António Araújo
Cereais, masturbação e outros desatinos
mesmo muita fruta junta. Qualquer coisa como 128 mil milhões. Todos os anos. Todas as manhãs. Em todo o mundo.
Eis o número de tigelas de cereais Kellogg’s que, anualmente, centenas de milhões de seres humanos ingerem ao acordar, uma coisa de estarrecer os mortais comuns, que o somos todos. A escala obriga-nos a saber a origem do fenómeno e a ter consciência, caso não saibamos, de que tudo começou por uma vassoura, ou várias. Antes disso, ou em paralelo com isso, a história mete também o Diabo, a Segunda Vinda de Cristo à Terra, dezenas de crianças órfãs e manteiga de amendoim. Um enredo embrulhado, portanto, com laivos a atirar para o gótico, que tentaremos deslindar começando por chamar ao palco John Preston Kellogg, viúvo e recasado, pai de 17 filhos, fabricante de vassouras no estado do Michigan e fervorosíssimo discípulo da Igreja Adventista do Sétimo Dia. O Sr. Kellogg acreditava que muito em breve, provavelmente ainda no seu tempo de vida, Nosso Senhor Jesus Cristo iria regressar a esta Terra, que é Sua, para julgar ad aeternum os vivos e os mortos. Sendo assim, não valeria a pena as crianças estarem a perder tempo e energia com aprendizagens, dada a vinda iminente do Salvador, que, como é óbvio, pouco se interessa em saber, para o seu Juízo Final, se as almas dos pecadores são analfabetas ou muito lidas, que aproveitamento escolar tiveram, se fizeram um curso aplicado e certinho ou se preferiram aldrabar Engenharia a um domingo, Dia do Senhor. Foi por isso (e talvez por sovinice, dizemos nós) que aquele homem do Michigan, vassoureiro e devoto, não mandou os filhos à escola, decisão mais do que sábia em face do sucesso alcançado posteriormente, hoje patente em 128 mil milhões de tigelas de cereais/ano.
John Harvey Kellogg, um dos 17 filhos de John Preston Kellogg, nasceu e cresceu, pois, num ambiente viçoso, da mais completa ignorância, mas fez-se autodidacta: lia tudo quanto apanhasse à mão enquanto trabalhava como vendedor das vassouras paternas. Aos 12 anos, após uma breve experiência como moço de recados, conheceu o Diabo e converteu-se à sua seita, pecaminosa e letrada. Devil’s printer, traduzível canhestramente por “demónio do impressor”, é o aprendiz das tipografias, o miúdo que ajuda o mestre em todo o serviço infernal, que mistura as tintas e que vai buscar os tipos com as letras e demais sinais gráficos. O ofício dos impressores foi desde sempre chamado de “divina arte negra” ou tão-só “arte negra” e pensa-se que o nome demoníaco terá vindo do facto de os aprendizes andarem todo o santo dia com as mãozinhas mascarradas de preto retinto. Outra teoria assevera que há um diabinho padroeiro dos tipógrafos, profissão que sempre teve uma aura especial, quase mística, pelo menos até ao advento das novas tecnologias, mais asseadas e assépticas (como não lembrar o texto “É favor não sujar o offset!”, de Alexandre O’Neill?). O tipógrafo era alguém que lidava com as artes da escrita, que conhecia os meandros da ortografia correcta, os signos cabalísticos da pontuação acertada e, mais ainda, que colocava as frases às avessas, de cabeça para baixo ou da direita para a esquerda, para que estas saíssem miraculosamente legíveis da prensa mágica. Aos tipógrafos esteve sempre associada a ideia de “operários cultos”, o que lhes deu um espírito de classe e um sentimento sindical muito precoces e arreigados, como entre nós mostraram os belos estudos de José Barreto e de Susana Durão. Aos tipógrafos e aos revisores competia ainda esconjurar o danado do Titivillus, que é um demónio que trabalha a soldo de Lúcifer com o diabólico encargo de colocar gralhas e erros nos textos dos humildes escribas. Ao que parece, Titivillus foi concebido na Idade Média: imagine-se um copista que passa meses, anos a fio, a transcrever um parágrafo apenas, em caligrafia gótica e linda, com floreados iluminados, e, às tantas, numa distracção de segundos, comete um lapsus calami e borra a pintura toda. A culpa, é óbvio, só pode ser do Demo vil, in casu do seu servo Titivillus. E o mais curioso de tudo é que, além de John Kellogg, Mark Twain, Benjamin Franklin, Thomas Jefferson ou Walt Whitman, um dos mais conhecidos “demónios do impressor” foi o escritor Ambrose Bierce, que ao Diabo dedicaria um dicionário lendário, após o que desapareceria misteriosamente nos confins de Chihuahua, no México, para não mais ser visto.
Como “demónio do impressor”, Kellogg, moço vivíssimo, quis tornar-se médico, após afugentar as gralhas e rever as provas de alguns artigos sobre vegetarianismo para revistas clínicas. Ou seja, foi o Diabo, não Jesus Cristo, quem o salvou: se tivesse insistido em aguardar pelo Messias, teria acabado os dias como um vendedor de vassouras analfabeto. Assim, com o demónio ao lado, frequentou um curso rápido de Medicina (seis meses, por correspondência!), mas depois prosseguiu e formou-se à séria, no Michigan e em Nova Iorque. Já então convertido ao vegetarianismo, casou-se em 1897, mas ele e a esposa eram tão castos que viviam em quartos separados e nunca tiveram filhos biológicos, optando pela adopção à larga: 42 crianças órfãs, uma casa cheia de vida.
John Harvey Kellogg viveu numa época complexa, em que o triunfo do darwinismo obrigava a conciliar ciência e religião de uma forma imaginativa, por vezes caricata. Para ele, o facto de o coração bater mesmo quando estamos a dormir (isto é, sem lhe darmos ordens) e o facto de brotarem ramos e raízes do interior de uma árvore eram a prova provada de que dentro deles existe uma centelha divina, transcendente, e este descarado namoro com o panteísmo criar-lhe-ia problemas com as autoridades da Igreja Adventista, que acabou por abandonar. A questão também meteu dinheiros, como sempre, mas o facto é que, graças a eles, Kellogg conseguiu construir um grandioso sanatório em Battle Creek, onde ele e a mulher começaram a levar a cabo afanosas experiências culinárias para alcançarem uma dieta que aplacasse o estímulo sexual, pecaminoso e sujíssimo. Além do vegetarianismo, da abstinência de álcool e de tabaco, Kellogg acreditava que a salvação da humanidade estava nas nozes, e que só estas conseguiriam ser produzidas à escala necessária parta alimentar todo o planeta. Era também um acérrimo defensor da tese de que a maioria das doenças humanas são causadas por problemas na flora intestinal. Advogou, por isso, o uso e abuso de iogurtes, mas também, e principalmente, de clisteres, que ser
viriam para limpar as entranhas e para ministrar iogurtes por via, digamos, rectal, com vista a obter o que chamava “um intestino completamente limpo”. O método ganhou fama e, entre os seus pacientes célebres, que saíram de Battle Creek com os interiores mais asseados, contam-se o presidente Howard Taft, o explorador polar Roald Amundsen, os actores Johnny Weissmuller (“Tarzan”) e Sarah Bernhardt, a aviadora Amelia Earhart, Thomas Edison, Henry Ford ou o escritor George Bernard Shaw.
Kellogg era também um furioso adepto da fototerapia e dos solários artificiais, mas ficou sobretudo conhecido por ser um inimigo feroz da masturbação, a praga que, em seu entender, mais corrompia a juventude e debilitava a humanidade. Para a exterminar, defendia a circuncisão dos rapazes e a aplicação de ácido carbólico no clítoris das meninas e, em casos extremos, a mutilação do pénis ou da vagina – sem anestesia. Dando o exemplo, circuncidou-se a si próprio aos 37 anos e todas as fontes asseveram que nunca consumou o matrimónio. Por muito bizarro que tudo isto possa parecer, Kellogg nem sequer foi particularmente original, limitando-se a absorver os ensinamentos da temível Ellen G. White, cofundadora da Igreja Adventista, que proclamava ter recebido mais de duas mil visões e sonhos com Deus, e do ministro presbiteriano Sylvester Graham, o pai do vegetarianismo na América e do movimento “grahamista” e inventor das bolachas Graham, o alimento dos cidadãos castos (no ano passado, 259 milhões de americanos consumiram bolachas Graham ou congéneres, não havendo estatísticas sobre os efeitos que isso terá tido na redução do onanismo yankee).
A cruzada antionanista tinha partidários religiosos, como Adam Clarke, Ellen White ou Sylvester Graham, mas também cientistas e médicos que muito influenciaram Kellogg, como William Acton, o ginecologista inglês autor da tese de que a masturbação causava a cegueira, para não falar de Anthony Comstock, inspector postal dos EUA e secretário da Sociedade Nova-Iorquina para a Prevenção do Vício, um opositor às sufragistas femininas que se gabava de ter destruído, ao longo de anos, mais de 15 toneladas de livros licenciosos e quatro milhões de imagens porcas.
Quanto à descoberta dos cereais – ou, melhor dito, dos flocos de milho –, há versões desencontradas entre o médico e o seu irmão, com este a acusar a mulher de John Kellogg de não lhe dar os créditos (e os réditos) devidos. Em todo o caso, é consensual que houve milagre e intercessão divina: John acordou uma vez a meio da noite, após ter sonhado com o Altíssimo, e dirigiu-se às cozinhas do sanatório, onde decidiu fazer massa de milho moído. Na manhã seguinte (e estamos a abreviar muito, consultem a Wikipédia), reparou que a massa estava estaladiça, crunchie, e assim nasceu a descoberta, patenteada em 1895 e vendida aos milhares, o que valeu a John Kellogg ser incluído em 2006 no Inventors Hall of Fame. John resistiu à sugestão do irmão para adicionar açúcar aos cereais, considerando que isso poderia potenciar efeitos libidinosos, e Will Kellogg acabou por registar a patente dos flocos sacarinos e por fundar as fábricas que hoje produzem 128 mil milhões de tigelas de cereais por ano, ou mais.
O incansável John, de seu lado, inventaria ainda a manteiga de amendoim e várias inovações médicas, com sucesso variável, tais como: os “banhos de calor radiantes”, com luzes eléctricas, que hoje encontramos nos solários; os aparelhos de massagem eléctrica para casos de anemia e fadiga nervosa; um irrigador especial para o cólon, em versão melhorada, para administração de água e de iogurtes (no sanatório de Battle Creek, vários pacientes eram tratados em simultâneo por este método, em sessões conjuntas e em salas preparadas para o efeito).
À batalha contra o onanismo, John Kellogg aliou um ódio visceral ao tabaco (foi presidente da Sociedade Anticigarro do Michigan), à carne e ao álcool, mas também ao chá e ao café, estando piamente convicto de que a cafeína era uma substância venenosa, igual à cicuta. Era também, claro está, um ardoroso defensor do eugenismo e da segregação racial, sendo um dos instituidores da inenarrável Race Betterment Foundation. Além de cereais insossos, da circuncisão e da castração, sustentava que as crianças mais inclinadas ao vício solitário deveriam ter as mãos enfaixadas ou amarradas e inventou uma gaiola electrificada para cobrir as partes genitais, que dava choques em quem ousasse tocar-se ou tocar-lhes. Para as meninas, uma terapia à base de banhos de assento gelados, clisteres frios, uma dieta de reposição, aplicação nos órgãos sexuais de produtos irritantes ao toque e, em casos extremos, ablação do clítoris.
John Harvey Kellogg teve uma vida longa de 91 anos, minada nos últimos tempos pela Grande Depressão e pelas lutas judiciais com o irmão, com quem nunca se reconciliou. As suas peculiares teorias biológicas levaram-no a recusar ser vacinado contra a varíola, tal qual aconteceu há pouco, relativamente à covid, com o líder de um partido político português. O grave de André Ventura não é ter-se abstido da vacina, é ter ocultado esse facto, durante meses, de todos os portugueses, incluindo os que o apoiam – e que deveriam perceber, de uma vez por todas, que andam a ser enganados por um charlatão de feira e onanista do espírito.