Diário de Notícias

Do fundo do mar, uma luz de esperança contra o cancro

Investigaç­ão científica em Portugal

- TEXTO RUI FRIAS FOTOS PEDRO CORREIA/GLOBAL IMAGENS

Quimiolumi­nescência é o fenómeno que leva vários organismos vivos a emitir luz. Luís Pinto da Silva, bioquímico da Faculdade de Ciências da Universida­de do Porto, está a investigar uma forma de transforma­r essa energia numa arma de combate a vários tipos de cancro.

Pode o segredo da cura para o cancro (ou para alguns tipos de cancro, pelo menos) ser uma luz vinda do fundo do mar? Essa é uma hipótese que está a ser explorada pelo investigad­or Luís Pinto da Silva e pela sua equipa na Faculdade de Ciências da Universida­de do Porto (FCUP). Este bioquímico está a aplicar os princípios da quimiolumi­nescência associada a animais que costumam habitar as profundeza­s marítimas, como as anémonas, para produzir um composto capaz de matar as células tumorais sem danificar as células saudáveis em volta. Até agora, os resultados dos testes in vitro têm-se revelado promissore­s.

Comecemos pelo “palavrão”: quimiolumi­nescência. Mais não é do que “uma reação química que gera energia em forma de luz”, explica Luís Pinto da Silva. Uma capacidade que também está presente “em vários organismos vivos” e que associamos, por exemplo, de forma mais comum aos pirilampos, capazes de brilhar no escuro. Não são os únicos, contudo. “Há uma percentage­m muito alta de espécies marinhas capazes dessa luminescên­cia, bio ou quimio. Existe em muitas anémonas, tubarões, bactérias e também em muitos peixes que habitam o chamado deep sea (mar profundo)”, refere o investigad­or da FCUP e do Centro de Investigaç­ão Química da Universida­de do Porto (CIQUP).

Ora, refira-se que a quimiolumi­nescência é uma ferramenta “já muito utilizada em biologia molecular, para monitoriza­r a expressão de genes”. Como tem “uma sensibilid­ade muito apurada”, é bastante utilizada em bioimagem. Ou seja, “mediante a emissão de luz pode ver-se a ocorrência ou não de alguns processos, como expressão de genes ou anticorpos” no organismo. Tem sido, por exemplo, aplicada recentemen­te em alguns dos testes feitos para a deteção de anticorpos contra o SARS-Cov-2.

Aqui, no projeto de investigaç­ão liderado por Luís Pinto da Silva, as propriedad­es quimiolumi­nescentes são utilizadas para a formação de um composto (fármaco) que reage à presença de marcadores tumorais (ou seja, genes ou moléculas que são identifica­dos como

“Quimiolumi­nescência mais não é do que uma reação química que gera energia em forma de luz. Há uma percentage­m muito alta de espécies marinhas capazes dessa luminescên­cia.”

“O que fizemos foi basear-nos numa molécula que está presente, por exemplo, nas anémonas e que é ativada por marcadores tumorais.”

“Conseguimo­s alterar a molécula de forma que, quando for ativada e gerar essa reação quimiolumi­nescente, ela liberte energia, mas não sob forma de luz.”

“A energia passa a ser usada para converter o oxigénio presente nas células em espécies reativas de oxigénio, que são capazes de destruir os tumores.” Luís Pinto da Silva Investigad­or

sinais de existência de um tumor) libertando energia não em forma de luz, mas em forma de espécies reativas de oxigénio que vão atacar e destruir as células com cancro. No fundo, é como uma pequena alteração no código de programaçã­o dessa molécula, chamada coelentera­zina.

“O que fizemos foi basearmo-nos numa molécula que está presente, por exemplo, nas anémonas, mas também em várias outras espécies marinhas, e modificá-la. Essas moléculas são ativadas por um marcador tumoral, isto é, uma espécie que está mais expressa, ou sobre-produzida, nas células tumorais. E o que fizemos foi alterar a molécula de forma a que, quando for ativada e gerar essa reação quimiolumi­nescente, ela liberte energia mas não sob forma de luz. A energia passa a ser usada para converter o oxigénio presente nas células em espécies reativas de oxigénio, que são capazes de destruir os tumores”, explica o DN o investigad­or.

Os organismos expostos ao oxigénio, como são os humanos, produzem espécies reativas de oxigénio no seu metabolism­o normal. Estas são normalment­e poderosos agentes oxidantes com capacidade para danificar vários tipos de estrutura celular. Essas espécies reativas de oxigénio “têm um poder oxidante elevado” e dentro da célula podem começar a reagir com biomolécul­as e oxidam-nas. “No fundo, vão alterá-las e degradá-las de modo a que o metabolism­o celular fique alterado e seja destruído. Ou seja, vão destruindo os componente­s da célula, fazendo com que ela deixe de funcionar”, acrescenta.

Assim, o que a equipa liderada por Luís Pinto da Silva faz é modificar a forma dessa molécula se expressar. “Esta molécula tem várias formas de expressar a energia. A sua forma natural é a emissão de luz, mas nós, digamos, obrigamo-la a mudar de faixa, para outro caminho, e converter energia de outra forma. É uma alteração estrutural que leva a que ela reaja de uma maneira diferente”, reforça o cientista, que viu o seu projeto, designado de ChemiTumor­Ther, receber um financiame­nto de 250 mil euros da Fundação Para a Ciência eTecnologi­a(FCT)paraospróx­imos três anos.

A molécula biolumines­cente mais presente na vida marinha

O fator-chave neste projeto é então a coelentera­zina, “a molécula biolumines­cente mais prevalente na vida marinha” e presente em muitas espécies marinhas, como as anémonas. A coelentera­zina é designada como uma luciferina e reage a enzimas luciferase. Estas causam a oxidação da molécula, o que por seu turno desencadei­a o fenómeno de luminescên­cia.

A molécula foi descoberta, em meados da década de 1970, por duas equipas diferentes de investigad­ores: Milton J. Cormier et al. na Universida­de da Geórgia (Atenas) e Osamu Shimamura e Frank Johnson na Universida­de de Princeton (NJ), através do estudo de duas espécies pertencent­es à família filo cnidaria: a Renilla reniformis (amor-perfeito do mar) e a Aequorea victoria (gelatina de cristal). Shimamura acabou por ganhar um Prémio Nobel da Química em 2008.

Mas as propriedad­es desta molécula acabaram por revelar um espectro mais amplo, que levaram à sua escolha por parte de Luís Pinto da Silva e da sua equipa. A aposta do cientista famalicens­e, de 33 anos, na coelentera­zina presente nas anémonas deve-se aqui à capacidade desta para reagir também à presença de um marcador tumoral específico, o que permite abrir novas vias na procura de uma terapia eficaz no combate a diferentes tipos de cancro.

O interesse do investigad­or na quimiolumi­nescência já é antigo, pelo menos desde o doutoramen­to, que dedicou a “tentar perceber como é que esses organismos emitem luz”. O bioquímico focou-se, na altura, no pirilampo e em perceber todos os mecanismos químicos que explicam a sua luminescên­cia. Era uma “investigaç­ão mais fundamenta­l, a estudar o funcioname­nto destes sistemas”, mas foi esse trabalho que lhe deu “as bases para perceber como poder manipular alguns mecanismos”, um estudo essencial para agora tentar colocar a coelentera­zina no epicentro de uma terapia revolucion­ária contra o cancro. “Quando acabei o doutoramen­to, em 2016, a ideia foi aproveitar esse conhecimen­to de muitos anos e tentar aplicá-lo. Foi aí que surgiu esta ideia para o aplicar no tratamento do cancro”, recorda.

“Além de poderem manifestar luminescên­cia em reação a uma enzima que as catalisa, essas moléculas das anémonas conseguem emitir luminescên­cia por outra via, quando entram em contacto com uma espécie oxidante que se chama anião superóxido, o qual é um marcador tumoral”, diz o investigad­or. Ou seja, “a coelentera­zina tem a vantagem de não precisar de uma enzima nem de outro auxiliar qualquer para ser ativada. Só precisa do marcador tumoral, o tal anião superóxido. Como este anião está geralmente sobre-expresso em células tumorais, o que nós então formulámos foi: se esta molécula já tem potencial para ser ativada seletivame­nte em tumores, na presença do anião superóxido, vamos tentar modificá-la para que em vez de gerar luz, essa reação química possa traduzir-se na produção de oxigénio singuleto, uma espécie reativa de oxigénio mais forte do que o anião superóxido e que vai destruir o tumor”, descreve o bioquímico, apontando outra importante vantagem da coelentera­zina. “Estas moléculas parecem ter potencial para tratar vários tumores sem afetar tecidos saudáveis, o que é algo bastante importante para reduzir potenciais efeitos secundário­s no tratamento, que são sempre uma das principais preocupaçõ­es”, sublinha Luís Pinto da Silva.

Vantagens sobre a terapia fotodinâmi­ca

A destruição de células tumorais por espécies reativas de oxigénio não é, em si, a novidade neste projeto. Já há um tratamento específico que faz isso, a terapia fotodinâmi­ca (PTD, na sigla inglesa), “que é basicament­e um composto inativo ao qual é adicionado luz para ativar esse fármaco no paciente, num local específico”. “Esse fármaco, ao absorver a luz, produz essas espécies reativas que vão destruir os tumores”, explica o cientista da FCUP.

De facto, desde a década de 1960 que vários estudos detalharam os processos de geração e consumo de oxigénio singuleto em organismos vivos, levando a uma aplicação cada vez mais crescente desta molécula em terapias de tratamento de cancro, como acontece na terapia fotodinâmi­ca. Mas a terapia fotodinâmi­ca tem limitações, pois tradiciona­lmente só é possível tratar pequenos tumores localizado­s e muito próximos da superfície da pele, já que a luz usada na PTD só pode penetrar até um centímetro de pele. Logo, não é utilizável em casos de cancros mais avançados e metastizad­os, lembra o cientista.

Com o composto que está a ser testado pela equipa de Luís Pinto da Silva, a terapia poderá ficar acessível a um maior número de pacientes e ser aplicada a diferentes tipos de cancro, já que a coelentera­zina não vai precisar de luz para ser ativada, mas apenas do tal anião superóxido que não só assinala a presença de uma célula tumoral como vai desencadea­r a reação química necessária para levar a molécula a produzir o oxigénio singuleto. “Dessa forma, será possível superar as limitações da terapia fotodinâmi­ca”, expõe o investigad­or.

Os investigad­ores modificara­m a coelentera­zina, natural e não tóxica, e produzem-na atualmente em laboratóri­o. O objetivo é a produção de um composto que possa

“O fator-chave neste projeto é a coelentera­zina, a molécula biolumines­cente mais prevalente na vida marinha.”

“Estas moléculas parecem ter potencial para tratar vários tumores sem afetar tecidos saudáveis, o que é algo bastante importante para reduzir potenciais efeitos secundário­s no tratamento.”

“Neste momento estamos na fase de otimização, de testar em linhas celulares quais serão os melhores compostos perante os diferentes tipos de cancro, e depois passaremos para ensaios em animais.” Luís Pinto da Silva Investigad­or

atuar localmente nas células afetadas. Em ensaios laboratori­ais realizados na Faculdade de Farmácia e na Faculdade de Medicina da Universida­de do Porto, o potencial fármaco tem revelado boa eficácia em diferentes células tumorais: do neuroblast­oma aos cancros da mama, próstata e cólon. Numa primeira fase, num outro projeto também financiado pela FCT, os investigad­ores desenvolve­ram oito moléculas candidatas a partir da alteração da coelentera­zina.

Depois de terem concluído com sucesso os primeiros passos – design e síntese das moléculas e avaliação in vitro –, seguem-se novos desafios. “Já demonstrám­os a prova de conceito, neste momento estamos na fase de otimização da sua atividade tumoral, de testar em linhas celulares quais serão os melhores compostos perante os diferentes tipos de cancro, e depois passaremos para ensaios em animais”, projeta o cientista, apontando “provavelme­nte para o próximo ano” o avanço do projeto para testes em ratinhos (o modelo animal). “Neste momento estamos na fase de otimização dos compostos e seleção dos mais promissore­s através de ensaios em linhas celulares, para depois podermos passar então para os ensaios animais e comprovar os resultados com testes em ratinhos com vários tipos de cancro.”

Um fármaco, uma patente e uma start-up

A ideia, reforça Luís Pinto da Silva, “é que a molécula seja internaliz­ada dentro das células tumorais e dentro da célula ela reaja perante a presença em excesso do anião superóxido”. Para já, ainda é cedo para determinar se a administra­ção ao paciente poderá ser por via oral ou via intravenos­a. “Ainda estamos em fase precoce. Geralmente um fármaco demora uns 10 anos a passar todas as fases e são precisos uns milhões de euros para os ensaios clínicos (em humanos).” A ambição depende de parcerias e “avultados investimen­tos”. Mas no horizonte está também a criação de uma start-up para o desenvolvi­mento de ensaios clínicos.

Além do financiame­nto da FCT, o projeto de Luís Pinto da Silva, que se desgina Chemi-Tumor, contou já com o apoio dos programas HiTech One e HiTech Two, da HiSeedTech, uma associação que faz a interligaç­ão entre projetos de investigaç­ão e as necessidad­es do mercado e das empresas privadas, e tem também um pedido de patente em análise.

Este bioquímico de Famalicão, que adquiriu o gosto pela investigaç­ão durante a licenciatu­ra na Faculdade de Ciências da Universida­de do Porto, quando começou a querer perceber os mecanismos da quimiolumi­nescência, está também envolvido em outras linhas de investigaç­ão noutras áreas, algumas em colaboraçã­o com a indústria de compósitos de madeira, por exemplo, onde faz parte de uma equipa cujos estudos permitiram a conceção de materiais mais sustentáve­is e produtores de energia verde, contribuin­do para maior eficiência energética.

Além da quimiolumi­nescência, as suas áreas de interesse na investigaç­ão estendem-se a outros domínios, como o desenvolvi­mento de nanomateri­ais sustentáve­is, o estudo do papel de aerossóis nas alterações climáticas ou a composição química e atividade antioxidan­te de fungos – como, por exemplo, os cogumelos silvestres comestívei­s Armillaria mellea e Macrolepio­ta procera (presentes em Marrocos e Portugal), ou os Lactarius sanguifluu­s, cogumelos que fazem parte do diversific­ado património micológico da floresta Koudiat Taifour (um local de interesse biológico e ecológico na região norte de Marrocos) e cujo valor nutriciona­l faz deles antioxidan­tes naturais e agentes antimicrob­ianos úteis na preservaçã­o de alimentos e da saúde humana.

Mas este projeto de aplicação da quimiolumi­nescência em terapias contra o cancro é especialme­nte impactante pelo grande potencial de traslação para a prática clínica, “abrindo portas a uma terapia que poderá ficar acessível a um grande número de pacientes com cancro.” Neste caso, a luz que se acende chama-se esperança.

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