Rogério Casanova
Faz de conta que
Fran Lebowitz é uma instituição
Q “ue nome é que damos a pessoas sentadas num bar, a fumar cigarros e a conversar umas com as outras? História da arte.” É um aforismo razoável, no sentido em que cumpre os dois requisitos essenciais do aforismo (ao contrário de muitos candidatos a aforismos): não é nem demasiado óbvio nem obviamente falso, e as premissas não podem ser invertidas sem perda de sentido ou qualidade.
O aforismo surge no documentário de 2010, Public Speaking, a primeira colaboração oficial entre Martin Scorsese e Fran Lebowitz; e volta a surgir na recente série documental Pretend It’s a City (disponível na Netflix Portugal como Faz de Conta Que Nova Iorque É Uma Cidade). Nos dez anos intermédios, também foi sendo repetido em várias entrevistas, palestras, e presenças em talk shows, parte do repertório fixo que Lebowitz transporta consigo sempre que sai de casa.
Scorsese e Lebowitz são amigos de longa data, um facto que Pretend It’s a City ilustra através da acumulação de exemplos em que Scorsese ri descontroladamente de algo que Lebowitz diz. Esse é, aliás, o fio condutor das três horas e meia: Lebowitz a dizer coisas, e Scorsese a rir descontroladamente. O primeiro documentário não era muito diferente, excepto na duração (98 minutos). Tanto um como outro descartam narração, depoimentos de terceiros ou contexto de qualquer espécie. A história da arte pode ser feita por pessoas a conversar, mas a história de Scorsese e Lebowitz é feita de solilóquio e plateia agradecida. A própria forma do documentário presume um estatuto e um conjunto de expectativas, e não sente a mínima necessidade de se justificar. Esse estatuto e essas expectativas ou serão auto-evidentes ou não serão fáceis de explicar, da mesma maneira que não é fácil explicar alguém como Fran Lebowitz a alguém que nunca tenha ouvido falar de Fran Lebowitz: aquilo a que se costuma chamar uma “instituição”, uma espécie de nova-iorquina profissional que conseguiu transformar numa identidade duradoura – e numa fonte de rendimento – a mera residência num código postal. É também, honra lhe seja feita, alguém com um excelente vestuário, uma excelente cara, uma excelente voz, e um incontestável talento para falar muito depressa e de forma fluente, faculdades que serão sempre apelativas para uma franja maior ou menor da população (mesmo para pessoas que não sejam Martin Scorsese, e que não tenham realizado vários filmes cujos protagonistas se destacam pela inabilidade verbal e pela incapacidade de explicar as suas muitíssimas frustrações).
Entrecruzando presenças em festivais ou universidades e conversas com celebridades (Alec Baldwin, Spike Lee, Toni Morrison), e parceladas em sete episódios, as três horas e meia de fluente logorreia são organizadas tematicamente: o que é que Fran Lebowitz pensa sobre isto, o que é que Fran Lebowitz pensa sobre aquilo. “Eu tenho muitas opiniões e isso irrita as pessoas... irrita não, é uma palavra demasiado branca... isso enfurece as pessoas.” Que opiniões incómodas são essas, que tanto enfurecem as pessoas? Há uma opinião macro, chamemos-lhe assim, subdividida em várias opiniões micro. A grande opinião é que Nova Iorque é a melhor cidade do mundo, mas era melhor antigamente, num período muito específico, antes de várias modernices a terem tornado um pouco menos Nova Iorque e um pouco mais como o resto do mundo (isto será um subgénero de nostalgia urbana familiar para qualquer leitor que já tenha lido um artigo que inclua as palavras “a antiga porteira do Frágil”). A partir daí, a realidade é observada na óptica do consumidor: o que é que satisfaz, o que é que irrita. Há demasiados turistas a tirar fotografias. Há pessoas que param de repente no meio da rua. Andar de metro é desconfortável. Os taxistas não batem bem da cabeça. Os condutores de autocarro são incompetentes. Os preços das casas são exorbitantes. Os jovens não largam os telemóveis. As redes sociais são insuportáveis. A arte moderna é esquisita.
Lebowitz fala e fala, Scorsese ri e ri. Torna-se gradualmente claro que o que provoca a sucessão de gargalhadas não é (nem pode ser) o conteúdo, mas o ritmo. Mas tanto conteúdo como ritmo são familiares: a postura de misantropia sofisticada que abdica dos filtros sociais e diz “tudo o que lhe apetece”, libertando assim, em teoria, todas as energias transgressivas da comédia de micro-observação. Tudo isto era possivelmente mais revolucionário no mundo em que só o circuito dos clubes de comédia permitia o acesso à fonte, e antes de Seinfeld, CurbYour Enthusiasm ou dezenas de especiais de stand-up em plataformas de streaming terem universalizado esse património genético. A pose é apelativa, mas tornou-se tão comum (e fácil de reproduzir na ecologia online) que a sua versão vintage parece hoje um iconoclasmo de museu. Qualquer pessoa com uma conta de Twitter ou Instagram já deu a sua voltinha no humor de exasperação hiperbólica sobre os protocolos burocráticos que regulam invisivelmente a experiência social de consumo: qualquer pessoa já manifestou cómica “repugnância” com o ananás na piza, com a combinação de crocs e peúgas, ou (como faz Lebowitz) com “homens que usam calções”.
Na verdade, e obviamente, é um estilo de humor muito mais antigo do que as décadas de 1980 ou 90, e o problema não é antiguidade, mas função. Num ensaio de 1828, Hazlitt critica Beau Brummell (o primeiro dandy) em termos desconfortavelmente familiares para o ouvido contemporâneo: “Brummell (...) alcançou o derradeiro mínimo da brevidade humorística, reduzindo-a a um ponto quase invisível. Todos os seus bons-mots partem de uma única circunstância, o exagero de meras bagatelas até dimensões de grande importância, e depois tratando tudo o resto com a maior das indiferenças, como se tudo o que passasse esses limites fosse um aborrecimento, e perturbasse o sereno ambiente da vida aristocrata.” (Mais à frente no mesmo ensaio, Hazlitt recupera um dos célebres ditos espirituosos de Brummell: virar-se para um nobre e perguntar-lhe “chamas a isso um casaco?”)
Fran Lebowitz tornou-se uma marca, pelo que a sua função é gerir-se a si própria: um bibelot de carne e osso que sirva como embaixada ambulante de um tempo e de um lugar. O problema do documentário (e talvez só seja um problema para quem, como Fran Lebowitz, não tenha outros problemas) é que partilha uma ideia desenraizada do valor do epigrama humorístico, tratando-o como um fim em si mesmo, e não como uma extensão e consequência de um engajamento crítico mais amplo com o mundo. Coligidos em sequência, são retalhos de pura forma, divorciados de qualquer funcionalidade.
A noção de que é possível, e aconselhável, produzir comentário espirituoso constante, sem um objectivo concreto, é perfeita para formas efémeras: o Twitter, a conversa de café com amigos, ou até a leve categoria de crónica metropolitana que Fran Lebowitz praticava (há aproximadamente 40 anos). Em documentários de três horas e meia, o resultado final é apenas uma pessoa sentada num bar a fumar e a dizer coisas durante três horas e meia – o que raramente é arte, ou história da arte, ou interessante.
Não é fácil explicar alguém como Fran Lebowitz a alguém que nunca tenha ouvido falar deFran Lebowitz: aquilo a que se costuma chamar uma “instituição”, uma espécie de nova-iorquina profissional que conseguiu transformar numa identidade duradoura – e numa fonte de rendimento – a mera residência num código postal.