Lojas centenárias com força para vencer a pandemia
LISBOA São lojas históricas da capital, com mais de um século de existência. Apesar das quebras na ordem dos 70%, os Pastéis de Belém e o café A Brasileira estão preparados para mais um confinamento.
Quando reabriram as portas, em maio de 2020, após o primeiro confinamento, os responsáveis dos Pastéis de Belém, em Lisboa, não imaginaram que dez meses depois teriam de voltar a fechá-las por causa da pandemia de covid-19. A esperança era que, desta vez, pudessem, pelo menos, disponibilizar os famosos pastéis para take-away. Por isso, foi com expectativa que se ali se aguardou o anúncio das restrições do novo confinamento pelo primeiro-ministro António Costa, na quarta-feira passada. Dúvidas desfeitas, a centenária casa de Belém encerrou parcialmente na sexta-feira, continuando a vender apenas para fora.
“Infelizmente tivemos de encerrar parte do nosso serviço, mantendo-nos apenas em take-away. Não é a situação ideal, mas é a situação necessária neste momento. Pelo menos, temos essa possibilidade e tudo faremos para tirar o máximo proveito dela”, diz Miguel Clarinha, gerente dos Pastéis de Belém, ao DN, junto do balcão da confeitaria onde, até março do ano passado, os turistas faziam filas de dezenas de metros para comprar os pastéis com a receita mais secreta do país. Nos últimos meses não tem havido filas. É chegar, desinfetar as mãos e comprar. Ou, até entrar em vigor o novo confinamento, sentar à mesa numa das salas desta loja histórica de Belém.
Em pleno Chiado, no café A Brasileira, o cenário era igual. A esplanada onde o ilustre cliente Fernando Pessoa está imortalizado com uma estátua de bronze da autoria de Lagoa Henriques estava sempre a abarrotar. Agora, esse cenário é uma miragem...
“Estes dez meses têm sido com as dificuldades inerentes a todo o setor, com os fins de semana a trabalhar a 50%, e a tentar enfrentar as dificuldades normais de um espaço que antigamente era visitado por centenas de pessoas por dia e que, face a todas as restrições, viu o seu movimento reduzido para menos de metade, para um quarto, provavelmente”, admite Pedro Dias, diretor de operações da Valor do Tempo, grupo que adquiriu uma posição maioritária do histórico café imediatamente antes do primeiro confinamento, em março de 2020.
“Provavelmente, em boa hora surgimos porque neste momento podemos dizer que está assegurada a continuidade d’A Brasileira”, comenta o mesmo responsável do grupo, detentor de espaços que preservam a identidade e a herança portuguesas, como o Museu do Pão, em Seia, a confeitaria Peixinho, em Aveiro, ou a conserveira Comur, na qual se inserem as submarcas O Mundo Fantástico da Sardinha Portuguesa e a Fábrica das Enguias.
“Ultrapassou não só outras pandemias mas outras convulsões ao longo deste século. Esta é mais uma que vamos tentar ultrapassar”, diz Pedro Dias, numa referência à história d’A Brasileira, casa fundada em 1905 por Adriano Telles, um ex-emigrante português no Brasil que se casou com a filha de um dos maiores produtores de café de Minas Gerais e que, regressado a Portugal, quis dar a conhecer este produto num espaço com uma decoração faustosa que acabou por ser ponto de encontro da elite intelectual, literária e artística durante várias épocas.
“A Brasileira ocupou um lugar importantíssimo durante todo o século. Mesmo na instauração da República foi aqui, neste espaço, que grande parte dos intervenientes estiveram reunidos e tomaram decisões... Não nos podemos esquecer do nosso Fernando Pessoa, que por aqui passou e está perfeitamente imortalizado na nossa esplanada”, lembra Pedro Dias, que olha para a pandemia como um desafio: “Que ela sirva para nos dar uma força tremenda para garantir que tudo isto tem uma continuidade.”
De 20 mil para cinco mil pastéis
“Têm sido meses difíceis. Inesperados e difíceis, mas penso que tem sido para todo o setor da restauração e outros setores”, concorda o gerente dos Pastéis de Belém, casa que neste ano celebra 184 anos de história. “2020 foi um ano muito fraco, talvez o mais fraco dos últimos 40 anos. Faturámos cerca de 70% abaixo de 2019 e naturalmente que foi um ano difícil para nós”, admite Miguel Clarinha.
Antes da pandemia, a confeitaria produzia uma média de 20 mil pastéis por dia. Desde final de março essa média reduziu para entre quatro e cinco mil. E de agora em diante, só com take-away, baixará ainda mais.
“Quando tivemos de encerrar em março fizemos um exercício de memória e percebemos que a confeitaria já não fechava desde metade dos anos de 1970 e na altura até foi por questões de algumas reabi
Antes da pandemia, a confeitaria [Pastéis de Belém] produzia uma média de 20 mil pastéis por dia. Desde final de março essa média reduziu para entre quatro e cinco mil. E de agora em diante, só com take-away, baixará ainda mais.
litações internas que tivemos de fazer. Desde aí que não fechávamos um único dia. E agora, ao fim destes dez meses, percebemos que estes 70% abaixo que estamos a trabalhar levam-nos para números próximos daqueles que produzíamos e vendíamos precisamente nessa década, final dos anos de 1970 início dos anos de 1980”, lamenta Miguel Clarinha.
A diferença é gigantesca, mas não há razões para alarme, garante o responsável. “Os Pastéis de Belém não estão em risco. Esta é uma empresa com muita história e esperemos que a história continue por muitos anos. Já sobreviveu à pandemia do século XX, da pneumónica, e irá seguramente sobreviver a esta. Agora, aquilo que temos tentado fazer é que não só a empresa sobreviva mas que o máximo de postos de trabalho também sobrevivam a este período de dificuldade.”
Novas medidas e apoios
Os Pastéis de Belém têm atualmente cerca de 180 funcionários. “Em março tínhamos um pouco mais. Felizmente, temos conseguido manter a maioria dos postos de trabalho, foram muito poucas as pessoas que dispensámos. Ainda assim, era inevitável que, com uma quebra de faturação de 70%, não pudéssemos renovar todos os contratos”, lamenta Miguel Clarinha.
Nos últimos meses, com a quebra de turistas, a casa teve de mudar rotinas. Além da adaptação do espaço às normas de segurança e higiene exigidas pela Direção-Geral da Saúde, alterou-se o horário de trabalho dos funcionários e até as horas de funcionamento da fábrica. “Estamos a trabalhar com horários de seis horas e a fábrica está a trabalhar essencialmente de malongo nhã, pelo menos a parte do corte e do moldar da massa. A parte da confeção dos pastéis propriamente dita, dos fornos, essa trabalha o dia todo para garantir que os pastéis estão sempre frescos e acabados de fazer”, explica o gerente, que admite recorrer, tal como no primeiro confinamento, às medidas de apoio do Estado.
O mesmo se passa no café A Brasileira, com 34 funcionários. Em março, socorreram-se do que puderam. “Recorremos a apoios financeiros, obviamente que sim, recorremos à banca também”, resume Pedro Dias. A Valor do Tempo tinha acabado de comprar a maioria do capital do espaço após um namoro e voltar atrás no negócio não era hipótese que se colocasse. “Nós somos pessoas de ideias fixas e determinadas e entendemos que o valor patrimonial, histórico e cultural deste projeto valia todo o esforço que fosse possível fazer para assegurar a sua continuidade”, diz. “Há tanto mais nesta Brasileira daqui para a frente que vai permitir garantidamente termos anos para voltar às faturações que equilibrem toda esta dificuldade que se viveu ao longo deste ano”, defende.
De olhos postos em 2022
Dez meses depois, um novo confinamento causa “alguma preocupação”. “Estamos obviamente conscientes das dificuldades que vamos ter”, reconhece o diretor de operações do grupo, cujo campo de ação está essencialmente centrado no turismo. “Sabemos perfeitamente que economicamente teremos de enfrentar um problema de um ano com quebras acima dos 70%”, ao nível de todo o setor da restauração, admite Pedro Dias. “Estamos a falar de uma quebra que tem um impacto quase catastrófico em todo o projeto”, reconhece.
Mas, tal como nos Pastéis de Belém, a mensagem é tranquilizadora. “É evidente que vamos recorrer a todas as medidas que foram adotadas pelo governo, a todos os apoios, todos os lay-offs simplificados, uma outra moratória perante o investimento que foi feito... Iremos recorrer a tudo aquilo que estiver disponível para atenuar o impacto económico. No entanto, não está, de todo, em causa, o normal funcionamento d’A Brasileira após o confinamento”, garante Pedro Dias.
A esperança é conseguir “dar o salto final para vencermos a pandemia e tratarmos da nossa economia também”. Otimista por natureza, Miguel Clarinha, acredita que entre o final deste ano e o início do próximo, já estará “com sinais mais positivos de retoma”. “Acredito que 2022 será já um ano completamente diferente de 2021, para melhor”, sublinhou.
O café A Brasileira enfrenta um enorme problema por causa de um ano “com quebras acima dos 70%”. “Estamos a falar de uma quebra que tem um impacto quase catastrófico em todo o projeto”, admite Pedro Dias.
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