamos por ser muito úteis.” Isto apesar de reconhecer deficiências profundas nos meios informáticos e plataformas “antigas”, “morosas” e “difíceis de usar” com que os médicos trabalham.
Inicialmente, quando a palavra covid começou a entrar no nosso vocabulário, José também foi vendo reduzida a sua participação em algumas áreas hospitalares, como o acesso às urgências ou aos blocos operatórios. “Deram-nos mais trabalho de enfermaria. Os médicos mais velhos tiveram de ficar em casa para se protegerem e nós reforçámos as enfermarias.” Mas foi preciso mais.
Para José – que no final de março estava a terminar um estágio em cirurgia – esta foi uma oportunidade de explorar uma vertente da medicina que veio a confirmar interessar-lhe muito – a saúde pública. “Gosto de clínica, mas não me vejo décadas dentro de um hospital. E comecei a acreditar muito na prevenção, no planeamento de reformas da saúde, na sensibilização das populações. Se o sistema funcionar reduzimos muito a carga de doenças no futuro e a necessidade de recorrer a meios hospitalares. Na verdade, isso acaba por ser uma coisa boa desta pandemia: estamos a sensibilizar uma população inteira para cuidados simples que podem ter para prevenir doença”, aponta o interno.
Pouco tempo depois de ter saído da faculdade, olha à sua volta e reconhece que acabou “por passar por algo que nunca passaria noutra altura. E isso dá-nos outras ferramentas. Todas as pessoas da minha geração vão ficar com uma visão muito diferente de epidemiologia, de saúde pública”.
O médico Francisco Rocha, 28 anos, concorda. Encontra-se a fazer o terceiro ano de quatro da especialização em saúde pública no Agrupamento de Centro de Saúde (ACES) Lisboa Central, que contou com a ajuda de internos também durante a pandemia. E tem esperança de que esta seja uma forma de dar a conhecer à sociedade o trabalho dos médicos de saúde pública, que também salvam vidas. “Simplesmente, nós não sabemos quem salvamos, ao contrário dos colegas do hospital, que ventilaram, trataram. Mas temos a certeza de que salvámos centenas ou milhares de pessoas”, sublinha. “Ao isolar os suspeitos, impedimos que estes tivessem contacto, por exemplo, com outras dez pessoas. Imaginemos que duas destas eram recetíveis ao vírus e que iam passar mal, nós impedimos isso”, acrescenta, usando como exemplo os números da pandemia no país: “Apesar de termos um número elevado de casos e de mortes, em Portugal, somos um bom exemplo. Reagimos depressa e bem.”
Sobre os mais jovens ainda, que estiveram ao seu lado a rastrear contactos nos centros de saúde, refere que “foram exímios na ajuda”. “Uma vez que já têm alguma experiência clínica ajudavam a distinguir os sintomas sugestivos de infeção covid-19 e faziam o encaminhamento para os médicos de família para fazerem o teste de despiste.” Para Francisco Rocha, o que conta nesta altura não é a idade, porque, principalmente no início, toda a gente estava às escuras. “É um vírus que ninguém sabe o que é, novos e velhos. Todos os dias, temos de procurar informação relevante e nós, que acabámos de estudar epidemiologia, planeamento em saúde, vigilância epidemiológica, gestão de risco, ainda temos a matéria fresca. Com ou sem experiência, o trabalho de todos foi importante.”
De norte a sul, o contributo dos alunos
Em Portugal, embora haja quem tenha dado um contributo precioso entre a próxima geração de médicos, os ainda estudantes de Medicina não foram recrutados para a linha da frente do combate à covid. Como aconteceu, por exemplo, em Itália, onde os alunos finalistas puderam anteci
Conselho de Escolas Médicas Portuguesas garante que foram tomadas imediatamente medidas para evitar que os alunos fossem prejudicados.
par a sua entrada no mercado de trabalho nove meses. Dez mil estudantes foram dispensados de fazer o exame final com o objetivo de “aliviar a escassez de recursos” que o país enfrentou na chegada do novo coronavírus à Europa, via Itália.
Também em Inglaterra, os alunos do sexto ano avançaram para os serviços mais temidos, no entanto, estes estudantes têm uma diferença significativa em relação aos portugueses, que até terminarem a licenciatura não podem prescrever tratamentos. Os britânicos, pelo contrário, sim, o que os torna autónomos. Em Portugal, embora os finalistas já tenham oportunidade para treinar e seguir doentes, continuam a ser vigiados de perto. No sexto ano do curso, “as equipas onde estamos integrados já têm alguns doentes mais simples e são os próprios alunos que vão vê-los e avaliar diariamente a evolução, indicando que tratamento devem fazer. Vemos e reportamos ao médico, que muitas vezes vai lá avaliar se está correto”, explica Mar Mateus da Costa, a aluna do Minho.
No entanto, mesmo fora da linha da frente, os estudantes portugueses encontraram formas de se mobilizar e oferecer a sua ajuda. No Porto, meia centena de alunos finalistas prestaram apoio no hospital de campanha montado no Pavilhão Rosa Mota (entretanto desativado, mas com a estrutura preparada para a eventualidade de uma segunda vaga) ou em lares com doentes covid.
Em Faro, mais de 150 estudantes de Medicina da Universidade do Algarve ajudaram num call center de reforço à linha SNS24, a porta de entrada preferencial para os suspeitos de covid. Na Covilhã, os futuros médicos asseguraram uma linha gratuita que prestava informações para a população em geral sobre a doença. Em Lisboa, Catarina Nunes preparou-se para coordenar outra equipa de reforço à
SNS24, que não chegou a ser necessária, depois de ter sido aumentado o número de enfermeiros a trabalhar na mesma.
Como se ganha o tempo perdido?
A saída dos alunos do ambiente hospitalar era quase imprescindível, tendo em conta a dimensão da transmissão da covid, em Portugal, onde o Serviço Nacional de Saúde (SNS) conseguiu até à data dar sempre resposta aos pacientes infetados com o novo coronavírus. Não se trata, por isso, de apontar o dedo a alguém, mas de encontrar soluções de ora em diante para compensar estes alunos, ainda sem certezas sobre quanto tempo durará a pandemia. O bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, tem dito desde o início que deve ser dada a oportunidade aos alunos que se sentirem prejudicados na sua formação de a prolongarem e regressarem ao ponto onde estavam nos seus estágios. No entanto, a reta final para muitos está cada vez mais próxima, à distância de uma ou mais semanas, e a vontade de adiar o percurso já de si longo não existe na maioria dos casos.
Já o diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e presidente do Conselho de Escolas Médicas Portuguesas, Fausto Pinto, garante que foram tomadas todas as precauções para auxiliar os alunos. “Obviamente que a pandemia veio perturbar o normal funcionamento das escolas, mas rapidamente cada uma criou um plano para fazer um programa adaptado às circunstâncias de estarmos em confinamento e não haver aulas presenciais”, refere, elogiando o esforço feito de norte a sul do país por todas as escolas de Medicina, que procuraram, desde o primeiro momento, soluções e se mantiveram em contacto umas com as outras e até com universidades estrangeiras, a passar pela mesma situação.
E os professores socorreram-se das novas tecnologias para não perder o contacto com os alunos, como aconteceu nas outras áreas de estudo. “Nós, em 24 horas, montámos um esquema de aulas virtuais por via remota”, aponta o cardiologista do Hospital de Santa Maria sobre a faculdade que dirige. “Não é exatamente um ano normal” mas “todas as faculdades implementaram o ensino à distância, umas com mais facilidade do que outras”.
Também dentro da Associação Nacional de Estudantes de Medicina, a que Mar preside, o departamento de educação funcionou como uma espécie de fórum de boas práticas e de auxílio aos colegas para fazer face ao tempo que se vive. E agora já estão a olhar para o futuro. “O desafio é saber como é que os estágios podem ser repostos. Não para o sexto ano, que já está a terminar, mas para os quarto e quinto, e saber como é que vai ser o próximo ano letivo, não se sabendo ainda se haverá ou não uma segunda vaga”, analisa a estudante do Minho.
O presidente do Conselho de Escolas Médicas Portuguesas garante que o próximo ano letivo tem vindo a ser planeado e que, para já, a ideia passa por “um modelo misto” de aulas: “Numa fase inicial, pela continuação das aulas à distância, com componentes teóricas, e depois possivelmente aulas presenciais com grupos mais pequenos e estágios clínicos.”
Fausto Pinto fala num “pouco de perturbação”, mas acredita que não haverá “um impacto negativo na formação dos alunos”.
O papão dos exames
Muito ou pouco prejudicadas, Mar e Catarina avançaram. Catarina Nunes apresentou na semana passada a sua tese de licenciatura sobre a síndrome de apneia do sono nas crianças, em frente ao seu computador e a ver o júri por um quadradinho digital. A pediatria é uma das especialidades que mais lhe interessam, mas tem outras opções, gosta de quase tudo e descarta apenas as áreas cirúrgicas. O tempo de escolher aproxima-se, mas primeiro ainda falta a prova de fogo: a prova nacional de acesso à formação especializada (PNAFE), que, no ano passado, substituiu o temido Harrison. Por norma, agendado para novembro, são horas e horas de estudo que levam cerca de um ano a preparar. Apesar de menos teórica e a puxar menos pela memorização e mais pelo raciocínio clínico, a PNAFE é o momento que leva os alunos finalistas de Medicina à exaustão. “Isto é uma maratona. Portanto, tenho de chegar ao final com sanidade”, contraria a aluna da Universidade de Lisboa.
É uma prova, também psicológica, de resistência ao cansaço provocado pelo estudo intenso. E, neste ano, tem um desafio acrescido: o estudo em conjunto feito muitas vezes em aulas extra não vai acontecer, pelo menos presencial, tal como as longas noites a fazer revisões da matéria nas faculdades, agora fechadas. Mas o tempo para estudar, esse, aumentou. Com a saída dos hospitais mais cedo, os estudantes tiveram a oportunidade de começar a folhear os livros e os apontamentos antes e com um incentivo extra, a olhar para a importância da profissão que escolheram quando ela parece ser ainda mais necessária.
“Se hoje olhamos para as epidemias do passado é antes de mais porque nos sentimos desamparados face à covid-19.” Para o especialista de história das epidemias Patrick Zylberman, da peste à gripe espanhola, da SARS à MERS, as grandes vagas de doenças infecciosas estão longe de ser comparáveis à situação atual “inédita”, segundo o professor, face a três crises simultâneas: sanitária, económica e geopolítica. Para o autor do livro Tempestades
Microbianas (edições Gallimard), publicado em 2013, na história das epidemias permanece intemporal o sentimento de impotência face a um vírus desconhecido, a busca de “culpados” além-fronteiras e a possibilidade de, talvez, querer virar a página o mais rapidamente possível como após a pandemia de gripe do início do século XX. Das receitas ancestrais, como as quarentenas sanitárias, aos avanços da medicina ao nível dos antibióticos e da criação de UCI, Zylberman considera que hoje temos mais armas para a batalha contra as pandemias, embora a atuação internacional continue a ser obscurecida por uma Organização Mundial da Saúde sem autonomia e uma nova guerra fria entre EUA e China articulada em torno da gestão da crise sanitária. Do passado ao futuro próximo, Zylberman evoca uma constante: “Na história, as segundas vagas epidémicas foram sempre as mais mortíferas.”
Em que medida podemos comparar a chamada gripe espanhola de 1918 com a atual pandemia?
Podemos fazer algumas comparações, mas numa perspetiva bastante superficial. Em 1918-1919 estávamos tão pouco preparados como hoje para lidar com a covid-19. Não tínhamos nem terapias preventivas nem um tratamento, pois não se conhecia o vírus na base da pandemia que só foi identificado em 1933. Estávamos de certa forma na mesma situação, mas com grandes diferenças. Grande parte das pessoas que morreram não faleceram diretamente por causa do vírus, mas por sobreinfeção bacteriana como pneumonia ou broncopneumonia ou por tuberculose acelerada pela gripe. Hoje sabemos defender-nos deste problema com a utilização de antibióticos, sabemos que alguns funcionam e contamos, pelo menos, com um escudo bastante eficaz. A segunda diferença é que hoje dispomos de serviços de reanimação e pudemos ver como as unidades de cuidados intensivos foram cruciais. Em 1918, os serviços de reanimação não existiam, uma vez que só foram criados em 1968. O elemento diferenciador é também a população, uma vez que hoje as pessoas idosas são muito mais numerosas e sabemos que são as mais afetadas, ao contrário do que se passou em 1918. Hoje temos também mais pessoas imunodeprimidas, com a queda do nível de imunidade da população.
No entanto, abundam as referências ao episódio do século passado...
A primeira pandemia gripal que foi cientificamente estudada foi a pandemia de gripe russa de 1849-1890 e os médicos, nomeadamente os espanhóis, procuraram comparações quando surgiu a gripe espanhola. Nós procuramos sempre comparações com o passado quando nos vemos sem meios para enfrentar um problema.
Vemos também como algumas projeções preveem uma segunda vaga de contágios. A história mostra-nos que há sempre uma segunda vaga epidémica e que esta é sempre a mais mortal?
Nem sempre há uma segunda vaga. Não é algo automático, mas não é algo que possamos excluir. Neste caso, falamos antes de mais da nossa incapacidade de prever o que vai acontecer mesmo a curto prazo. É um paradoxo pois temos tecnologias bastante sofisticadas, nomeadamente de modelização dos acontecimentos, e no entanto não somos capazes de prever o curso dos acontecimentos num horizonte de três meses a um ano. De qualquer forma, na história as segundas vagas epidémicas, como a da gripe espanhola, foram sempre as mais mortíferas.
Não sabemos quais foram as causas e por uma razão muito simples, porque conseguimos recuperar de cadáveres humanos uma amostra do vírus do outono de 1918 – que está conservada em lamelas no Museu do Exército dos EUA, em Washington – mas nunca conseguimos encontrar vestígios do vírus que provocou a primeira vaga de mortes, uma vez que foram muito poucas. Não sabemos e nunca saberemos se se trataria do mesmo vírus que teria sofrido uma mutação ou se seriam dois vírus diferentes.
Outra referência histórica mais próxima, é a da pandemia de SARS [síndroma respiratória aguda severa] em 2002, provocada também por um coronavírus. Aqui é mais pertinente estabelecer algumas comparações?
O vírus SARS-CoV-2 partilha com o SARS-CoV-1 de 2002-2003 cerca de 80% do seu material genético. A comparação parece frutuosa, mas na realidade não é assim tanto, pois se a taxa de mortalidade do SARS era dez vezes superior à do novo coronavírus, por outro lado tratava-se de um vírus muito menos contagioso. Mesmo que tenha circulado em mais do que uma região da OMS – o critério determinante para declarar uma pandemia –, o SARS-CoV-1 ficou circunscrito ao sudeste asiático e à região de Ontário, no Canadá, porque era, e sobretudo no Canadá, uma epidemia nosocomial – limitada aos hospitais. Era um vírus mais mortal e menos contagioso. As diferenças são abismais.
As quarentenas foram no passado uma forma eficaz de limitar a propagação das doenças?
As quarentenas coletivas, com perímetros limitados vigiados pelo exército, limitados por um cordão sanitário, onde fechamos pessoas de forma indiscriminada, sintomáticos ou assintomáticos, contagiosos ou não, são uma solução negativa, uma vez que acabamos por propagar a doença a pessoas saudáveis. No entanto, as quarentenas individuais, o confinamento – porque ao fim e ao cabo o confinamento a que assistimos nos últimos meses foi uma quarentena individual generalizada –, é sempre uma arma de dois bicos. Por um lado, limitamos os contactos e contribuímos para
E sabemos porquê?
“Diz-se que o erro dos italianos foi reagir demasiado tarde, mas eles reagiram demasiado tarde porque a OMS reagiu também demasiado tarde.”
limitar a curva de contágios, mas ao mesmo tempo quando sabemos que 80% dos contágios se registam em ambiente familiar, vemos que o confinamento talvez não seja uma boa solução. Mas a verdade é que não existem boas soluções.
A história mostra que para controlar epidemias alguns estados chegaram a prever penas de morte para quem infringisse as quarentenas. Qual é o limite entre a liberdade individual e a necessidade de controlar a expansão do vírus?
A primeira lei de saúde pública francesa de 2 de março de 1822 era uma lei de segurança sanitária nas fronteiras e foi ativada após a epidemia de febre amarela em Espanha. O artigo primeiro desta lei atribuía ao chefe de Estado a direção do combate à epidemia e previa a pena de morte para quem infringisse as regras, mas nunca foi aplicado pois era bastante desproporcionado. Mas penso que o importante não é recusar, por exemplo, o controlo de contágios por ferramentas informáticas, mas limitar a sua utilização por parte das autoridades e obter garantias de que as liberdades individuais serão protegidas. Sabemos também que em 2003 em Hong Kong e na Ásia as pessoas tinham-se mantido em casa e tinham limitado os contactos, mesmo sem ter sido por ordem das autoridades, e foi uma das razões pelas quais a epidemia foi cedendo terreno até desaparecer.
A Assembleia Geral da OMS aprovou a abertura de um inquérito à atuação da organização face às pressões da China. Já em 2003 o país tinha demorado três meses a reconhecer a epidemia de SARS. O que podemos esperar deste inquérito?
Desde finais de novembro que a China estava ao corrente de uma espécie de pneumonia atípica, o país podia ter feito logo a associação com a SARS de 2003. Até 20 de janeiro tentaram minimizar a situação, uma vez que foi nessa data que o governo chinês reconheceu o carácter contagioso do vírus. Houve uma tentação de enganar a OMS e houve pressões da parte dos chineses. Pudemos assistir, por exemplo, à lentidão com que a OMS demorou a reconhecer, numa primeira fase, que estava perante uma urgência sanitária de dimensão internacional. Foram precisas duas reuniões do comité de urgência para que houvesse avanços e depois, numa segunda fase, esperou demasiado tempo para declarar a pandemia. E isso, sem dúvida, levou certos governos a atrasar a implementação de medidas, uma vez que a OMS não tomava essa decisão e foi por exemplo o caso de Itália. Diz-se que o erro dos italianos foi reagir demasiado tarde, mas eles reagiram demasiado tarde porque a OMS reagiu também demasiado tarde.
O problema fundamental é que a OMS não é uma organização internacional, mas uma organização intragovernamental, são os estados que fazem a lei na OMS. Fazem a lei no comité executivo que se reúne todos os anos, em fevereiro, para determinar a política anual da organização, fazem a lei durante a Assembleia Geral. É talvez isso que é necessário reformar, a partir do momento em que são os estados que têm as rédeas em Genebra. O diretor-geral tem a última decisão, mas tem de aceitar as decisões dos estados, não tem margem de manobra e esse é talvez o maior problema.
Há quem entreveja uma escalada militar nas tensões criadas pela pandemia entre Washington e Pequim, no entanto a história parece mostrar que nunca uma pandemia desembocou numa guerra.
Retrospetivamente as pandemias não promovem nem a guerra nem a paz. Os vírus não se preocupam com a situação geopolítica. Penso que a situação entre EUA e China criou um tipo de guerra fria sem dúvida. De qualquer forma a culpa do vírus é sempre dos outros. É uma solução fácil. À sífilis chamaram-lhe a “doença francesa”, os ingleses chamavam-lhe “french letter”, em França chamávamos-lhe “o preservativo inglês”, a gripe era “espanhola” sem verdadeiramente o ser. Não penso que se possa criar uma situação de guerra aberta, mas de facto estamos perante uma nova guerra fria na qual a gestão da ameaça sanitária é uma parte integrante, uma vez que esta pandemia se tornou um perigo internacional.
Face à pandemia os governos restringiram as entradas nas fronteiras e evocam, como aliás em França, a necessidade de “diminuir a dependência do exterior” na agricultura ou na Indústria. As pandemias fomentam um isolacionismo duradouro?
Pode existir esse isolacionismo, mas de forma bastante momentânea ou limitada a certos domínios, porque senão poderia implicar um empobrecimento económico da população. Sobre os projetos de relocalizar a produção industrial seria possível para determinados setores, mas não para a indústria farmacêutica, uma vez que foram os próprios estados que decidiram externalizar a produção de princípios ativos na China para reduzir custos. Se está à espera de que os fabricantes de vacinas e de medicamentos aceitem de forma voluntária pagar mais caro a produção dos seus produtos, digo-lhe que isso é impossível, e há outros países para lá da China onde se produzem atualmente os medicamentos a baixo custo e é por isso que se envia a produção para estas zonas. É algo insuportável, mas é assim que funciona o capitalismo.
Como se comportou a economia após as grandes pandemias?
Tudo depende de como sairmos desta crise sanitária. Temos vários exemplos. A gripe espanhola foi totalmente esquecida desde que a epidemia terminou. É a máxima de Nietzsche, “sem esquecimento não há presente”. Para viver no presente tentámos esquecer o mais rapidamente possível o que se tinha passado. É um tipo de saída de crise. Há outros exemplos, a peste negra do século XIV ao início do XVIII contribuiu para transformar de forma bastante profunda a sociedade europeia. Hoje ouvimos todo o tipo de coisas sobre esse mundo “pós-covid-19” mas penso que se trata de especulações quando não sabemos qual será o desfecho desta crise.