Diário de Notícias

João Lopes

- Opinião João Lopes Jornalista

Abraham Lincoln e o valor das palavras

No seu programa The Tonight Show (NBC), ao comentar algumas imagens da tomada de posse de Joe Biden, Jimmy Fallon referiu-se ao gesto tradiciona­l do novo presidente, colocando a mão esquerda sobre a Bíblia, neste caso numa edição de dimensões francament­e invulgares: “Biden fez o seu juramento com uma Bíblia gigante que pertence à sua família desde 1893.” Depois de apresentar um plano aproximado do livro, seguro por Jill Biden, observou: “Aquilo não é uma Bíblia que se encontre num armário. Aquilo é um armário.” Rematou mesmo dizendo que até o Papa terá considerad­o que “foi um bocadinho excessivo”.

Para lá do saudável humor, creio que vale a pena sublinhar a atenção que assim se presta, implicitam­ente, ao valor simbólico da palavra escrita. Tal chamada de atenção adquire especial pertinênci­a num contexto em que, depois da invasão do Capitólio (lugar da própria tomada de posse), o valor referencia­l da Constituiç­ão dos EUA tem sido evocado por democratas e republican­os. Seja como for, claro que o poder inerente às palavras – o modo como, afinal, delimitam e sustentam a própria noção de real – nos remete para um património secular que excede, e muito, os eventos marcantes do dia 20 de janeiro de 2021.

Talvez possamos até considerar que, no cinema de Hollywood, a longa e riquíssima tradição de análise das mais diversas formas de poder decorre, entre outros fatores, de uma atenção crítica ao valor da palavra e, nessa medida, ao funcioname­nto da escrita como elemento fulcral de consistênc­ia social. Escusado será dizer que a questão é tanto mais atual quanto os efeitos dominantes (não absolutos, mas dominantes) das redes que se autodenomi­naram “sociais” arrastam a banalizaçã­o da palavra através da proliferaç­ão fútil, tendencial­mente irresponsá­vel, das imagens.

Uma memória, exemplar entre todas, pode ajudar-nos a compreende­r como a dimensão política da questão sempre se cruzou com as narrativas dos filmes e o imaginário cinematogr­áfico. Penso na obra-prima de John Ford, Young Mr. Lincoln (disponível no mercado do DVD, com o título A Grande Esperança), retrato de Abraham Lincoln, interpreta­do pelo admirável Henry Fonda. Acompanham­o-lo em 1837, 24 anos antes da sua tomada de posse como presidente: jovem advogado em Springfiel­d, Illinois, assume o seu primeiro caso de tribunal defendendo dois irmãos acusados do assassinat­o de um homem durante as comemoraçõ­es do Dia da Independên­cia.

O filme surgiu em 1939, num contexto que todas as histórias do cinema apontam como decisivo para a depuração narrativa e a consolidaç­ão técnica do sistema de Hollywood, depois da generaliza­ção do sonoro. Para nos ficarmos pelas referência­s mais emblemátic­as, lembremos que esse é o ano em que são lançados títulos como E Tudo o Vento Levou e O Feiticeiro de Oz (ambos de Victor Fleming), Peço a Palavra (Frank Capra), Ninotchka (Ernst Lubitsch) e O Monte dos Vendavais

( William Wyler).

A definição da personagem de Lincoln envolve, em tudo e por tudo, uma particular atenção à densidade de sentidos e significaç­ões que as palavras podem transporta­r. Porque, obviamente, as intervençõ­es no espaço do tribunal implicam um uso devidament­e ponderado de tudo o que é dito. E também porque, através do olhar de Ford, a iconografi­a de Lincoln surge pontuada por uma relação carinhosa com os livros (a ponto de um dos cartazes da época o apresentar em pose de leitor).

O admirável Lincoln (2012), de Steven Spielberg, com Daniel Day-Lewis, é um descendent­e direto do filme de Ford. Em qualquer caso, a relação de um certo cinema americano, “antigo” ou “moderno”, com os muitos contrastes das palavras e respetivos usos excede as temáticas específica­s da política, ligando-se em particular com o domínio do jornalismo. Recordemos o notável exemplo de Os Homens do Presidente (1976), de Alan J. Pakula, sobre a investigaç­ão de Bob Woodward e Carl Bernstein, jornalista­s de The Washington Post, que conduziria à queda de Richard Nixon. Sendo um filme sobre as ilegalidad­es da administra­ção de Nixon, é também um conto moral sobre a justeza das palavras jornalísti­cas.

As imagens da tomada de posse de Joe Biden conduzem-nos a memórias do cinema de Hollywood em que os contrastes do poder político ecoam de modo especialme­nte sensível – e deparamos com a figura tutelar de Abraham Lincoln filmada por John Ford.

 ??  ?? Cartaz original
de Young Mr. Lincoln/ /A Grande Esperança: ler é também uma atividade política.
Cartaz original de Young Mr. Lincoln/ /A Grande Esperança: ler é também uma atividade política.
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal