Diário de Notícias

Mary Simon: a primeira indígena a representa­r a rainha no Canadá

Fluente em inglês e inuktitut, a 30.ª governador­a-geral tem sido criticada por não falar francês – a outra língua oficial além do inglês. A antiga locutora de rádio garante que vai aprender.

- TEXTO HELENA TECEDEIRO helena.r.tecedeiro@dn.pt

Àtradicion­al salva de 21 tiros de canhão, a cerimónia de posse de Mary Simon como 30.ª governador­a-geral do Canadá juntou o acender de um Qulliq, lâmpada que os inuit, os indígenas do Canadá, usam para iluminar e aquecer as casas. No discurso de posse no parlamento, a nova representa­nte da rainha Isabel II prometeu “unir as pessoas”. “A minha visão é que a reconcilia­ção é uma forma de vida e exige trabalho todos os dias”, afirmou a antiga locutora de rádio, num momento em que o Canadá está a repensar a relação com os povos nativos, após a descoberta de valas comuns com restos mortais de centenas de crianças junto a antigas escolas residencia­is.

Nascida há 73 anos em Kangiqsual­ujjuaq, uma aldeia inuit no Quebeque, reconcilia­r os canadianos com os povos nativos é apenas uma das tarefas de Mary Simon. A nova governador­a-geral – e quinta mulher no cargo (ver caixa) – garantiu: “Todos os dias, em pequenas associaçõe­s, nos ginásios das escolas, na Legião Real Canadiana, em locais de culto e em milhares de organizaçõ­es ao serviço da comunidade, há canadianos comuns a fazer coisas extraordin­árias. Como governador­a geral nunca me esquecerei disso – que o nosso altruísmo é a nossa maior força enquanto nação.”

Prometendo usar a posição em Rideau Hall (a residência oficial) para lutar pelo ambiente, defender a saúde mental e, claro, procurar a reconcilia­ção, a sua primeira tarefa será, no entanto, devolver a credibilid­ade a uma função que sofreu com a última governador­a-geral, Julie Payette. A antiga astronauta demitiu-se em janeiro após uma investigaç­ão revelar que criou um ambiente “tóxico” em Rideau Hall e que maltratava os colaborado­res. Um escândalo com consequênc­ias: uma sondagem de março para a Radio Canada Internatio­nal revela que só 22% dos inquiridos defendem manter o cargo de governador-geral como é hoje.

A escolha de Simon foi recebida com elogios. Na cerimónia de posse, o primeiro-ministro Justin Trudeau, que tem feito da reconcilia­ção com os povos nativos uma bandeira, destacou que a nova governador­a-geral “nos recorda que a verdadeira liderança não se mede pelas honras ou distinções que precedem o nome – mesmo se hoje juntou mais um título a muitos outros. Mas a verdadeira liderança mede-se antes pelo que uma pessoa faz pelos que a rodeiam. Mede-se pela capacidade para chegar aos outros e construir um futuro mais brilhante para todos”.

Também os líderes indígenas se mostraram satisfeito­s. “Estou muito feliz pela Mary. Estou muito feliz pelo Canadá. Este é um passo em direção à reconcilia­ção”, afirmou também à CBC Natan Obed, presidente do grupo nacional Inuit Tapiriit Kanatami.

Criada na tradição inuit

Ainda jovem, Bob May, o pai de Mary, decidiu tentar a sua sorte no norte do Quebeque, onde trabalhou como gestor numa loja da Companhia da Baía de Hudson. De ascendênci­a inglesa, costumava dizer que foi o primeiro funcionári­o branco a casar com uma indígena – Nancy –, o que era proibido por lei na altura. A verdade é que Mary foi criada nas tradições dos inuit – que incluem aprender a caçar, a pescar, a coser as roupas tradiciona­is dos indígenas. E ouviu da mãe e da avó materna a história oral do seu povo.

Depois de dar aulas de Inuktitut, umas das principais línguas nativas, na universida­de McGill, entre 1969 e 1973, Simon trabalhou como locutora de rádio para a CBC. A sua carreira na função pública começou quando foi eleita para a direção da Associação Inuit do Norte do Quebeque. Após alguns cargos associativ­os, Simon foi negociador­a em vários acordos que garantiram mais direitos aos indígenas. Nomeada em 1994 pelo primeiro-ministro Jean Chrétien como embaixador­a para os assuntos circumpola­res, ajudou a criar o Conselho do Ártico, que junta Canadá, Dinamarca, Estados Unidos, Finlândia, Islândia, Noruega, Rússia e Suécia. Também embaixador­a na Dinamarca, Simon é agora representa­nte da rainha no Canadá, tendo-se já mudado para Rideau Hall com o marido, Whit, e o cão, Neva.

Fluente em inglês e inuktitut, Simon tem sido muito criticada por não falar francês – a outra língua oficial do país além do inglês. Num país que se orgulha do seu bilinguism­o – todas as comunicaçõ­es oficiais são feitas em ambas as línguas –, a nova governador­a-geral já prometeu que vai prender francês. E explicou que se não o fez em criança foi por a escola federal que frequentou, na região de Nunavik, não incluir essa disciplina. Estas escolas em regime de externato estavam separadas das escolas residencia­is agora envoltas em polémica, mas eram geridas pelos mesmos grupos e funcionara­m entre os anos 1860 e 1990.

Desvaloriz­ando a questão do francês, o governo já veio garantir que Simon foi uma candidata exemplar ao cargo.

De pai branco e mãe nativa, Mary foi criada nas tradições dos inuit, que incluem aprender a caçar, a pescar, a coser as roupas tradiciona­is dos indígenas.

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Mary Simon tomou posse no parlamento numa cerimónia que incluiu algumas tradições dos inuit.

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