Violação da tolerância e da paz
Não obstante a dimensão do atentado contra as Torres Gémeas, que levou o presidente dos EUA a declarar ser tarde para os homens e demorado para Deus, naturalmente pensando na substituição do conflito entre muçulmanos e ocidentais, confirmado agora pelo brutal assassínio do professor Samuel Paty, mestre de História, em Bois d’Aulne, decapitado por um estudante, “selvaticamente atacado quando entrava provavelmente na sua casa a pé”, segundo a confirmação de um polícia que estava perto da prática do crime. O executante, de 18 anos, foi morto, quando tentava fugir, pelo polícia, gritando “Allahu Akbar”. O motivo do atentado seria castigar o professor por ter exibido uma pretensa imagem do “profeta dos muçulmanos”.
Os periódicos informam que “uma mensagem de reivindicação foi publicada alguns minutos depois no Twitter, com uma fotografia da cabeça cortada”. Os conflitos que se multiplicam, com dimensões penosas diferentes quanto às mortes e às destruições, juntam-se na demonstração de que é a “tolerância e a paz” que continuam a ser violadas.
Em 2004, Hans Küng, no seu Der Islam, escreveu: “As opções são claras: ou a rivalidade entre religiões, ou o choque d e civilizações, ou a guerra entre nações, ou um diálogo de civilização e paz entre religiões e as nações. Confrontado com uma ameaça letal para toda a humanidade, não deveríamos nós derrubar as muralhas do preconceito, pedra sobre pedra, e exigir pontes de diálogo, incluindo pontes com o islão, em vez de levantarmos novas barreiras de ódio, vingança e hostilidades?”. Na tradução portuguesa (2017, Almedina) adotou, para afirmar “a situação religiosa da época”, esta conclusão, antes de abrir o texto: “Não há paz entre as nações sem paz entre as religiões; não há paz entre as religiões sem diálogo entre as religiões; não há diálogo entre as religiões sem pesquisa da base nas religiões.”
Por comodidade, poder-se-ia admitir que o chamado projeto grandioso de D. Manuel refere outros golpes. Em 1515 o seu exército em Marrocos,
o berço de um movimento convergente de ataque contra o mundo islâmico, sofrera uma derrota pesada. Neste século sem bússola, o ataque global vem de uma força que tem mais causa na desordem secular imposta à exploração do planeta, fazendo compreender, lenta e dolorosamente, que toda a organização política mundial vai ter de ser recriada. O islâmico Conselho Global para a Tolerância e Paz, não obstante ter separadamente crescido entre os diferentes domínios dos valores éticos e religiosos, procura conseguir articular-se com os ocidentais.
A primeira manifestação que nesta área se internacionalizou foi a Mensagem de Assis, independente da ordem jurídica hoje enfraquecida da ONU, mas inspirada e fortalecida por João Paulo I, e não esquecida pelo Papa Francisco, que os cardeais foram buscar ao fim do mundo. Na sede da ONU existia uma sala criada pelo inesquecível secretário-geral Hammarskjöld, chamada uma sala de reflexões para todas as religiões. Entretanto não foi acolhida a ideia de ali se realizar um Conselho das Religiões, que seguramente responderia à convicção de Hans Küng. Por outro lado, destacando-se das violências, o Global Council for Tolerance and Peace, com o objetivo de promover os valores da tolerância e da paz, agindo contra as discriminações raciais, religiosas, fraturantes do género humano, procura desenvolver o direito internacional fortalecendo os princípios da segurança para alcançar a paz; é presidido por Ahmad Aljarwan, com o fim de auxiliar a realização dos objetivos da Carta da ONU, adotando os princípios da democracia, e tem o Parlamento para a Tolerância e Paz, reuniões programadas (incluindo portugueses) com representação de 60 países.
Na Declaração de Tirana, de 2018, declarou-se que escolher os valores da tolerância é o dever dos membros do Parlamento, porque devem “conseguir o desenvolvimento sustentado e desenvolver os objetivos que desafiam o globo ajudando à criação de um melhor e sustentável futuro para todos”. Numa das suas últimas intervenções, o presidente da “America First” afirmou que o sábio Anthony Fauci, com retrato na Casa Branca, e diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas, é um idiota que o fatiga. Uma expressão para a qual não se pode ter tolerância.
Mas movimentos com o dever assumido de reorganizar a justiça natural devem conseguir fazer desaparecer este afeto pelo Estado espetáculo. O século sem bússola que está a cair em crise global da ordem internacional, iniciou-se com a separação geralmente assumida entre a Igreja e o Estado. Mas isso não impediu que, sobretudo depois do fim da Guerra Fria, alguns dos conflitos armados fossem marcados por valores religiosos. É tempo de conciliar as diferenças, nas religiões, ou na falta de fé, no valor comum da paz.