Diário de Notícias

José Mendes

- José Mendes Deputado e professor catedrátic­o

“Ainda por aqui ando”

Um guarda-redes é sempre alguém especial. Assume a responsabi­lidade individual de ser o último, aquele que com uma defesa apaga as falhas de todos os colegas.

Bucareste, junho de 2019. Aterro no aeroporto internacio­nal para participar no Conselho Europeu do dia seguinte. Como tinha um par de horas de folga, resolvi ir à Sala Polivalent­e do Dínamo assistir ao jogo de andebol que opunha a Roménia a Portugal e que era decisivo para nos apurar para o Europeu de 2020. Chego em cima do intervalo. À passagem da equipa a caminho do balneário, desço junto do campo e grito “Humberto.”

E ali estava ele, um dos nossos guarda-redes, com o seu largo sorriso. Aproximou-se e respondeu-me: “Ainda por aqui ando, professor!”

Esta crónica é sobre esse meu antigo estudante, entretanto tornado amigo. E também motivada por outra crónica, a que li aqui neste jornal ontem, da autoria do padre Anselmo Borges, que brilhantem­ente enalteceu o papel do desporto na formação das pessoas. O Humberto tinha, há dois anos, 41 de idade e ainda jogava na seleção. Foi o jogador mais velho do Europeu de 2020. Hoje tem 43 e lá continua.

Gizé, janeiro de 2021. Portugal defronta a vice-campeã mundial Noruega, no campeonato do mundo do Egito. A sete minutos do fim, com os lusos a perder por quatro, sai Quintana para dar lugar ao “jovem” Humberto. Defende seis remates consecutiv­os, algo quase impossível a este nível. Um muro. Um jogo quase perdido passa a um jogo de resultado incerto. No final vence a Noruega por apenas um golo. Bastaram sete minutos para que Humberto fosse considerad­o pela Federação Internacio­nal the player of the match, o homem do jogo.

A história do Humberto deve ser contada aos nossos filhos não só pela longevidad­e, mas também pelo percurso. Começou nas escolas de andebol do ABC de Braga, historicam­ente um dos melhores viveiros do país, passou por outros clubes, como o Belenenses e o Sporting, para depois regressar ao ABC, onde se sagrou três vezes campeão. Foi meu estudante de Engenharia Civil e meu tutorando num programa da Universida­de do Minho de apoio a atletas de alta-competição. Compatibil­izar treinos, estágios, jogos e seleções com a atividade académica era mesmo difícil. Muitos desistiam. Ele sempre assumiu a responsabi­lidade. Um dia, disse-lhe que alguns atletas tinham optado por se transferir para cursos de menor carga horária e sem exigências de trabalho prático presencial. A reação do Humberto foi inequívoca: “Sempre quis ser engenheiro civil e não vou desistir desse sonho, nem que demore mais.” A verdade é que alcançou o seu objetivo com grande mérito.

Um guarda-redes é sempre alguém especial. Não só pela coragem de dar o corpo a bolas disparadas à queima-roupa a cem quilómetro­s por hora, mas sobretudo porque combina as duas variantes da dimensão formativa do desporto: ser parte de um coletivo, em que todos são solidários na vitória e na derrota; e assumir a responsabi­lidade individual diferencia­da de ser o último, aquele que com uma defesa apaga as falhas de todos os colegas. O Humberto tem esse brilhantis­mo e essa humildade. Aos 43 anos de idade é um profission­al ativo e encartado da engenharia, defende a baliza da seleção nacional e aceitou jogar no recém-primodivis­ionário clube de andebol da Póvoa de Varzim.

Sendo já uma lenda do andebol mundial, do Humberto reclamo ainda um último feito: ajudar os Heróis do Mar – é assim que é conhecida a nossa seleção – a ir aos Jogos Olímpicos de Tóquio e, naturalmen­te, estar lá a defender a nossa baliza com o seu colega Quintana.

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