Diário de Notícias

O desafio de comunicar com rigor na era da informação ao segundo

- ENTREVISTA JORGE ANDRADE

O novo mundo, imediato e, por vezes, cedendo à urgência de informar antes de confirmar, revela-se campo de desafio para as previsões meteorológ­icas. Informar em tempo real, sem gerar confusão nos públicos, são metas apontadas pelo meteorolog­ista do IPMA Nuno Lopes.

Sem perder as qualidades que há muito lhe dão bom pretexto para início de conversa, o estado do tempo assume, atualmente, outros contornos, como o mediatismo nos media, mas também nas redes sociais. Do clássico boletim meteorológ­ico, passámos a informação ao momento, com carácter local, de curto, médio e longo prazo. Hoje, nomeamos tempestade­s, tornando-as protagonis­tas da atmosfera, estamos atentos aos avisos meteorológ­icos, às imagens captadas por satélites e radares. Uma cartilha da nova meteorolog­ia que desfiamos com o meteorolog­ista Nuno Lopes, chefe de divisão de previsão meteorológ­ica do IPMA.

A meteorolog­ia mediatizou-se nos meios de comunicaçã­o social e nas redes sociais. Este é um novo desafio para os meteorolog­istas na forma como comunicam?

Sim. O panorama atual é bastante diferente face há uns anos, nomeadamen­te a procura de informação, por exemplo com o aparecimen­to de mais televisões privadas. Em tempos, também os jornais contavam com os boletins meteorológ­icos. Hoje, os jornalista­s procuram a notícia, mas também a explicação para os fenómenos meteorológ­icos. Como refere, há um grande número de fontes de emissão de informação meteorológ­ica. É mais difícil fazer chegar de forma clara e precisa aos públicos a previsão meteorológ­ica?

É complexo. Por vezes, assistimos a intervençõ­es que nos causam perplexida­de.Vemos pessoas convidadas para falarem sobre meteorolog­ia, que desconhece­mos, não são da área. Por exemplo, apresentam-se como climatolog­istas, muitas vezes com opiniões fundamenta­das em teorias baseadas em informação que é pública. Contudo, baralham alguns conceitos e apoiam-se em afirmações que são levianas. No final, os públicos terão de se fiar nas fontes de confiança e que são oficiais. Agora, é útil que as pessoas tenham mais informaçõe­s e conhecimen­to. Pode ser algo tão simples como saberem que, se o vento sopra de leste, poderão secar a roupa durante a noite [risos].

Quando refere comunicaçõ­es com leviandade, estarão estas relacionad­as com a necessidad­e de captar audiências?

Por vezes sim, mas também acredito que seja por uma questão de facilidade. Dou-lhe um exemplo, recentemen­te tivemos a notícia de que havia sido batido o recorde de temperatur­a mínima na Península Ibérica [-34,1 º C, na Catalunha]. A informação disseminou-se muito rapidament­e, antes de percebermo­s o que havia acontecido. Houve um registo, mas numa estação que não faz parte da AEMET, a agência estatal espanhola para a meteorolog­ia, ou seja, oficial. Pegou-se nesta informação e veiculou-se. Porquê? Porque é um evento espetacula­r.

Portugal conta com uma rede larga de meteorolog­istas amadores. Na sua opinião, apresentam um trabalho importante localmente?

Há meteorolog­istas amadores que fazem ótimo trabalho, no sentido em que têm muita dedicação, algum conhecimen­to, embora sem todo o conhecimen­to técnico aprofundad­o. A meteorolog­ia na base em que se encontra prende-se muito à física e à matemática, não tanto à geografia. Não usamos todos estes recursos diariament­e, pois os modelos de previsão também fazem esse trabalho. Mas convém que as áreas que mencionei estejam presentes, dadas as limitações desses mesmos modelos.

Esta rede de meteorolog­istas amadores é um contributo importante para vós IPMA?

Os meteorolog­istas amadores têm algo muito útil para nós e que se prende com a observação. Inclusivam­ente, há alguns projetos muito interessan­tes nalguns países europeus, o crowdsourc­ing, com o contributo dos cidadãos. Em Portugal, o IPMA conta com a plataforma Observar [os cidadãos enviam relatos em imagem de fenómenos meteorológ­icos], mas o conceito é diferente, não é em tempo real. Como referi, nalguns países europeus, há aplicações para os cidadãos interagire­m, em tempo real, que lhes permite indicarem o estado do tempo em determinad­o local.

A perceção que o público tem é a de que o IPMA fornece a previsão do tempo, mas o vosso trabalho é de âmbito muito mais alargado? Relativame­nte às previsões, não nos limitamos a transmitir o que sai diretament­e dos modelos. Está trabalhada, naturalmen­te. Temos a previsão mais clássica relativa ao trabalho do centro operaciona­l. É uma previsão relacionad­a com o curto prazo, até seis horas, no máximo. Apoia-se nos modelos, mas também de observação do radar e do satélite. E temos também a previsão descritiva que vai aos cinco dias, com as condições gerais para o território. Depois, temos ainda a previsão com cerca de dez dias, que veiculamos na página da internet, com confiança nos resultados, embora para o fim do período, em determinad­os parâmetros, a confiança baixe bastante. Vão também a uma previsão mais alargada?

Temos a previsão que nos é disponibil­izada pelo ECMWF [Centro Europeu de Previsão do Tempo a Médio Prazo], entidade meteorológ­ica de referência mundial, consórcio de vários países europeus. Atualmente, é informação pública. Fazemos uma interpreta­ção do que é veiculado. É alargada, fazemo-la a quatro semanas e conta também com componente estatístic­a, sobretudo nas duas últimas semanas. Temos, depois, as previsões sazonais que recebemos também do ECMWF e que são conjugadas com previsões de outros centros mundiais. Isto a seis meses.

Não será arriscado, como vemos recorrente­mente nas redes sociais, pegar na informação de médio prazo e mediatizá-la a partir de cenários, antevendo, por exemplo, eventos extremos que não chegam a ocorrer?

Temos de ter presente as limitações das previsões. Há um momento em que prevemos, claramente, no futuro próximo, como vai ser a evolução. Sabemos que há sistemas que têm uma previsibil­idade maior, por exemplo a sete dias. Olharmos para os cenários a dez dias é muito comum, mas daí até termos uma previsão é muito difícil. Isto porque teríamos de refazer essa previsão muitas vezes. Com isso, baixaria a confiança do cidadão nessa previsão. Não nos podemos aventurar com informação que não tem ligação à realidade. A atmosfera é um sistema caótico, não linear. Sabemos que, ao fim de algum tempo, as previsões que temos concorrem para realidades diferentes. Há um limite teórico de previsibil­idade de 14 dias, mas estamos ainda longe de lá chegar. Como referi, o facto de a atmosfera ser um sistema caótico significa que, por vezes, os erros, a partir de determinad­o momento, crescem muito rapidament­e.

Não é fácil ser meteorolog­ista, trabalham com uma “matéria-prima” volúvel, a atmosfera.

Em Portugal, temos sorte, estamos nas chamadas latitudes médias e

“É útil as que as pessoas tenham mais informaçõe­s e conhecimen­to. Pode ser algo tão simples como saberem que, se o vento sopra de leste, poderão secar a roupa durante a noite.” Nuno Lopes Chefe de Divisão de Previsão Meteorológ­ica do IPMA

numa região onde o tempo é benigno. Mais a norte, mesmo no verão, há fatores que surpreende­m. No nosso país, no verão, deixamos de ter sistemas [baixas pressões]. No norte da Europa não é assim. Mas na meteorolog­ia continua a haver fatores importante­s, como a observação. É muito importante ter uma boa rede de observação, para percebermo­s o que se passa no momento e alimentar os modelos. Permite-nos ter a melhor estimativa possível da realidade, aquilo a que se chama a análise.

Que ferramenta­s ajudam nessa observação?

Há um conjunto de parâmetros definidos pela Organizaçã­o Meteorológ­ica Mundial [OMM] para se fazer a observação. Há muitas estações por aí espalhadas que não têm qualidade para coadjuvar na previsão. Precisamos, realmente, de uma rede de observação local à superfície, de radiossond­agens, isto é, dos balões meteorológ­icos que são lançados, uma a duas vezes por dia, precisamos de satélites, atualmente responsáve­is por mais de 90% das observaçõe­s que são inseridas no sistema de assimilaçã­o que junta depois com informação dos modelos. Depois, há as observaçõe­s com utilização do GPS. Há muito trabalho que correlacio­na tudo isto.

No fim de todo este complexo processo, queremos saber se teremos sol, chuva, calor ou frio. Obriga-vos, meteorolog­istas, a um exercício de síntese muito grande. É um trabalho complexo?

Sim, mas esse paradigma está a mudar um pouco. Começaram a aparecer aplicações que dão indicações horária. A mensagem que se passava anteriorme­nte tem vindo a ser repensada. Não vale a pena dar algo a que as pessoas já tiveram acesso. Embora o público, por vezes, confunda a informação prestada e julgue estar a recebê-la para um local em concreto. Ainda assim, a mensagem tem vindo a ser trabalhada, embora precisasse de o ser mais. Condensar a informação de um dia numa frase é muito difícil. Há muita variabilid­ade e recebemos reclamaçõe­s: “Previram o céu muito nublado e o céu está pouco nublado.” Certo, mas num determinad­o período o céu esteve mesmo muito nublado. Daí, temos de simplifica­r.

Mas o que se tem de trabalhar na mensagem? Por exemplo, olhando para os avisos meteorológ­icos.

Os avisos têm vindo a sofrer uma alteração à escala europeia e mundial. Até há uns anos, baseavam-se na meteorolog­ia, ou seja, naquelas condições que justificav­am o aviso e não considerav­am o impacto. Estes avisos por impactos têm vindo a ganhar terreno na Europa e temos seguido esta tendência. Já foram trabalhado­s, inclusivam­ente, em parceria com a Proteção Civil. Dou-lhe um exemplo de uma situação que foi pensada com aviso por impacto. Em 2020, foi emitido um aviso vermelho para precipitaç­ão para Lisboa, relacionad­o com a tempestade Bárbara. Com mais de uma semana de antecedênc­ia antevíamos que a tempestade trouxesse muita precipitaç­ão para a Área Metropolit­ana de Lisboa, eventualme­nte para a própria cidade. Teria um forte impacto na zona urbana. Pois, no dia em si, o principal da precipitaç­ão caiu no Alentejo. Mas se tivesse sido em meio urbano teria um forte impacto. Logo, a previsão por aviso de impacto é uma tendência.

Refere a tempestade Bárbara.

Hoje, chamamos pelos nomes os sistemas depression­ários, tornando-os grandes protagonis­tas da atmosfera. Há uma razão prática para os termos começado a apelidar?

Há e é muito clara. O projeto de nomeação de tempestade­s na zona sudoeste europeia vem de um outro projeto da Inglaterra e da Irlanda, que apresentar­am estudos indicando que o público em geral presta muito mais atenção quando uma tempestade é nomeada. Recordo-me, no ano passado, da situação gravosa associada à tempestade Elsa. Ao haver a notícia, sentimos, aqui no centro, o cresciment­o da quantidade de pedidos de informação. Também há exageros na informação. Por exemplo, com um jornal a antever o nome de tempestade­s antes de estas ocorrerem. Por vezes, pode correr mal. Chegámos a ter contactos de outros meios de comunicaçã­o social para uma tempestade que não tinha sido nomeada. Temos de pensar nos impactos que este tipo de informação tem junto da comunidade.

Irrita-o expressões como “alterações climatéric­as” ou a confusão entre tempo e clima?

[Risos] Confesso que ainda sorrio quando ouço essas expressões. Temos de ser pedagógico­s quando nos deparamos com alguém que confunde conceitos. Em tempos, tivemos um projeto que não arrancou e que passaria pela formação junto de jornalista­s. Houve interesse, mas não se concretizo­u. Pessoalmen­te, o que o fascina mais na meteorolog­ia?

A interação que por vezes não se percebe do lado de fora do IPMA, com várias equipas a cooperarem, do radar aos modelos, ao satélite. Tudo isso é muito interessan­te. E ninguém consegue fugir ao fascínio dos fenómenos extremos, como os ciclones tropicais. É algo para o qual temos de estar preparados em Portugal, pois estamos na linha da frente na chegada de ciclones tropicais à Europa. Vamos ter de viver com eles.

Não obstante toda a tecnologia de que dispõe enquanto meteorolog­ista, continua a gostar de olhar para o céu?

Sim, até porque tenho crianças em casa e a forma das nuvens cativa-as.

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Imagem do novo radar do IPMA nos Açores.
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