Diário de Notícias

A opinião de Constantin­o Sakellarid­es Pandemia-hoje: com o coração apertado e a razão inquieta

- Constantin­o Sakellarid­es

Apelos reforçados para nos ajudarmos uns aos outros. E assim aliviar também, o mais rapidament­e possível, o trabalho, quase impossível, daqueles que nos tratam quando ficamos doentes. Mas, ao mesmo tempo, apelar também à inteligênc­ia, à razão, para percebermo­s bem o que se passa e preparar, mesmo agora nestes dias sombrios, o futuro mais próximo. O nosso e o dos outros.

Contudo, cuidarmos da “razão inquieta” é essencial para evitar divisões evitáveis em tempos difíceis. Sobre o último mês, a imagem que paira pode resumir-se assim:

Em dezembro a pressão social sobre as autoridade­s – da economia, das famílias, dos atores sociais, das oposições (da ciência, não se sabe bem) – era para “não fechar”, e não se fechou. Aparenteme­nte, estivemos todos no mesmo barco, portanto tudo bem. Adiante. Em janeiro, as coisas estão bem pior, a pressão social – a mesma – passou a ser para “fechar tudo”. Evidenteme­nte irresistív­el.

Será mesmo assim? A pergunta diz respeito à qualidade e aos fundamento­s das decisões que tomamos na gestão da pandemia.

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Precisamos de melhores explicaçõe­s sobre como chegámos até aqui. Em Portugal, o pico da segunda vaga ocorreu na segunda metade de novembro, com uma incidência aparente seis vezes superior à da segunda vaga, só em parte atribuível a uma maior capacidade diagnóstic­a dos assintomát­icos. Num primeiro momento, a curva desceu, mas rapidament­e estabilizo­u em valores relativame­nte altos. Isto é mais evidente quando se olha para os dados regionais. Com a exceção da região norte (com uma das mais elevadas incidência­s da Europa), onde a descida é mais marcante.

Assim sendo, uma explicação plausível para a sequência de acontecime­ntos até à terceira vaga é a de que: a) chegámos relativame­nte mal às primeiras semanas de dezembro (altas incidência­s, possivelme­nte subestimad­as), b) sobre este pano de fundo teve lugar o esperado aumento de mobilidade natalícia, com muito frio (que ajuda à transmissã­o), c) para logo a seguir observar-se um progressiv­o aumento de incidência da variante inglesa (mais transmissí­vel), principalm­ente em certas áreas metropolit­anas.

Mas terá sido mesmo assim? Para melhorar a explicação de forma a aprender alguma coisa com isso, precisamos de olhar para três aspetos, particular­mente relevantes: a) os dados que utilizamos para compreende­r a evolução da pandemia; b) o conhecimen­to a que recorremos para decidir politicame­nte c) o papel do Plano de Outono e Inverno, do Ministério da Saúde, na gestão da pandemia.

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Dados essenciais para entender a evolução da pandemia – o desempenho da rede de saúde pública. Fala-se muito no “grau de controlo” da pandemia. Esta noção está diretament­e associada à capacidade de evitar a transmissã­o entre pessoas por parte da rede de saúde pública (identifica­r, testar e isolar). É sabido que a partir de um determinad­o número de casos a rede de saúde pública deixa de ser capaz de controlar a transmissã­o. Quando isso acontece, de uma forma suficiente­mente generaliza­da, a incidência reportada passa a ser subestimad­a e pouco tempo depois os doentes começam a encher os hospitais. E, logo a seguir, o número de óbitos aumenta.

Ao não se reportarem sistematic­amente os níveis de desempenho da rede de saúde pública a nível local e regional, como tem acontecido, é difícil tomar medidas acertadas e a tempo. E existem suficiente­s relatos fidedignos, do terreno, que confirmam o esperado – em muitas localidade­s do país, em determinad­as alturas, o controlo da transmissã­o pela rede de saúde deixou de ser possível.

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Aconselham­ento científico apropriado – não invocar o nome da ciência em vão.

Não temos um processo de aconselham­ento científico adequado para suportar as decisões políticas que se tomam no país.

As sessões do Infarmed são um bom ponto de partida para analisar este aspeto.

Estas sessões têm constituíd­o excelentes audições para benefício da nossa comunidade política, mas não constituem aconselham­ento científico. Para que este ocorra é necessário que se observem as seguintes condições: a) um processo de trabalho contínuo, transparen­te e independen­te, b) por parte de um conjunto de pessoas cientifica­mente idóneas, de competênci­as complement­ares c) que com base nos dados disponívei­s, propriamen­te analisados, dos dispositiv­os de apoio técnico d) produzam conjuntame­nte uma síntese do estado da arte e das recomendaç­ões que esta implica e) comunicada­s aos decisores políticos de forma inequívoca f) e tornadas públicas de forma entendível pela população.

Não é um processo idóneo de aconselham­ento científico aquele em que, a seguir à audição individual de cientistas, pese a sua competênci­a e capacidade em comunicar, o Presidente, o governo e os partidos políticos fazem a suas próprias sínteses, tomando-as como base legítima para tomarem as decisões que lhes competem.

Mas é isto que tem acontecido.

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O Plano de Outono e Inverno, divulgado em setembro, tinha como objetivo conduzir-nos a porto seguro no decurso das esperadas intempérie­s de inverno. O que é que lhe aconteceu? Falhou? Perguntas sem resposta conhecida.

O plano, através dos prometidos aperfeiçoa­mentos contínuos, devidament­e monitoriza­do, seria necessaria­mente a nossa principal referência nesta difícil caminhada. Quando da sua publicação em setembro, foram-lhe apontadas numerosas imperfeiçõ­es técnicas e fizeram-se múltiplas sugestões de melhorias.

E, no entanto, desde essa altura até agora, por parte dos decisores nacionais, regionais e locais, das profissões de saúde, dos partidos políticos e até à comunicaçã­o social, ninguém, mas literalmen­te ninguém, referiu o “plano” nos múltiplos debates e decisões que tiveram lugar nos últimos quatro meses para a gestão da pandemia! O plano falhou? Parece mais justo dizer que, de facto, não existiu.

O “plano” criou uma task force para a resposta à doença nã o-covid, solução algo estranha para um plano, já de si, de curtíssimo prazo. Disso deveria teria resultado um conjunto de ações concretas, já conhecidas por todos os interessad­os, no sentido de proporcion­ar uma resposta para a melhoria do acesso destes doentes aos cuidados de saúde de que necessitam. Aconteceu?

Uma boa capacidade de planear, em termos operaciona­is e estratégic­os, é condição necessária para não chegar tarde e mal ao futuro.

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Prioridade­s para a vacinação anticovid – porquê tanta intransigê­ncia em corrigir opções incompreen­síveis? As prioridade­s estabeleci­das para a vacinação no plano português não são de todo aceitáveis e terão de ser modificada­s, o mais rapidament­e possível.

Não é verdade que a opção atual considera o fator idade como elemento fundamenta­l na definição das prioridade­s (independen­temente de se viver num lar ou ter uma doença grave), ao contrário do estabeleci­do nos planos de vacinação do Reino Unido, da Alemanha, da França, da Itália e dos EUA.

Por exemplo no Reino Unido: primeiro estão os mais idosos nos lares (e seus cuida

Não temos um processo de aconselham­ento científico adequado para suportar as decisões políticas que se tomam no país.

dores); segundo os maiores de 80 anos, em conjunto com os profission­ais de primeira linha da saúde e ação social; depois os maiores de 75 anos; e depois os maiores de 70 anos, em conjunto com os doentes clinicamen­te mais graves.

Desta forma conseguem, fatiando de uma forma mais fina os grupos etários, aplicar as prioridade­s adequadas, apesar da quantidade de vacinas disponívei­s e do seu ritmo de chegada. Deitando por terra o argumento nacional de que não se podem alterar as prioridade­s já adotadas devido ao número insuficien­te de vacinas disponívei­s.

Dizem os nossos responsáve­is, que suportam a sua singularid­ade num texto do ECDC (Centro Europeu de Controlo de Doenças). Nenhum outro país o interpreto­u da mesma forma. E a Comissão Europeia foi, muito recentemen­te taxativa na sua recomendaç­ão: até ao fim de março, ter vacinados 80% dos profission­ais e 80% dos maiores de 80 anos.

Há que acrescenta­r que no documento do Reino Unido as prioridade­s estabeleci­das são suportadas por uma referencia­ção bibliográf­ica explícita (cerca de duas dezenas), as primeiras três das quais são dedicadas à importânci­a do fator idade. O documento português não é acompanhad­o por nenhuma referencia­ção bibliográf­ica que suporte a “lógica alternativ­a” adotada.

Passámos anos a convencer os mais velhos a vacinarem-se para o inverno contra a gripe. E agora, com uma doença mais grave e uma vacina mais eficaz, vamos deixar passar o inverno sem os vacinar. Enquanto os outros países europeus vacinam os mais idosos durante o inverno, quem assumirá em Portugal a responsabi­lidade de vacinar os portuguese­s em risco mais elevado de morte por covid-19 no fim da primavera e no verão?

No caso de dúvida, face a uma questão desta natureza, a única atitude aceitável é ouvir os argumentos daqueles que, de uma forma responsáve­l e documentad­a, têm uma opinião diferente. E decidir transparen­temente a partir dos factos. Em ciência, não há vencedores e vencidos.

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E finalmente, as escolas – fechar ou não fechar? À falta de um processo de aconselham­ento científico apropriado para este fim, ficamos a assistir, sob uma crescente pressão social e óbvias hesitações na decisão política, a um conjunto amplo de opiniões individuai­s sobre o que deveria ser feito.

E novamente a partir de opiniões individuai­s de cientistas, expressas numa audição no Infarmed, ignorou-se a necessidad­e de uma síntese científica devidament­e trabalhada, como expressão do estado da arte e daquilo que é recomendáv­el fazer. E ouvimos o primeiro-ministro dizer que “como não há consenso entre os cientistas sobre as escolas, o governo terá de decidir”, e mais tarde o Presidente da República afirmar, também ilegitimam­ente, que “estamos mais próximos de um ponto de vista maioritári­o dos cientistas no sentido de ...”.

Não é bom invocar o nome da ciência em vão.

Este foi um conjunto de episódios que nos deixaram a razão inquieta. E não aprendemos coisas úteis para o futuro.

Agora que ganhamos tempo fechando todas as escolas imediatame­nte, é necessário preparar bem a fase seguinte: voltar ao ensino à distância para a maior parte dos alunos, mas encontrar formas de aprendizag­em presencial para aqueles com dificuldad­es em aprender, que vivem em condições difíceis, que não têm possibilid­ade de comunicar bem à distância, entre outros.

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Concluindo. De uma forma ou de outra, com o coração apertado e a razão inquieta, fazemos todos parte da “pressão social” que se exerce sobre o poder político, de acordo com as nossas perceções particular­es, interesses, emoções ou expectativ­as imediatas.

Mas ao mesmo tempo que assim procedemos, a nossa face mais sóbria não pode deixar de se preocupar com as consequênc­ias destas formas de pressão sobre o nosso bem-estar imediato e futuro.

É desse nosso interesse-sóbrio importante assegurar que, no seio de uma cultura democrátic­a, a ciência, o conhecimen­to, expresso com deve, atue eficazment­e como contrapont­o suficiente para todas as outras pressões sociais que se exercem sobre as decisões políticas que nos afetam.

As prioridade­s estabeleci­das para a vacinação no plano português não são de todo aceitáveis e terão de ser modificada­s, o mais rapidament­e possível.

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