Podem os vírus fagos ser o nosso melhor aliado contra as superbactérias?
Nos laboratórios do Centro de Engenharia Biológica da Universidade do Minho, Luís Melo testa proteínas de uns vírus conhecidos como fagos para melhorar a eficácia dos antibióticos face à ameaça das superbactérias. Relegado para segundo plano com a descoberta da penicilina, o universo dos bacteriófagos conhece agora um renovado interesse.
Sem darmos sequer conta disso, há uma guerra em curso que todos os dias provoca milhões de vítimas, graças à ação da entidade mais letal à face da Terra. E isso acontece há muito, muito tempo, mesmo debaixo dos nossos narizes. O principal responsável por esse extermínio chama-se bacteriófago e não é, neste caso, nenhum ditador de poucos escrúpulos, mas sim um vírus que está presente em praticamente tudo o que nos rodeia. Inclusive… dentro de nós. “Há milhares de milhões de bacteriófagos a circular no nosso corpo”, sublinha Luís Melo, investigador do Centro de Engenharia Biológica (CEB) da Universidade do Minho.
Felizmente para nós, humanos, estes vírus não nos têm como alvo. Os inimigos dos bacteriófagos são, como o próprio nome deixa suspeitar, as bactérias. O que faz dos fagos – a abreviação por que são mais conhecidos – um aliado muito útil do homem. Uma espécie de guarda-costas, ou “vírus bom”, que nos protege de muitas ameaças bacterianas. “No conceito histórico de evolução, os fagos são os inimigos naturais das bactérias. São as entidades, não seres vivos, mais presentes no nosso mundo. O que o planeta mais tem são bacteriófagos, sempre associados às bactérias”, explica Luís Melo. Tal como todos os outros vírus, estes também precisam do seu hospedeiro. “Precisam sempre de uma bactéria, reproduzem-se dentro dela, matam-na e vão libertar novos vírus que se vão reproduzir noutras bactérias”, acrescenta o cientista. Dessa forma, os fagos vão ajudando a manter o número de bactérias sob controlo.
Ora, se há no nosso planeta, e em quantidades abundantes, uma entidade natural com esta capacidade para neutralizar as ameaças que as bactérias apresentam para o ser humano, porque não tirar partido disso no combate às infeções bacterianas? É precisamente essa premissa que guia o trabalho de Luís Melo e de uma vasta equipa de investigadores nos laboratórios do CEB da Universidade do Minho, onde se explora o potencial dos fagos como uma alternativa mais natural a um dos maiores problemas dos nossos tempos, que é a crescente resistência das bactérias à ação dos antibióticos existentes.
Atualmente, pelo menos 700 mil pessoas morrem a cada ano devido a doenças resistentes a medicamentos e, se nenhuma ação for tomada, “a OMS estima que em 2050 morra mais gente por ano devido a infeções resistentes a antibióticos do que, por exemplo, por cancro”, refere o investigador. A maior ameaça está identificada e dá pelo nome
de “superbactérias”. Isto é, “bactérias que são resistentes a todos os antibióticos administrados, em domicílio ou mesmo a nível hospitalar”, esclarece Luís Melo. E Portugal, sabe-se, é o quarto país da Europa que apresenta as mais altas taxas de mortalidade por infeções causadas por resistência antimicrobiana, um problema que se deve à utilização excessiva de antibióticos ao longo das últimas décadas.
Staphylococcus aureus, uma ameaça hospitalar
O universo dos bacteriófagos abre diversas vias de exploração, a principal das quais a terapia fágica que, além de poder ser uma alternativa importante quando os antibióticos não resultam, pode ser utilizada também para complementar a terapia antibiótica. Ou, como acontece com o projeto que Luís Melo lidera neste momento, financiado pela Fundação para Ciência e Tecnologia, os fagos podem também ser usados para ajudar a que as bactérias voltem a tornar-se suscetíveis à ação dos próprios antibióticos.
Neste projeto, denominado “Ativar bactérias dormentes com proteínas derivadas de fago para aumentar a eficácia antibiótica”, a equipa liderada pelo investigador portuense quer explorar as características de alguns fagos e usar algumas proteínas que eles codificam nos seus genomas para especificamente ativar células dormentes da bactéria Staphylococcus aureus. A ideia aqui não é eliminar diretamente a bactéria mas sim “ressensibilizá-la” para a atuação de antibióticos.
“Durante um ciclo de crescimento de uma bactéria, ela atinge normalmente um estado estacionário. Deixa de pensar em replicar-se e passa a reduzir a sua atividade metabólica, engrossa a parede celular, ou seja, torna-se mais difícil de ser atacada. Isso faz que muitos antibióticos não tenham capacidade de matar essas bactérias, porque muitos antibióticos com o seu alvo na célula precisam que a bactéria esteja ativa”, explica o jovem cientista, que encontrou um bacteriófago com capacidade de matar e quase erradicar uma população bacteriana que esteja no estado estacionário. “Neste caso, em vez de usarmos o fago, vamos ver que proteínas é que ele tem com a capacidade rara de fazer esta ativação das células”, diz. O que, acredita Luís Melo, terá como benefício maior “a reintrodução na prática clínica de antibióticos já existentes que deixaram de ser utilizados clinicamente por terem perdido eficácia”.
Este recurso às proteínas dos fagos traz outras vantagens associadas. É que entre os principais entraves à terapia fágica estão os obstáculos regulatórios e o pouco interesse da indústria farmacêutica em trabalhar com um “produto” que, por existir naturalmente no planeta, “não pode ser patenteável”, tal como não podemos patentear batatas, o sol ou o ar que respiramos. “Se usarmos uma proteína podemos não ter tantos entraves do ponto de vista legal para uma possível terapia porque só estamos a usar um coadjuvante para melhorar a eficácia do uso de antibióticos. E será muito mais fácil patentear uma proteína do que patentear fagos”, explica Luís Melo.
No projeto liderado por Luís Melo está em causa encontrar uma forma de tornar os antibióticos mais eficazes contra “uma das bactérias mais associadas a infeções adquiridas em meio hospitalar”, o Staphylococcus aureus, ligado também a uma panóplia de outras infeções, desde pneumonia a queimaduras, pé diabético, rinites ou sinusites… “Está na lista dos patogénicos prioritários da OMS”, destaca.
Num estudo anterior, o cientista identificou um fago que tem capacidade de infetar células dormentes de uma outra espécie de estafilococos, o Staphylococcus epidermidis. “Também é uma espécie relevante, mais associada a infeções em cateteres ou dispositivos médicos, como implantes”, nota. “O que queremos fazer agora é uma transposição dos resultados obtidos em S. epidermidis para este outro patogénico do mesmo género, mas que é muito mais relevante do ponto de vista hospitalar, que é o S. aureus. É um organismo mais agressivo, que produz toxinas e mata as células”, explica ao DN. Tal como o S. epidermidis está habitualmente presente na nossa pele, também quase toda a gente tem S. aureus, por exemplo, a colonizar as fossas nasais. “O que impede que outros organismos piores também o façam”, revela o investigador da Universidade do Minho.
A solução pode estar no esgoto
Assim, a primeira etapa do projeto consiste em identificar fagos que tenham capacidade de matar células que estão num estado dormente. “Já temos cerca de 12 a 15 fagos contra S. aureus e estamos a aumentar a coleção para termos uma diversidade maior de fagos e ver quais deles é que são ativos contra este tipo de células dormentes”, diz. Depois, há que “sequenciar o genoma desses fagos”, ou seja, descobrir os genes que os constituem e que são responsáveis por essa ativação, para, numa terceira fase, “selecionar cinco ou seis desses genes sobre-expressos dos quais ainda não saibamos a função e avançar para identificação das proteínas coma capacidade para ativar as células dormentes”. A partir do momento em que descobrirem que proteínas têm essa função, avançam os estudos in vitro e in vivo, em combinação com antibióticos, que é a parte final do projeto desenhado para três anos. O objetivo final será então “testar se elas conseguem melhorar a eficácia de antibióticos que anteriormente não estariam a funcionar contra essas células que estavam adormecidas, isto é, toleravam a presença do antibiótico”.
Fase crucial de toda a terapia fágica é, naturalmente, a descoberta dos próprios fagos, durante muitos anos associada à ideia de cientistas excêntricos a “pescar” nos esgotos. “Tal como noutros casos em que existe uma presa e um predador, onde quer que existam bactérias vai haver um vírus para aquela bactéria. Faz parte do processo dos balanços populacionais”, explica Luís Melo, confirmando que os esgotos são um campo fértil para essa procura. “A maior parte dos fagos que isolamos provêm de efluentes de ETAR. Porquê? Porque vai tudo (ou quase) parar à ETAR. Por exemplo, para isolar um fago para a bactéria Escherichia coli, que está presente no nosso intestino, eu diria que se formos buscar uma amostra de águas residuais pré-tratamento vamos conseguir seguramente encontrar um. Nós vamos buscar uma amostra a esse efluente, acrescentamos-lhe a bactéria alvo, pomos meio de cultura e deixamos a crescer. E o que vai acontecer é que, perante a replicação da bactéria, se na nossa amostra existir um fago ele também se vai replicar nesse meio”, detalha. Mas, claro, os esgotos estão longe de ser a única fonte de bacteriófagos disponível. Mais uma vez, a dica é “seguir a bactéria”. Luís dá outro exemplo: “Isolámos aqui em laboratório um fago para a bactéria Campylobacter, que coloniza os intestinos de galinhas e causa infeções em humanos, e os fagos foram isolados através dos intestinos das próprias galinhas.”
Por norma, cada fago atua numa determinada espécie de bactérias. “Há alguns que têm a capacidade para atacar várias espécies de estafilococos, por exemplo, mas são raros”, diz o investigador. “A maior parte ataca uma espécie, mas mesmo esses não matam 100% das estirpes dessa espécie”, precisa. Ou seja, não há um superbacteriófago. Daí a necessidade de uma terapia personalizada. O segredo “reside mesmo na especificidade do fago e da bactéria”.
Uma descoberta com mais de cem anos
Apesar deste ressuscitado interesse motivado pela resistência aos antibióticos, a utilização dos fagos para fins terapêuticos não é propriamente uma novidade para a ciência. A sua descoberta remonta há cerca de um século, quando a
“No conceito histórico de evolução, os fagos são os inimigos naturais das bactérias. São as entidades, não seres vivos, mais presentes no nosso mundo.” “A Organização Mundial da Saúde estima que em 2050 morra mais gente por ano devido a infeções resistentes a antibióticos do que, por exemplo, por cancro.” “[Este projeto] pode levar à reintrodução na prática clínica de antibióticos já existentes que deixaram de ser utilizados por terem perdido eficácia.” Luís Melo Investigador
terapia fágica foi usada pela primeira vez, em 1919, por Felix d’Herelle, um microbiologista franco-canadiano que recorreu a bacteriófagos para curar um menino que sofria de disenteria severa. E na I Guerra Mundial “houve mesmo países que utilizaram os fagos para tratar soldados feridos na guerra”, conta Luís Melo. No entanto, a descoberta da penicilina em 1928 desencadeou a era dos antibióticos, o que, aliado “a algumas más utilizações dos bacteriófagos”, levou a terapia fágica a ser quase abandonada no mundo ocidental.
De resto, não fosse a colaboração entre d’Herelle e um então jovem cientista georgiano, que viajou para França em 1923, e a função terapêutica dos fagos poderia ter mesmo caído no esquecimento. Graças ao interesse de George Eliava, a terapia fágica teve desenvolvimento e uso contínuo na Europa de Leste, sobretudo nos países do antigo império soviético, e o Instituto Eliava, em Tbilissi (Geórgia), é ainda hoje referência bastante importante nesta área e ao qual recorrem instituições e pacientes de vários cantos do mundo. Inclusive de Portugal. “Até há pouco tempo iam pessoas daqui lá para serem tratadas”, refere Luís Melo.
Há vantagens e desvantagens no uso destes bacteriófagos em relação ao uso de antibióticos. A maior desvantagem, aponta o investigador, é que “têm um menor espectro de ação” do que os antibióticos. Ou seja, enquanto os antibióticos são capazes de matar várias espécies bacterianas, os fagos têm um alvo específico. “Um bacteriófago que mate uma bactéria não tem, à partida, a capacidade de matar outra bactéria de outra espécie. E quando nós não conhecemos qual é o agente que está a causar uma infeção numa pessoa, teoricamente não é recomendado o uso de bacteriófagos. Existe a necessidade de identificação prévia do organismo que está a causar a infeção, para se poder administrar o bacteriófago adequado”, explica. Por outro lado, quando se consegue identificar o agente infeccioso, a terapia fágica é muito mais precisa e não afeta, por exemplo, estirpes benignas de bactérias.
Investigação no Minho já ajudou doente em França
Ora, e não podem as bactérias também tornar-se resistentes aos fagos, tal como está a acontecer face aos antibióticos? “Podem”, admite Luís, contrapondo com soluções possíveis, como “a manipulação genética dos fagos”, que além de aumentar o potencial terapêutico também abre as portas do interesse da indústria farmacêutica. “A manipulação genética permite melhorar aquilo que existe naturalmente. Por exemplo, cerca de 40% a 60% das proteínas de alguns fagos têm funções indeterminadas. Ou seja, algumas delas podem ser más, não sabemos. Por isso, aumentamos a segurança se estivermos a aplicar um fago que tenha apenas os genes cuja função conhecemos e eliminarmos aqueles de que nada sabemos e que podem ter efeitos indesejados”, exemplifica o investigador.
Outro aspeto relevante é igualmente “o tipo de terapia fágica” que se vai estabelecer. “Isto é muito importante”, realça, diferenciando entre a terapia personalizada, “em que determinado fago é escolhido para aquele paciente que tem aquela infeção específica”, e, “tal como é possível comprar nas farmácias na Rússia, por exemplo, um produto standardizado que consiste num cocktail de fagos que serve para toda a gente”.
Luís Melo dá o exemplo de um paciente norte-americano, Tom Patterson, “cujo caso contribuiu recentemente para o crescente interesse em relação à terapia fágica”. Patterson, um professor de Psiquiatria, estava no Egito de férias, em 2015, quando, de um dia para o outro, não conseguia parar de suar e vomitar. Transportado de avião de uma clínica no Cairo para outra em Frankfurt e, finalmente, volta a San Diego (EUA), os médicos confirmaram uma infeção abdominal grave, provocada por uma bactéria chamada Acinetobacter baumannii, conhecida como a “Iraqibacter”, por ter surgido em instalações médicas militares durante a Guerra do Iraque.
Foi já como terapia de compaixão que as autoridades de saúde norte-americanas deixaram Patterson recorrer à terapia fágica, através da Marinha norte-americana, que tem explorado o potencial da terapia fágica em projetos científicos.
“O que aconteceu com aquele paciente norte-americano é que lhe foi administrado um fago, ele melhorou, mas passados alguns dias piorou ligeiramente, viu-se que a bactéria estava resistente àquele fago e administrou-se outro fago. E ele curou-se assim. Com tratamento sequencial com fagos diferentes, personalizados para a bactéria que o estava a afetar”, conta o investigador.
Luís Melo também já teve uma experiência semelhante, em 2019, quando um fago que isolou nos laboratórios do Centro de Engenharia Biológica da Universidade do Minho, foi enviado para tratamento de um paciente em França. “Houve um pedido do hospital de Lyon para um fago contra S. epidermidis (presente na nossa epiderme), e nós tínhamos um fago capaz de combater aquela bactéria. Mandaram-nos o agente infeccioso isolado, nós testámos aqui o nosso fago, vimos que ele tinha capacidade de combater aquela bactéria, produzimos o fago e enviámos para França.”
França é um dos países da União Europeia onde a terapia fágica já é usada, mas apenas em situações de último recurso, em tratamento de compaixão quando mais nada parece funcionar. Luís espera que os entraves regulatórios deixem de impedir que a terapia fágica seja um recurso terapêutico útil para salvar vidas muitos doentes. Também em Portugal, onde o grupo de investigação a que pertence, na Universidade do Minho, sob coordenação de Joana Azeredo, é a grande referência da investigação neste campo.
“Tal como noutros casos em que existe uma presa e um predador, onde quer que existam bactérias vai haver um vírus [fago] para aquela bactéria.” “A Staphylococcus aureus é uma das bactérias mais associadas a infeções adquiridas em meio hospitalar. Está na lista dos patogénicos prioritários da OMS.” Luís Melo Investigador