“Somos feitos de quê?
Dando a Portugal um lugar de honra no meu livro não fiz mais do que prestar-lhe justiça” foi o título de uma entrevista no DN, há uns anos, a François Reynaert, que contrariou tudo o que é tradição na historiografia francesa e sobretudo na anglo-saxónica, que destacam sempre mais as façanhas de Jean-François de La Pérouse e de James Cook, no século XVIII, do que os feitos de Bartolomeu Dias, Vasco da Gama ou Fernão de Magalhães dois séculos antes. O livro de Reynaert, para não deixar dúvidas do alcance das suas palavras, tem como título A Grande História do Mundo.
Por falar em mundo, tivemos ontem novo recorde de mortos e de infetados por covid-19 e há alguns dias andamos nas notícias no estrangeiro por estarmos no topo da mortalidade por milhão de habitantes. Um momento dramático para o país, para todos que cá vivemos, portugueses e não só, e que gera a tentação de encontrar bodes expiatórios, seja entre os governantes seja numa parte da população, os que recusam usar máscara ou que passeiam trela sem cão. Somos, porém, o mesmo país que há um ano, na primeira vaga da pandemia, merecia elogios. Um povo consciente, um governo eficiente, uma oposição com sentido do interesse nacional, escrevia-se nos jornais lá fora.
Já não somos o grande país da era das Descobertas, mas não deixamos de ter muito de que nos orgulhar – como essa democracia que construímos desde o 25 de Abril de 1974 e que hoje nos convida, e incita, a votar para expressar as nossas escolhas como cidadãos. Também nos podemos orgulhar de termos um Serviço Nacional de Saúde que não pede o cartão de crédito a ninguém na hora de chegar a uma urgência e que bravamente continua a combater a covid-19. Também nos podemos orgulhar de integrar a União Europeia, onde não só estão representados os países mais plurais e mais ricos do planeta (e por isso às vezes custa a dupla comparação, a com o nosso passado e a com estes nossos aliados), como perante a pandemia foram capazes de dar provas de unidade. Sim, nem tudo corre bem com a compra das vacinas, mas como seria se Portugal, com os seus dez milhões, tivesse de agir sozinho?
Nem tudo depende de nós, de cada um de nós, para o país ser melhor, para urgentemente ultrapassarmos a terrível crise trazida pelo coronavírus, uma crise sanitária e económica. Mas muito depende de nós. Na escolha do destino que queremos para Portugal. Isso passa por atos tão simples como usar a máscara, e até quando for preciso, ou votar, hoje e quando voltar a ter de ser.
Quando penso no Portugal de 2021 não gosto nada daquela ideia, que por vezes surge como ironia, de que os valentes se foram embora nas caravelas e que os que ficaram são os tetranetos do Velho do Restelo. Somos feitos de quê?