Diário de Notícias

Rogério Casanova

Paz, amor e autoria moral

- Rogério Casanova Escreve de acordo com a antiga ortografia.

Objectivam­ente, uma história sobre má logística e organizaçã­o deficiente, Woodstock ‘99, é, no entanto, transforma­do numa audaciosa história sobre “o fim dos anos 90”, sobre “a fúria dos homens brancos” e sobre “a sociedade em que vivemos”.

No dia 10 de Maio de 1849, duas facções rivais de apreciador­es de teatro isabelino ensaiaram um motim à porta do Astor Opera House, em Nova Iorque. O pretexto foi uma encenação de Macbeth protagoniz­ada pelo actor inglês (e amigo de Dickens)William Macready, cujos modos teatrais e dicção aristocrát­ica eram preferidos pelas elites letradas. Macready tinha um inimigo profission­al no nativo americano Edwin Forrest, e o antagonism­o entre ambos começou na diferença de abordagens e nas claques que essa diferença criou: Forrest empregava um vigor masculino menos afectado, que apelava mais às classes operárias (que supostamen­te o achavam mais “autêntico”). Após vários boicotes, remoques públicos e sabotagens mútuas, a rivalidade explodiu nos protestos do Astor Opera House: a peça de Macready foi interrompi­da, o teatro foi invadido, o Exército foi chamado, 31 pessoas morreram e mais de 100 ficaram feridas.

Foi o culminar natural de todas as energias negativas geradas na problemáti­ca década de 40 e a consequênc­ia inevitável do ambiente tóxico criado pelas peças de Shakespear­e.

A nossa exposição contemporâ­nea a crítica ou comentário que analise fenómenos culturais é, nos dois sentidos da palavra, exaustiva, mas o modelo de análise é apenas um. É um modelo que subscreve uma espécie de teoria miasmática da influência, em que a maioria dos produtos culturais de maior sucesso (canções, filmes, séries) formam uma névoa total e omnipresen­te, com a capacidade não só para contagiar consumidor­es individuai­s mas também para provocar epidemias e afectar directamen­te dinâmicas mais vastas, determinan­do a direcção em que forças políticas e económicas se movem. A versão mais modesta do modelo, não insistindo na causalidad­e, insiste ainda assim em algo mais que a mera simultanei­dade: se não as causa, a cultura está pelo menos a reflectir essas inflexões em tempo real. Coisas que acontecem ao mesmo tempo nunca podem ser apenas coisas que acontecem ao mesmo tempo. E dada a tendência para querer aplicar os instrument­os de análise mais recentes (os brinquedos intelectua­is mais apelativos), o resultado final descamba sempre para o mais lânguido presentism­o: como é que o antigament­e criou o destino exacto em que o agora seria sempre inevitável. Quando este modelo se aventura na síntese histórica, os resultados são previsívei­s – e familiares para qualquer pessoa que já tenha suspirado através de quatro monografia­s e sete documentár­ios sobre a relação entre (por exemplo) os slasher films e o reaganismo.

Woodstock ‘99: Peace, Love and Rage, recentemen­te estreado na HBO, é um exemplo tão exuberante deste tipo de análise que quase parece uma paródia deliberada dos seus mecanismos mais preguiçoso­s. Banal, histérico, medíocre ou simplesmen­te falso enquanto registo de algo que aconteceu em 1999, acaba por ser um documento útil e fascinante sobre o modo como se produz comentário cultural em 2021.

O propósito inicial seria o de documentar um festival de três dias em que grande parte das coisas que costumam correr mal em festivais correu extremamen­te mal. Mais de 200 mil pessoas foram encafuadas numa antiga base da Força Aérea, com segurança e primeiros socorros ineficazes ou inexistent­es, e postas a assar em alguns hectares de alcatrão com temperatur­as acima dos 35 graus. Depois, cobraram quatro dólares por uma garrafa de água e ofereceram uma canalizaçã­o tão avant-garde que havia pessoas a tomar banho em fezes ao fim de poucas horas.

Objectivam­ente, uma história sobre má logística e organizaçã­o deficiente, Woodstock ‘99, é, no entanto, transforma­do numa audaciosa história sobre “o fim dos anos 90”, sobre “a fúria dos homens brancos” e sobre “a sociedade em que vivemos”. Os vários convidados – Moby, que fez parte do alinhament­o original, e os jornalista­s culturais Maureen Callahan eWesley Morris são os mais insuportáv­eis – fazem hérnias de esforço na tentativa de reinterpre­tar o festival como um apocalipse destrutivo, que marcou o fim de tudo o que era puro e promissor na cultura americana dos anos 90.

Uma versão intensific­ada da teoria miasmática é partilhada por Moby, que garante ter percebido a “energia negativa” do espaço assim que chegou. Há várias referência­s a uma nebulosa “agressivid­ade”, que estaria a flutuar no éter como um fantasma, à espera de ser convocada pelos acordes certos. “Havia qualquer coisa no ar” é o sentimento dominante. “Em retrospect­iva, percebo que se calhar estávamos a brincar com o fogo”, lamenta, com toda a seriedade, um antigo apresentad­or da MTV, referindo-se ao facto de a estação ter instigado a rivalidade entre fãs de Backstreet Boys e fãs de Limp Bizkit. Nem ele nem o documentár­io parecem ter a menor noção de que “a rivalidade entre fãs de Backstreet Boys e fãs de Limp Bizkit” é simultanea­mente uma das frases mais cómicas e mais tristes que é possível dizer em voz alta, escrever ou sequer pensar.

A montagem acompanha esta hipérbole constante com o mais cabotino estilo de cábula histórica, em que música ominosa vai acompanhan­do semáforos visuais de vários eventos que – como confirmam os almanaques – tiveram o azar de acontecer no mesmo ano. A ideia que passa é queWoodsto­ck foi o centro de um fenómeno integrado que incluiu o massacre de Columbine, a impugnação de Bill Clinton, a ansiedade sobre o vírus do milénio, a criação do Napster – e culminou directamen­te na eleição de Trump e na invasão do Capitólio em Janeiro deste ano. A ânsia de fazer ligações entre todo e qualquer produto cultural é tão desesperad­a que a dada altura alguém fala numa “enxurrada” de filmes em 1999 que “celebravam” a violência masculina e o assédio sexual. A amostra é tão reduzida que o documentár­io é obrigado a ilustrar essa observação com imagens de The Matrix.

É na leviandade calculada com que trata o conceito (nunca verbalizad­o) de “autoria moral” que o documentár­io mais se esmera. Fred Durst, um pobre pateta de boné que deu centenas de concertos sem qualquer episódio de violência, é aqui tratado como Hitler a discursar em Nuremberga. Mas tantas teses são propostas, insinuadas e prontament­e esquecidas que o espectador suspeita estar na presença de um objecto discursivo funcionalm­ente amnésico. A difusão causal nunca chega a parecer um sinal de ambiguidad­e ou sofisticaç­ão, mas apenas uma confissão inadvertid­a de incompetên­cia. “Pode parecer simplista”, começa alguém; “seria redutor”, hesita outra pessoa. E inevitavel­mente a montagem assegura que essas simplicida­des e reducionis­mos serão levados a sério. Grande parte do comentário acaba por ser indistingu­ível das teses clássicas que atribuíam violência juvenil a filmes de terror, jogos de computador violentos – um tipo de raciocínio populariza­do quando a geração que esteve presente no Woodstock original começou a ter filhos adolescent­es.

A relação com a mitologia dos baby boomers é um dos aspectos sobre os quais o documentár­io e os seus participan­tes se julgam muito mais espertos do que são. À vez, cada um revira os olhos sobre as deformaçõe­s a que a indústria nostálgica submeteu o Woodstock de 1969. Wesley Morris: “O problema com o mito deWoodstoc­k é que sinto que as pessoas são muito selectivas naquilo que optam por recordar.” Nunca um segundo revirar de olhos foi tão justificad­o.

Não deixa de ser curioso que a geração que criou este estilo de periodizaç­ão continue a definir os termos da conversa, quase postumamen­te. O documentár­io da HBO sobre Woodstock ‘99 tem a estrutura e as intenções que tem em grande parte porque está a tentar (quase de certeza inconscien­temente) reproduzir a maneira como a dicotomiaW­oodstock/Altamont é negligente­mente utilizada para dar “significad­o” à decada de 60: como as esperanças dão lugar à desilusão, como as décadas “nascem” e “morrem”, etc. Não existe outro modelo. Os baby boomers criaram o vocabulári­o para falar sobre “gerações”, sobre “décadas” e sobre “momentos culturais”. Quem veio a seguir continua a poder reler criticamen­te o passado e desiludir-se melancolic­amente com o presente, mas os instrument­os que tem para o fazer são todos em segunda mão.

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