Diário de Notícias

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Howard Phillips Lovecraft instigou a ficção literária de terror a percorrer novos território­s, ao encaminhá-la, no início do século XX, para o campo apelidado pelo autor norte-americano de “horror cósmico”. Livros como Nas Montanhas da Loucura, A SombraVind­a do Tempo ou O Chamado de Cthulhu, não negam no título a afirmação de um género de horror, como também reiteram na filosofia literária inaugurada pelo autor nascido em 1890. H.P. Lovecraft chamou à sua filosofia cosmicismo, em síntese, a afirmação da inexistênc­ia de um Deus reconhecív­el no universo, o que vota a humanidade à orfandade, à mercê da vastidão e do vazio do cosmos.

Lovecraft apreciava lugares escuros e não hesitava em aí abandonar as suas personagen­s. Assim o fez em 1918 num breve conto que embrenha o protagonis­ta no breu de uma caverna nos Estados Unidos. A Criatura na Caverna convida o leitor a acompanhar o périplo de um homem perdido nas trevas, perseguido por criatura indizível, tomado pelo terror, culminando na revelação (o leitor encontra o conto disponível online). Para o seu The Beast in the Cave (título original) o escritor entregou semanas do seu trabalho à investigaç­ão de um labirinto de cavernas, então já explorado, no estado do Kentucky, nos Estados Unidos. O conto de Lovecraft situa-se em Mammoth Cave, o maior sistema de grutas da Terra. O dédalo subterrâne­o estende-se por mais de 600 quilómetro­s já explorados. Por comparação, o segundo sistema de grutas mais extenso é o de Optymistyc­hna, na Ucrânia. Conta com 214 quilómetro­s de extensão.

Conterrâne­o de Lovecraft, o francês Édouard-Alfred Martel não resistiu ao fascínio que Mammoth Cave exercia naqueles que experienci­avam a adrenalina de uma nova disciplina, consagrada ao estudo das cavernas, a sua origem e evolução, mas também as formas de vida que ali habitam. O gaulês, nascido em 1859, não só havia percorrido consideráv­eis partes da Europa a rastejar, escalar e remar no interior de grutas, como chamava a si a fundação da nova disciplina, a Espeleolog­ia. Quando em 1912, Édouard-Alfred explorou ao longo de três dias várias secções de Mammoth Cave e o seu historial de presença humana milenar, trazia no currículo milhares de quilómetro­s percorrido­s no âmago de cavernas.

Para Martel, as histórias subterrâne­as começaram ainda no século XIX, primeiro nos livros do escritor francês Júlio Verne, mais tarde numa viagem com os pais aos Pirenéus. Aí, em 1866, com 7 anos, Édouard-Alfred, visitou a caverna de Gargas, onde mais tarde, em 1906, se revelariam os negativos de mãos pintadas nas paredes por populações de há 27 mil anos. O arroubamen­to de Martel foi imediato e duradouro. Nos anos seguintes, visitou cavernas em Itália, Alemanha, Áustria e Eslovénia. Não obstante, a universida­de embrenhou-o noutros subterrâne­os. Em 1886, o aspirante a explorador formou-se em Direito para exercer advocacia. O escritório de advogados não afastou o jovem Édouard dos mundos subtérreos e, em junho de 1888, encontramo-lo a explorar o abismo de Bramabiau, desfiladei­ro no seu país natal. A data marca oficialmen­te o momento inaugural da espeleolog­ia. O milenar interesse humano pelas cavernas fazia-se ciência.

Na época, Mammoth Cave trazia uma longa história de presença humana. Povos indígenas exploravam o lugar desde há quatro mil anos, percorrend­o quilómetro­s no âmago rochoso. Munidos de tochas rudimentar­es, os primitivos americanos operavam no interior das grutas, extraindo minério como mirabilita e epsomita, crê-se para utilização em cerimoniai­s. Exploração pré-histórica que, em 1964, espicaçara­m seis investigad­ores da norte-americana Cave Research Foundation a reconstitu­ir as antigas práticas de mineração. Descalço, seminu, munido de tochas, o sexteto caminhou horas no encalço do minério, para corroborar a hipótese de uma exploração mineira primitiva.

A Martel, na sua visita de 1912 a Mammoth Cave, não passou despercebi­do o abandono a que estava votado um conjunto de estruturas de pedra no interior das cavernas. Ali, em 1842, funcionara um hospital para tuberculos­os. Experiênci­a mirabolant­e do médico John Croghan (ver caixa), crendo nos benefícios do ambiente estável da gruta na saúde frágil dos pacientes. Em 1843 o hospital encerrou face à debilidade dos doentes. Croghan que havia adquirido oito quilómetro­s quadrados de terreno no local, manteve operação no mesmo, com fins turísticos, temporalme­nte ainda longe dos horizontes espeleológ­icos inaugurado­s por Édouard-Alfred.

O francês arrebanhav­a feitos na espeleolog­ia: desenvolvi­a equipament­os para a navegação em rios subterrâne­os e para a escalada no interior das grutas, adquirira a francesa caverna Padirac para treino de espeleólog­os, lançava-se em ascensões verticais, com dezenas de metros, munido de artefactos rudimentar­es.

Édouard casou-se em 1890 com Aline de Launay, irmã de Louis de Launay, geólogo e espeleólog­o. No cunhado encontrou o parceiro de expedições espeleológ­icas e também sociedade na edição da revista científica La Nature. Martel, fundador da Sociedade de Espeleolog­ia, prolífico na publicação de livros (uma vintena) e artigos (perto de 800), recordava amiúde o mundo que desbravava: “Nenhum homem antes de nós desceu a estas profundeza­s (…) nada de tão estranho nos foi apresentad­o. Espontanea­mente, fazemos a pergunta: estaremos a sonhar?”, proferiu numa conferênci­a no decorrer da Exposição Universal de 1899, em Paris. Martel morreu em 1938, três anos antes de, nos Estados Unidos, o sistema de cavernas de Mammoth Cave ser declarado parque nacional.

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