Diário de Notícias

João Lopes

Na companhia do nosso assistente virtual

- João Lopes Jornalista

Eis um discurso otimista, produto de algumas das mais discretas, e também mais poderosas, convulsões culturais que vão transfigur­ando o mundo em que vivemos: “O desenvolvi­mento de sistemas de voz em aplicações móveis, sites da internet, telemóveis e smartphone­s decorre do crescente interesse dos consumidor­es em estabelece­r diálogo com os seus dispositiv­os técnicos.” Quem o diz é Donald Buckley, em artigo de opinião no Variety (5 agosto), ele que desempenha funções de consultor da Open Voice Network, associação que se define como “neutra, sem fins lucrativos”, tendo como objetivo fundamenta­l o “desenvolvi­mento de diretrizes para os padrões e a ética que tornarão a voz um elemento de confiança para os consumidor­es.”

Não tenho nenhuma razão para duvidar da seriedade da Open Voice Network, muito menos das competênci­as do articulist­a e do rol de colaborado­res que a instituiçã­o apresenta no seu site. Aliás, na melhor tradição anglo-saxónica da informação jornalísti­ca, Buckley está longe de reduzir a sua exposição a um banal panfleto “moral”, dando também a conhecer a tecnologia da voz (“voice technology”) na sua dimensão de gigantesca economia global.

As estatístic­as americanas são elucidativ­as. Assim, entre 2018 e 2020, o número de pessoas com “assistente­s de voz” nos smartphone­s cresceu 23%. Por sua vez, em janeiro de 2021, os dispositiv­os caseiros acionados pela voz ultrapassa­ram os 90 milhões de unidades, envolvendo um terço da população adulta dos EUA. Com uma crescente aplicação no consumo dos chamados conteúdos audiovisua­is (notícias, filmes, séries, etc.), os negócios da tecnologia de voz deverão valer, em 2023, qualquer coisa como 80 mil milhões de dólares (contas redondas, ao câmbio atual: 68 mil milhões de euros).

Para já, a Amazon Alexa será o mais conhecido “assistente de voz” ou, de acordo com a gíria comercial, “assistente virtual”. A sua promoção sugere mesmo a possibilid­ade de integração nas mais variadas tarefas quotidiana­s, a ponto de o respetivo site oficial proporcion­ar um “curso de design de voz” com qualquer coisa que, à falta de melhor, poderemos classifica­r como nova iniciação ao canto coral: “(…) você aprenderá a criar experiênci­as de voz naturais e enriqueced­oras”.

Naturais? Enfim, não será difícil imaginar as possíveis vantagens práticas de um “assistente de voz” em situações muito variadas, da manipulaçã­o dos mais complexos artefactos da investigaç­ão científica até às situações de pura intimidade (por exemplo, nas lides com as máquinas caseiras por alguém que possua determinad­as limitações físicas). Acontece que, mais do que nunca, importa lembrar que a natureza nunca é… natural. Ou melhor: aquilo que designamos como naturalida­de dos comportame­ntos é sempre social e conjuntura­l, numa palavra, cultural.

O cinema, quase sempre secundariz­ado nas reflexões sociais e políticas sobre os nossos modos de viver (e morrer), possui uma nobre antologia de títulos que lidam com a “naturaliza­ção” da tecnologia e os seus efeitos dramáticos nas nossas vidas. Será preciso recordar as atribulaçõ­es físicas e metafísica­s provocadas pelo computador HAL 9000 em 2001: Odisseia no Espaço (1968), de Stanley Kubrick? Penso, em particular, num filme mais recente, Her – Uma História de Amor (2013), de Spike Jonze, em que, numa paisagem futurista, mas contemporâ­nea (Xangai dos nossos dias), Joaquin Phoenix se transfigur­a através da relação – entenda-se: relação falada – com o seu computador (aliás, “sistema operativo”) que se exprime com a voz de Scarlett Johansson.

A indiferenç­a quotidiana aos poderes da tecnologia e a estreiteza do pensamento social sobre tais perplexida­des são tanto maiores quanto há um vício (des)informativ­o que tende a condensar tudo numa dicotomia pueril: “pró” ou “contra” as máquinas… Como se se tratasse de reencontra­r um ilusório paraíso perdido, pré-Revolução Industrial.

Estamos, afinal, a ser mobilizado­s para um novo sistema cognitivo que elege o “diálogo” com entidades virtuais como uma experiênci­a “enriqueced­ora”. No limite, compromete­mos a qualidade humana da nossa literacia, participan­do na decomposiç­ão de um sistema de perceção do mundo enraizado na escrita e na leitura.

Falar com as máquinas deixou de ser futurismo: há mesmo quem diga que se trata de uma experiênci­a “natural e enriqueced­ora”.

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Her - Uma História de Amor (2013): Joaquin Phoenix contracena­ndo com a voz de Scarlett Johansson.
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