Eanes, o nome maior da nossa democracia
Eanes fez da sua vida um exemplo de desprendimento e entrega à causa pública, sem nunca deixar de utilizar a sua experiência e sabedoria para apaziguar os nossos fantasmas.
António Ramalho Eanes está igual a si próprio, o país é que parece mais pequenino. Para discutir o legado de Otelo ou de Spínola, uma parte importante do “komentariado” nacional gastou o seu latim a discutir-se a si próprio, como se a sua opinião ou a sua mudança de opinião fossem mais importantes do que os personagens históricos que era suposto analisarem. Fica para a história, uma vez mais, o exemplo de Eanes.
Neste tempo em que direita e esquerda voltam a disputar o palco tentando convencer-nos em simultâneo que têm o exclusivo do bem, apontando ao outro lado todos os males do mundo, jogando Spínola contra Otelo e Otelo contra Spínola, como se o terror de um dos lados pudesse ser diferente do terror do lado contrário, como se o sangue das vitimas não fosse todo da mesma cor… neste tempo, há uma história mais valorosa para recordar. Não parece fazer sentido, sequer, regressar a um tempo de culpas que foi ultrapassado muito pela ação de Ramalho Eanes, mas também de Mário Soares, políticos de outro gabarito e que sempre perceberam a importância de não deixar o país preso a uma visão maniqueísta. Procurar reintegrar Spínola e Otelo ficou a dever-se em grande parte a Eanes e Soares, que até passaram a adversários políticos na reeleição do então Presidente da República. Seguiu-se Soares na presidência e foi ele quem deu as últimas honrarias a Spínola, como foi ele quem assinou o indulto de Otelo.
Apostar tudo na reconciliação, perdoando o heroísmo com pés de barro, primeiro a Spínola e depois a Otelo, terá deixado mágoa profunda nas famílias das vítimas do MDLP e das FP-25, como terá servido para cavar mais fundo as trincheiras onde uns poucos se refugiaram. Mas nem o 11 de Março nem o 25 de Novembro, datas em que se jogou a sorte de prosseguir o caminho de consolidação da democracia em lugar de cair noutra ditadura, serviram para os vencedores humilharem os vencidos. Na senda, aliás, do que nos tinha dado o 25 de Abril. Num país que viveu 48 anos anos em ditadura (só no próximo ano teremos tanto tempo de democracia), pretender que tudo tivesse decorrido exemplarmente, sem tentações à direita e à esquerda, só serve para procurar condenar perpetuamente os desvios atribuídos ao homem que comandou as tropas no 25 de Abril ou ao homem que recebeu a rendição do anterior regime nesse mesmo dia, mas não serve para acrescentar soluções ao momento presente.
Regressamos a António Ramalho Eanes, o militar que se revelou ao país em novembro de 1975 e se afirmou como político quando trabalhou para despolitizar as Forças Armadas, permitindo que a democracia fizesse o seu caminho sem ter de estar sempre à espreita, com receio de golpes e contragolpes. Eanes tornou-se o mais consensual dos militares e políticos portugueses. Falhou com o PRD, mas não se tornou mais amargo com esse falhanço, como aconteceu com tantos outros que não souberam lidar com as derrotas. Eanes fez da sua vida um exemplo de desprendimento e entrega à causa pública, sem nunca deixar de utilizar a sua experiência e sabedoria para apaziguar os nossos fantasmas. Com a morte de Otelo, dando-nos o seu testemunho, que funcionou como água apagando um fogo, voltou a mostrar-nos que é possível perdoar sem esquecer.
Na linha da frente, a defender a democracia, desde 25 de novembro de 1975. Muitos prometem, Eanes cumpre.