Diário de Notícias

Talibãs ameaçam a capital Cabul e direitos das mulheres afegãs

Fantasmas do que aconteceu em 1975, no fim da guerra do Vietname, surgem diante do avanço dos talibãs. Vários países, seguindo o exemplo de Washington, vão reduzir funcionári­os ou até fechar embaixadas. McConnell diz que se EUA deixarem cair o governo afe

- TEXTO SUSANA SALVADOR

N “ão haverá circunstân­cia alguma em que vão ver pessoas a serem levadas do telhado de uma embaixada dos EUA no Afeganistã­o.” As palavras são do presidente norte-americano Joe Biden, em junho, quando rejeitou qualquer semelhança entre a retirada norte-americana do Afeganistã­o e a queda de Saigão em 1975, no final da guerra do Vietname. Mas numa altura em que militares estão a ser enviados de novo para Cabul para ajudar a retirar o pessoal diplomátic­o – não para ajudar o governo afegão a travar os avanços dos talibãs, que na última semana conquistar­am mais de metade das capitais provinciai­s –, a comparação entre os dois episódios volta a fazer-se ouvir.

A queda de Saigão e a derrota dos EUA no Vietname ficou imortaliza­da na imagem do fotojornal­ista neerlandês Hubert Van Es, em que se vê uma fila de pessoas a subir para o telhado da embaixada onde estava um helicópter­o – o episódio a que Biden se referia. Ao longo de dois dias, 29 e 30 de abril de 1975, mais de 7 mil pessoas deixaram dessa forma a então capital da República doVietname (Vietname do Sul), entretanto rebatizada de Cidade de Ho Chi Minh em homenagem ao líder comunista.

Na quinta-feira, os EUA enviaram 3 mil militares para o Afeganistã­o para garantir a segurança do aeroporto de Cabul durante a retirada do pessoal diplomátic­o e dos colaborado­res afegãos. Outros mil militares vão para o Qatar de forma a fornecer apoio técnico e logístico e mais 3500 a 4 mil ficam no Koweit, podendo ser destacados se for necessário. Outros países vão reduzir também os funcionári­os ao mínimo (Alemanha, Finlândia, Reino Unido ou Países Baixos) ou até fechar temporaria­mente as embaixadas (Noruega e Dinamarca).

A retirada está a ser criticada pela oposição norte-americana. “As últimas notícias de uma nova redução do pessoal na nossa embaixada e o destacamen­to apressado de forças militares parecem preparativ­os para a queda de Cabul. As decisões do presidente Biden levam-nos para uma sequela ainda pior do que a humilhante queda de Saigão em 1975”, disse num comunicado o líder da minoria no Senado, Mitch McConnell. O republican­o defende um maior apoio dos EUA às forças afegãs, incluindo apoio aéreo para lá da data oficial de retirada militar – 31 de agosto. “Sem isso, a Al-Qaeda e os talibãs podem celebrar o 20.º aniversári­o dos ataques do 11 de Setembro a queimar a nossa embaixada em Cabul”, acrescento­u McConnell.

Foram os atentados de 2001, em que morreram quase 3 mil pessoas, que levaram os norte-americanos a invadir o Afeganistã­o para derrubar o regime talibã, no poder desde 1996, tendo imposto uma interpreta­ção rígida do islão, limitado os direitos das mulheres e era acusado de dar apoio à Al-Qaeda. Em duas décadas de guerra, os EUA gastaram quase dois biliões de dólares e sofreram quase 2500 baixas.

O receio dos analistas é que, tal como a saída dos EUA do Iraque levou à ascensão do Estado Islâmico, a retirada do Afeganistã­o possa dar um novo fôlego à Al-Qaeda. “O que temos de fazer agora é não voltar as costas ao Afeganistã­o mas continuar, como membros do Conselho de Segurança das Nações Unidas, a trabalhar com os nossos parceiros e garantir que o governo de Cabul não permite que o país seja, novamente, terreno fértil para o terrorismo”, disse o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, após uma reunião de emergência. Os britânicos também enviaram tropas para retirar os seus cidadãos e funcionári­os locais.

Ontem, os talibãs conquistar­am mais seis capitais provinciai­s, controland­o já 18 das 34 em que se divide o Afeganistã­o e cerca de dois terços do território. No início da semana, a previsão de Washington

era que Cabul podia cair no prazo de três meses após o fim da retirada militar. Na quinta-feira, e diante dos avanços feitos, já se falava que podia cair em setembro.

As semelhança­s com Saigão

A guerra do Vietname, entre o norte comunista (apoiado pela então URSS e a China) e o sul apoiado pelos EUA, durou duas décadas, com os norte-americanos a entrar oficialmen­te a partir de 1965. Em janeiro de 1973, os EUA e a República Democrátic­a doVietname (Vietname do Norte) negociaram um cessar-fogo e o início da retirada das tropas norte-americanas. Também os EUA, sob a presidênci­a de Donald Trump, negociaram com os talibãs a retirada, mas o ex-presidente disse que os seus planos incluíam garantias de segurança.

Apesar do acordado na altura com Washington, em 1975, os vietcongue­s (nome pelo qual era conhecida a organizaçã­o revolucion­ária comunista do Vietname do Sul) tinham lançado uma nova ofensiva contra Saigão. No poder estava um governo civil apoiado pelos EUA, depois de ter sido aprovada uma nova Constituiç­ão e de terem sido realizadas eleições em 1967. Também no Afeganistã­o foi aprovada uma nova Constituiç­ão (em 2004) e tem havido eleições, com governos apoiados pelos EUA.

Semanas antes da retirada dos últimos civis de Saigão, na Operação Vento Constante, a mesma tática tinha sido usada para retirar menos de 300 pessoas de Phnom Penh, a capital do Camboja, dias antes de os Khmer Vermelhos chegarem ao poder. A uma escala muito maior, a operação em Saigão foi a mais famosa de retirada de não combatente­s (NOE na sigla em inglês). Uma expressão queWashing­ton não está a querer usar agora.

“Não estamos a eliminar completame­nte a nossa presença diplomátic­a no terreno”, disse o porta-voz do Pentágono, John Kirby, evitando falar de uma evacuação. “Ninguém está a abandonar o Afeganistã­o, não nos estamos a afastar. Estamos a fazer a coisa certa na hora certa para proteger as nossas pessoas”, afirmou.

A retirada dos soviéticos

A saída dos norte-americanos está também a ser comparada à retirada dos soviéticos do Afeganistã­o, que ficou concluída a 15 de fevereiro de 1989. Estes tinham invadido o país em dezembro de 1979, para apoiar o governo comunista do Partido Democrátic­o do Povo do Afeganistã­o (PDPA), acabando envolvidos numa guerra de guerrilha contra os mujaedines. Mas, em 1986, o líder soviético Mikhail Gorbachev deu ordens para retirar no prazo de dois anos, apelidando o Afeganistã­o de “ferida sangrenta”.

A saída levou os mujaedines a lançar também uma ofensiva, mas ao contrário dos talibãs que estão a fazer avanços rápidos, foram travados pelo governo afegão, que continuava a ter o apoio de Moscovo, e pelas forças militares que os soviéticos tinham treinado. Os rebeldes acabariam contudo por conseguir derrubar o governo do PDPA três anos após a retirada, em 1992, quando o primeiro presidente da Rússia, Boris Ieltsin, cortou o apoio financeiro.

 ??  ?? A icónica imagem da retirada de Saigão em 1975, do fotojornal­ista Hubert Van Es, que se tornou um símbolo da derrota dos EUA.
A icónica imagem da retirada de Saigão em 1975, do fotojornal­ista Hubert Van Es, que se tornou um símbolo da derrota dos EUA.
 ??  ??
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal