“Quotas são como aparelhos dos dentes, ficam feio mas endireitam”
É caso único nos 20 “distritos” eleitorais. Socialistas têm mais mulheres candidatas (seis) a presidente de câmara do que homens (cinco). PSD vai a votos com 11 homens.
“Se ela fosse homem... toda a gente sabe que as mulheres não votam em mulheres.” O desabafo saiu, naturalmente e até com um sentimento de tristeza, a uma mulher a quem a candidata, na rua em campanha, explicava porque queria ser presidente de câmara, o que deveria mudar, o que era preciso fazer no concelho. Semanas depois, à noite, sozinha, fechada num gabinete, a preparar-se para o pior, pensava no que escrever no discurso de derrota. Ficou a meio. Alguém entrou porta adentro e gritou: “Ganhámos!” A vitória, por uma margem magra, em 2017, por 82 votos, deixou-a sem saber o que fazer. “Não sabia o que era festejar. Na verdade, o que queria era ir para casa.”
Meses antes, o partido tinha-se enredado em discussões sobre o candidato ideal. “Homem, casado, dois filhos, meia-idade, conhecido, bem relacionado com as gentes da terra.” A demora levou-a a dar o passo em frente. “Achei muito natural estar disponível [era vereadora desde 2013] e senti-me muito confiante no meu trabalho.”
Avançou e foi eleita, mas percebeu que “se as possibilidades de ganhar fossem maiores, teriam tentado a escolha de um candidato masculino”. Até num partido “mais aberto” havia “algumas questões”. O ser “jarra” numa mesa de homens, apesar de ser coisa do passado, ainda resistia aqui e ali na cabeça de “gente mais velha”. “As quotas são como os aparelhos dos dentes, ficam feio mas endireitam”, gosta de dizer.
Célia Pessegueiro, autarca na Ponta do Sol, é a única recandidata na Madeira. Desde cedo que entrou na política. Ganhou a liderança da JS-M em 2002, foi deputada na Assembleia Regional, vereadora em 2013 e presidente de câmara nas últimas autárquicas. Um percurso em que “muitas vezes” sentiu que o ser mulher bastava para ser afastada de cargos de liderança.
“Não por uma questão de competência. A segregação de género para esse tipo de cargo não ocorre de forma direta. É insidiosa. Tem que ver com a disponibilidade para a participação nas iniciativas e reuniões, com algum tratamento patriarcal por parte de quem tem os cargos de liderança e por, muitas vezes, se achar que não há confiança por parte do eleitorado na liderança das mulheres. Não fosse a lei da paridade, a participação das mulheres seria residual. Ainda mais do que é”, afirma.
Porém, a fasquia é diferente. Uma mulher é mais examinada. O seu desempenho é mais avaliado. Até mesmo pelos homens do mesmo partido. “Muitas vezes sinto que para que o meu trabalho seja reconhecido tem de ter mais profundidade, mais planeamento e melhor execução do que o de um homem com as mesmas funções. Sou mais escrutinada do que o resto dos meus colegas. Tenho de trabalhar muito mais.”
“Muitas vezes”, o exame constante vai para além do aceitável. “Quando não há argumentos, recorre-se à ofensa, normalmente a comentários de índole sexual, que remetem para a condição de ser mulher e para a submissão ao homem.”
Célia Pessegueiro assumiu o desafio da política, mas sabe que essa não é a regra entre as mulheres. Há quem desista perante a “pressão”. “Conheço, infelizmente, situações muito semelhantes. São usados argumentos do tipo ‘não vais ter tempo para cuidar dos teus filhos e andar na política’ ou ‘deixa isso para quem sabe, o teu companheiro não te vai poder ajudar porque é muito ocupado’, pressões infelizmente demasiado frequentes.”
A lei da paridade obrigou a mudanças, abriu “janelas”, mas “insuficientes”. É preciso “exigir a igualdade a todos os níveis”, acabar com a “paridade ténue”, com a “discrepância entre o número de mulheres que integram as listas e as que efetivamente ocupam os lugares”.
Mafalda Gonçalves, candidata a Santa Cruz, que entrou na política nos anos 1990 e é desde 2015 presidente das mulheres socialistas da Madeira, sentiu na pele “durante muito tempo” a condição de mulher.
“Experimentei um sentimento de solidão, em reuniões lideradas por homens, eu era a única mulher.” É, era, grande o ‘peso’ de ser mulher? Mafalda não trava um riso... “A política não é friendly para a mulher, não foi pensada para as mulheres.” Não foi pensada? “Os horários tardios das reuniões, a disponibilidade que é preciso ter, as atividades pós-laborais, os fins de semana, tornam mais difícil a participação das mulheres do que dos homens. O cuidado do lar e da família continua a ser maioritariamente desempenhado pelas mulheres”, explica.
E depois há a socialização política masculina, dos “bares e cafés, onde ainda não é natural ver uma mulher, os feudos masculinos. São reflexos do caldo cultural onde todos fomos
educados e que leva o seu tempo a ser alterado.”
Outra das diferenças, das dificuldades, é o escrutínio constante. “E mais pelo facto de ser mulher. Parece que temos de provar que merecemos lá estar.” Uma provação diária, um “caminho extra” permanente. “Ainda há muita gente que discorda da lei da paridade e que defende a sua abolição. Isto implica que o mérito que é nosso, que levou a que integrássemos aquela lista e que posteriormente fôssemos eleitas, tem de ser diariamente provado.”
“E ainda acontece ser difícil ouvir o que uma mulher tem a dizer, por haver quem considere que há assuntos dos quais elas não sabem falar, principalmente se não tiverem que ver com educação ou com questões sociais”, revela.
Helena Freitas, candidata a SãoVicente, que entrou para a política em 2017, tem uma experiência diferente. Nunca sentiu que a condição de mulher fosse um problema, mas já se sentiu menorizada “porque infelizmente ainda há pessoas que pensam que o mundo tem de ser ‘dominado’ pelos homens”.
“Senti na pele, quando em 2017 integrei a lista do PS Madeira, um dos autarcas regionais com outros locais ameaçaram a minha carreira. Fiquei boquiaberta, nunca pensei que esses métodos salazaristas e fascistas ainda existissem”, afirma.
E a política “de café”? Essa, confessa, existe e já afetou resultados eleitorais. Até mesmo quando não há um café por perto. “Os amigos, simpatizantes ou até mesmo os envolvidos diretamente no PSD e Unidos por São Vicente costumam, em dia de votos, estar nos cafés sitos nos locais de voto, pagando bebidas às pessoas que vão votar. Quando não existem cafés perto, estão no outro lado da estrada, a menos de 50 metros, falando com os votantes de forma a influenciar o voto.”
Tânia Freitas, candidata em Santana, deputada há dois anos na Assembleia Regional, a sua primeira experiência política, não sentiu que a condição de mulher a “impedisse de exercer cargos de liderança”. Sentiu-se, isso sim, “menorizada e ameaçada. Aconteceu por diversas vezes e com outras colegas na Assembleia Legislativa. As ofensas e ameaças nos apartes que, muitas vezes, são proferidos por deputados que suportam o governo regional e mesmo por membros do próprio governo regional”.
“Senti-me ofendida. Num caso, o diploma era sobre apicultura e veio das bancadas um comentário e risos. Apartes grosseiros. Diziam que devia ter sido picada por outra coisa qualquer”, relata.
Tânia Freitas, que hesitou antes de aceitar o convite para liderar a lista socialista – “não foi fácil dizer sim” por razões profissionais – e apesar de ter o apoio da família, já se viu obrigada a levar os filhos para reuniões políticas porque “não tinha com quem os deixar”. Afinal, o “dia não não estica”.
Sofia Canha, candidata na Calheta, com mais de 20 anos de experiência política, que só se filiou em 2015 após ser eleita deputada, já recusou “propostas porque tinha uma criança pequena, a prioridade estava nos compromissos familiares”.
O travão não foi a condição de mulher, foi a condição de mãe. “Ao assumir a maternidade, achei que deveria assumir também a responsabilidade inerente e não passá-la a terceiros. Sendo certo que em alguns momentos tive de afirmar a minha vontade, face a estímulos pouco encorajadores da família. Se calhar, se fosse homem seria aceite com maior naturalidade”, afirma.
A candidata, que nunca se sentiu menorizada por estar num palco masculino, reconhece existir no seu concelho uma cultura conservadora, a do “ela devia era estar em casa, a esta hora aqui... e o marido em casa!”, uma política “das patuscadas, do futebol e dos cafés”.
“A política é culturalmente uma atividade masculina, com hábitos e rituais de socialização em espaços públicos, sobretudo de entretenimento. Um dos papéis culturalmente atribuídos à mulher é desenvolvido em casa, no espaço de intimidade familiar.” A política “não é family friendly”, afirma.
Sofia Canha defende que “se queremos introduzir alterações ao modo como as famílias se organizam, os políticos devem dar o exemplo. E a plena paridade? “O 50/50 condiciona muito a elaboração de listas. O número pode ser uma referência, mas não obrigatoriedade. Já o facto de serem intercalados os sexos na ordem dos candidatos, considero importante.”
Olga Fernandes, professora durante 26 anos, candidata à Ribeira Brava, e sem ligações políticas até 2019, ano em que foi convidada para deputada, nunca sentiu que a sua condição de mulher fosse um problema na política. “Existem homens que são líderes e mulheres que são líderes. Tão simples como isto.”
“Nunca pensei no mundo político como masculino. Há homens e mulheres de valor e sempre trabalhei com todos. E quando falo com uma pessoa não penso se é homem ou mulher. É uma pessoa”, diz.
A candidata fala de outra menorização, “casos de pressões política”, de quem não pertence ao universo social-democrata, de “represálias em contexto de trabalho e medo. Muito medo. Medo de afastamentos para outros locais de trabalho mais longínquos, medo de represálias nas avaliações de trabalho, bullying político”.
Situação que todas as candidatas dizem conhecer. Nalguns casos de forma direta.
“Disseram-me que me iam tramar. Existe muito essa ideia do medo, de ser apontada na rua. Até vão a nossa casa pedir satisfações”, diz Helena Freitas.
“Um exemplo bem recente, um dos nossos candidatos convidou uma senhora para integrar a sua lista, e a mesma recusou, dizendo exatamente isto: ‘Apoio-te, mas não posso aceitar ter o meu nome na tua lista, devido ao meu trabalho.’” Nos mais velhos, diz, as “ameaças” são concretas. E cita o que lhe é dito: “Vão perder as reformas e os seus direitos. Não se esqueçam de que estamos a vigiar, na cabina de voto há câmaras ocultas”, acrescenta.
Mafalda Gonçalves também refere o medo de sofrer represálias no trabalho. “Dizem-nos ‘eu queria, mas ainda não estou efetiva...’, e também: ‘Eu gostava tanto! Mas só estou neste trabalho há um ano e tal… e… sabes como é…’ Este ‘sabes como é’ subentende uma cultura de medo e de perseguição que ainda grassa na sociedade madeirense”, conta a candidata a Santa Cruz. “Muito medo e pouca liberdade”, afirma Tânia Freitas, candidata em Santana.
“Sou mais escrutinada do que o resto dos meus colegas. Tenho que trabalhar muito mais.” ”