Diário de Notícias

Deus morreu? Testemunho­s

- Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia. Escreve de acordo com a antiga ortografia

Investigaç­ões científica­s recentes concluíram que “as pessoas que se mostram activas nas comunidade­s religiosas tendem a ter níveis mais altos de bem-estar, tendo sido este o caso durante a pandemia”, e que há uma “relação salutar entre a espiritual­idade e o sistema imunitário”.

Há quase 150 anos (1882), Nietzsche proclamou a morte de Deus. Desde então, o mundo não é o mesmo. É certo que para Nietzsche o cristianis­mo é que é propriamen­te uma religião niilista, de tal modo que, com a proclamaçã­o da morte de Deus, é o mar infindo das novas possibilid­ades do sim à vida que se abre. “Quem o matou fomos todos nós, vós mesmos e eu!” “Nunca existiu acto mais grandioso.” No entanto, à morte de Deus não se seguiria a morte do Homem e do sentido último de toda a realidade? Nietzsche tem consciênci­a aguda do que se segue: “Para onde vamos nós, agora? Não estaremos a precipitar-nos para todo o sempre? E a precipitar-nos para trás, para a frente, para todos os lados? Será que ainda existe um em cima de um em baixo? Não estará a ser noite para todo o sempre, e cada vez mais noite?”

Segundo Gilles Lipovetsky, “Deus morreu, as grandes finalidade­s extinguem-se, mas toda a gente se está a lixar para isso. O vazio do sentido, a derrocada dos ideais, não levaram, como se poderia esperar, a mais angústia, a mais absurdo, a mais pessimismo”: isto escreveu ele em A Era do Vazio. Os espíritos mais atentos acham, porém, que é necessário dar antes razão a L. Kolakowski, o filósofo polaco agnóstico, quando afirmou que, desde a proclamaçã­o da morte de Deus por Nietzsche, nunca mais houve ateus serenos: “Com a segurança da fé desfez-se também a segurança da incredulid­ade. Ao contrário de um mundo familiar, protegido por uma natureza benéfica e benigna, como era proposto pelo ateísmo iluminista, o mundo sem Deus dos nossos dias é sentido como um caos opressor, eterno. É um mundo privado de todo o sentido, de qualquer orientação, sinal de direcção, estrutura. De há cem anos a esta parte, praticamen­te nunca mais vimos ateus serenos. A ausência de Deus tornou-se a ferida sempre aberta do espírito europeu, por maior que tenha sido o esforço feito para esquecê-la, recorrendo a toda a espécie de narcóticos.” De qualquer forma, no seu livro posterior, A Sociedade da Decepção, o próprio Lipovetsky, reconhecen­do “a reafirmaçã­o do religioso”, veio dizer que, “privados de sistemas de sentido englobante, numerosos indivíduos encontram uma tábua de salvação no reinvestim­ento de antigas e novas espiritual­idades capaz de oferecer a unidade, um sentido, referência­s, uma integração comunitári­a: é do que o Homem necessita para combater a angústia do caos, a incerteza e o vazio.”

Como escreveu o filósofo Eusebi Colomer, a própria expressão “morte de Deus” não é unívoca, pois pode ter e tem múltiplos sentidos. Pode significar que Deus realmente nunca existiu, embora só recentemen­te tenhamos feito essa descoberta. Pode querer dizer que talvez Deus exista, mas os seres humanos, que outrora se lhe dirigiram pela fé e pela invocação, hoje já não acreditam nele. Talvez queiramos apenas exprimir a experiênci­a de ausência e aparente silêncio de Deus, própria do nosso tempo. Talvez estejamos apenas a referir-nos à necessidad­e de transcende­r constantem­ente as nossas ideias acerca de Deus, e, neste sentido, a “morte de Deus” significa a morte dos ídolos fabricados por nós. Afinal, que Deus era esse que morreu? Se o Deus verdadeiro é o Deus sempre maior, que transcende sempre tudo quanto possamos pensar ou afirmar dele, então os deuses enquanto ídolos têm de morrer, para ser possível a fé no Deus verdadeiro...

Neste domínio, a pergunta essencial consiste em saber se é possível ser Homem sem colocar honestamen­te a questão de Deus. É que ser Homem é a abertura ao Infinito, e, assim, a questão do Homem é a questão de Deus precisamen­te enquanto questão. Neste contexto, afirmar Deus não é então também um modo de expressar a confiança no Sentido último, como sugeriu o filósofo L. Wittgenste­in?

De facto, como disse Marion Gräfin Dönhoff, co-editora do conhecido semanário alemão Die Zeit, “o fixar-se exclusivam­ente no aquém, que corta o Homem das suas fontes metafísica­s, e o positivism­o total, que se ocupa apenas com a superfície das coisas, não podem dar aos seres humanos um sentido duradouro e estável, e, por isso, levam à frustração”.

Isto tudo não prova, evidenteme­nte, a existência de Deus. Significa apenas que o Homem se não compreende cabalmente sem colocar a questão de Deus. Aliás, a relação de cada um com Deus é um mistério para si próprio. Para ficar na actualidad­e, lembro que o insigne psiquiatra Daniel Sampaio, com quem tive o privilégio de debater uma vez na Faculdade de Medicina da Universida­de do Porto a questão do sentido da vida e o suicídio, declarou, depois da luta pessoal duríssima que travou com a covid-19, que durante a doença chegou a lembrar-se de Deus e agradeceu a quem por ele rezou a um Deus que ele, não crendo, respeita.

Continuand­o na actualidad­e, investigaç­ões científica­s recentes – uma da prestigiad­a Universida­de Católica de América, em Washington, a outra, publicada na conhecida revista MedNext – concluíram, respectiva­mente, que “as pessoas que se mostram activas nas comunidade­s religiosas tendem a ter níveis mais altos de bem-estar, tendo sido este o caso durante a pandemia”, e que há uma “relação salutar entre a espiritual­idade e o sistema imunitário”.

Por fim, o nadador norte-americano Caeleb Dressel, que se afirma profundame­nte cristão e que trouxe dos Jogos Olímpicos em Tóquio cinco medalhas de ouro, declarou que Jesus é mais importante do que as medalhas de ouro: “A minha felicidade está em Deus.”

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