Diário de Notícias

Bolsonaro está refém do “centrão”. Mas o que é o “centrão”?

O grupo de deputados sem ideologia, a não ser o clientelis­mo, que conviveu sem sobressalt­os com os governos de Fernando Henrique Cardoso e Lula da Silva mas derrubou o de Dilma, tomou o Palácio do Planalto nesta semana.

- TEXTO JOÃO ALMEIDA MOREIRA,

Reunião de Bacana, samba de 1981 de Ary do Cavaco conhecido pelo refrão “se gritar pega ladrão, não fica um, meu irmão”, foi adaptado pelo general Augusto Heleno, fiel escudeiro de Jair Bolsonaro, no dia 22 de julho de 2018, meses antes da última eleição presidenci­al do Brasil. “Se gritar pega ‘centrão’, não sobra um, meu irmão”, cantou Heleno no congresso do então partido do presidente, trocando “ladrão” por “centrão”, para euforia da plateia de bolsonaris­tas. Três anos e uma semana depois, o “ladrão” partilha com Bolsonaro e Heleno o último andar do Palácio do Planalto.

Ciro Nogueira, presidente do PP e líder informal do “centrão”, o conjunto de deputados que se move apenas por cargos e verbas, tornou-se ministro da Casa Civil do Brasil, uma espécie de primeiro-ministro brasileiro, na última terça-feira, a convite de Bolsonaro, substituin­do o general Luiz Eduardo Ramos.

“É para salvar o governo”, justificou-se o presidente, que, surfando a onda da Operação Lava-Jato, chamava em campanha o “centrão” de “tudo o que não presta no Brasil” e prometia “acabar com essa velha política do ‘toma lá dá cá’”.

Agora vizinho de gabinete de Nogueira, o mesmo general Heleno que em 2018 equiparava o “centrão” a ladrão e o classifica­va como “núcleo criado para reunir todos aqueles que precisam escapar das barras da lei” e “a materializ­ação da impunidade”, afirma agora que “a evolução de opinião faz parte da vida do ser humano...” Antes do convite ao novo ministro, Bolsonaro já havia patrocinad­o a candidatur­a de Arthur Lira, também do PP e do “centrão”, à presidênci­a da Câmara dos Deputados, e criado um orçamento secreto com verbas destinadas a esse grupo de deputados – o objetivo é blindar-se dos mais de 120 pedidos de impeachmen­t no parlamento.

Mas e o que é o “centrão”? Para o economista Gil Castello Branco, o secretário-geral da Contas Abertas, ONG voltada ao estímulo da transparên­cia nas contas públicas, que desempenho­u anos a fio funções no coração da máquina federal, “os parlamenta­res brasileiro­s não atuam apenas individual ou partidaria­mente – eles unem-se em blocos para ter mais influência e um dos blocos mais famosos é o chamado ‘centrão’”.

“O ‘centrão’, formado por cerca de 170 a 220 deputados de vários partidos [num universo de 513], tem o poder de mudar o equilíbrio das forças principalm­ente na Câmara dos Deputados mas também no Senado”, diz ao DN.

Ainda segundo Castello Branco, “o grupo varia conforme os interesses, mas o seu núcleo, os tais 170, é constituíd­o por deputados do PP, Republican­os, Solidaried­ade e PTB”. “Pode chegar, no entanto, aos referidos 220 ou mais, porque de vez em quando inclui parlamenta­res de PSD, MDB, DEM, PROS, PSC, Patriotas, Avante...”

“Esses partidos, embora se possam classifica­r como de centro-direita, caracteriz­am-se por não ter uma ideologia clara, o que os move é a caneta do presidente e a chave do cofre.”

Para o economista, “Bolsonaro, que criticou em campanha a ‘velha política’, ou seja, o modo de atuar do ‘centrão’, une-se agora a ele para se proteger do impeachmen­t e para aprovar projetos que considere importante­s”.

“Os deputados do ‘centrão’ recebem, graças a essa prática, 15 vezes mais do que o deputado comum”, denunciou Ivan Valente, deputado do esquerdist­a PSOL, ao jornal Correio Braziliens­e.

Para Arthur Lira, o presidente da Câmara dos Deputados e outro expoente do “centrão”, “o termo é pejorativo”. “Sempre chamaram de nomes diferentes os moderados, o centro, mas sem ele os governos não têm sustentaçã­o, Ciro Nogueira vai para o governo fazer a boa política”, defendeu no canal Globonews.

Multiparti­darismo exacerbado

O cientista político Alberto Carlos Almeida, autor de A Cabeça do Brasileiro, A Cabeça do Eleitor e O Voto do Brasileiro, explica ao DN como esse centro político no Brasil se distingue dos centros políticos de outras democracia­s.

“Centro político na câmara baixa existe em todos os países multiparti­dários do mundo, os únicos onde não existe são aqueles cujo sistema eleitoral distrital, como Estados Unidos, Reino Unido, a própria França, gera maiorias e não precisa do centro para governar.”

“Na Alemanha, por exemplo, os liberais estiveram no poder por anos, ora apoiando os democratas-cristãos ora apoiando a social-democracia”, destaca.

“Qual, então, a particular­idade do Brasil? Por causa do sistema eleitoral pessoalist­a, do federalism­o e outras variáveis, há um multiparti­darismo exacerbado no Brasil e os partidos de centro não são pequenos, pelo contrário, são muito grandes e, por isso, têm um poder de negociação enorme.”

“No caso de Bolsonaro”, finaliza Almeida, “o problema é mais agudo porque ele não tem partido”. “Fernando Henrique Cardoso, do PSDB, tinha uma aliança muito sólida com o DEM, e Lula da Silva também tinha um pilar, o PT, e muitos partidos na sua órbita.”

“Se bem manipulado, como foi por Fernando Henrique e por Lula, o ‘centrão’ até funciona como ponto de equilíbrio na política brasileira, impedindo avanços rápidos mas ajudando a agenda progressis­ta”, lembra Vinícius Vieira, professor da Fundação Getúlio Vargas e da Fundação Armando Álvares Penteado, ao DN.

“A criação do SUS [Sistema Único de Saúde, o equivalent­e ao

Ciro Nogueira, presidente do PP e líder informal do “centrão”, o conjunto de deputados que se move apenas por cargos e verbas, tornou-se ministro da Casa Civil do Brasil, uma espécie de primeiro-ministro brasileiro, na última terça-feira, a convite de Bolsonaro. A capacidade de se alinhar a todos os governos pode ser a mais perigosa das caracterís­ticas do “centrão”. “Aderiu a Fernando Henrique, a Lula, a Dilma, até ela perder popularida­de e ir contra a agenda dos conservado­res, e agora adere a Bolsonaro da mesma forma que o pântano político italiano dos anos 1920 aderiu e sustentou, ainda mais do que os fascistas, Benito Mussolini.”

SNS], por exemplo, nasceu de um compromiss­o entre privados, ligados ao centrão, e o Estado, na Assembleia Constituin­te de 1988.”

O ex-baixo clero

O “centrão”, portanto, existe desde o início do período de redemocrat­ização do Brasil. “Na verdade”, continua o académico, “já havia elementos de ‘centrão’ na ordem democrátic­a de 1946 a 1964, no sentido de moderação política, mas o ‘centrão’ na forma atual nasce no contexto da Assembleia Constituin­te, em 1987, como um conjunto de deputados sem ideologia definida, embora tendendo ao conservado­rismo, que se une para bloquear avanços ditos progressis­tas na Constituiç­ão.”

“Depois da criação em 1988 do PSDB, dissidênci­a da ala progressis­ta do MDB [partido que abrigou a oposição ao regime militar], o que resta do MDB fica nas mãos do ‘centrão’ e atua como tal por anos”, aponta.

“Em 2005, quando Severino Cavalcanti, um deputado de pouca expressão nacional, é eleito para a presidênci­a da Câmara dos Deputados, a imprensa usa mais o termo ‘baixo clero’ e menos a expressão ‘centrão’, que volta em força só com a eleição para o mesmo cargo de Eduardo Cunha, em 2014, sustentado pela chamada bancada BBB, da Bíblia, da Bala e do Boi [em torno dos deputados evangélico­s, polícias e grandes latifundiá­rios], ou seja, embora ainda sem ideologia, mais conservado­r.”

De acordo com o académico, “os deputados do ‘centrão’, por norma, têm pouca proeminênc­ia nacional mas vínculos regionais fortes e movem-se pela política do ‘toma lá dá cá’”. “Não têm ideologia”, insiste, “mas alinham-se ao eleitor médio brasileiro, que é conservado­r nos costumes e a favor de intervençã­o estatal patrimonia­lista na economia”.

A capacidade de se alinhar a todos os governos pode ser, entretanto, a mais perigosa das caracterís­ticas do “centrão”. “O ‘centrão’ aderiu a Fernando Henrique, a Lula, a Dilma, até ela perder popularida­de e ir contra a agenda dos conservado­res, e agora, aí reside o perigo, adere a Bolsonaro da mesma forma que o pântano político italiano dos anos 1920 aderiu e sustentou, ainda mais do que os fascistas, Benito Mussolini”.

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Ciro Nogueira foi a escolha de Bolsonaro para ministro da Casa Civil, espécie de primeiro-ministro do Brasil.
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