Rogério Casanova
Este homem não é do noir
Como muitos produtos americanos de sucesso, o film noir foi inventado por emigrantes. Antes de os refugiados da II Guerra Mundial se instalarem em Los Angeles, os californianos não faziam sequer a menor ideia do que havia uma diferença entre a luz e a escuridão. Os exilados alemães, com as suas sombras, neblinas, aguaceiros e outros truques expressionistas estrangeiros, inventaram uma maneira de tornar as palmeiras mais interessantes. Devidamente equipados com gabardinas e cigarros, os protagonistas fictícios podiam agora ajudar os espectadores a perceber pela primeira vez um conjunto de fenómenos importantíssimos: que o uísque geralmente não embebeda, que as filhas de milionários são geralmente ninfomaníacas, que as coisas são geralmente mais sórdidas do que parecem à superfície.
O noir foi exportado depois de ser importado, e abriu sucursais baptizadas de acordo com a respectiva geografia, como vinhos ou queijos: o noir sulista, o noir escandinavo, o noir francês. Há cerca de 20 anos, praticamente sozinho, o escritor inglês David Peace fundou uma sub-sub-especialidade chamada Yorkshire noir. Peace tem uma prosa tão invulgar e idiossincrática que condena toda a sua obra à dúbia categoria de “prazer adquirido”, no sentido em que é perfeitamente possível sentir um interesse abstracto nos seus temas e ambições, e ao mesmo tempo não conseguir aguentar a escrita. Neste aspecto, é como uma réplica regional do americano James Ellroy, com quem partilha várias características: o mesmo tom imune a qualquer coisa que se assemelhe remotamente a um sentido de humor, a mesma predilecção para descrever instituições malignas e corpos mutilados, os mesmos protagonistas que são hipertrofias de masculinidade perturbada, os mesmos narradores que comunicam num staccato fulminante à base de frases curtas e repetições mecânicas. O objectivo é a produção oblíqua de um efeito hipnótico; o resultado é muitas vezes algo que parece o monólogo de alguém com síndrome de Tourette (no livro Tóquio Ano Zero, a palavra “piolhos” é repetida 17 vezes numa página).
Apesar de The Damned Utd (uma ficcionalização da vida interior do lendário treinador Brian Clough) ter os seus adeptos, a melhor e menos hostil introdução ao universo de David Peace é provavelmente a adaptação televisiva da sequência Red Riding: um quarteto de romances abreviado para trilogia na transição para o ecrã por motivos orçamentais. Os três telefilmes foram exibidos no Channel 4 em 2009 e são identificados apenas por datas – o ano em que a respectiva acção decorre: 1974, 1980, 1983. No primeiro, o Yorkshire está em tumulto por causa de assassinatos e crianças desaparecidas; um jornalista (Andrew Garfield, antes do estrelato) detecta padrões, desconfia de uma conspiração alargada e vê a sua investigação esbarrar na resistência da polícia e dos seus próprios superiores. No segundo e terceiro filmes, mais centrados nos crimes (reais) do estripador do Yorkshire, as figuras marginais deixam de ser o jornalista insistente e passam a ser o polícia honesto e o advogado cínico à procura de redenção – mas todos se movem em linhas paralelas às dos sistemas corruptos que investigam.
Todos são também estereótipos, e a intriga avança com total obediência às restrições elementares do género: o pretexto é a morte violenta de uma mulher ou criança; a solução é deslocada para sucessivos confrontos entre homens em ambientes predominantemente masculinos (bares, salas escuras, etc.); não há um único espaço interior que não esteja totalmente saturado por fumo de tabaco. Nos espaços exteriores, por outro lado, está sempre a chover. A dada altura, um dos protagonistas convida uma amante para fugirem: para longe, para “o Sul”, segredando-lhe promessas de uma terra mágica onde às vezes não chove e é possível passear à luz do sol. (Estamos a falar de 250 quilómetros de distância, mas o guião, na melhor tradição noir, multiplica a distância pelo mito.) O simbolismo tem a subtileza de um martelo pneumático. Vários polícias no segundo filme têm alcunhas do reino animal (“o Mocho”, “o Texugo”, etc.); a investigação interna de que são alvo é liderada por um inspector chamado Hunter.
Como todas as séries de época passadas nos anos 70, Red Riding é também sobre papel de parede. A decoração de interiores obedece ao princípio estético “cinquenta sombras de castanho”. Um colega do jornalista do primeiro filme diz-lhe que “cada edifício é um crime”, e o intrigante aforismo é ilustrado por dezenas de planos de casas monstruosamente feias, por fora e por dentro. A frase, como é óbvio, também se refere ao enredo – à parte em que ficamos a saber que a tenebrosa conspiração multidisciplinar foi mantida por várias figuras poderosas não apenas para encobrir um círculo de pedofilia, mas também para lucrar com a construção de um super-hiper-mega centro comercial em Leeds. Os três filmes, aliás, dedicam muitos dos seus recursos a explorar as duas grandes paixões da classe dominante: a violação sexual de criancinhas e a aquisição de terrenos para projectos imobiliários.
O enredo não é fácil de acompanhar, mas – e está aqui uma grave falta de respeito pela tradição noir – faz talvez demasiado sentido. É possível perceber, com mínimos olímpicos de atenção, o que acontece a quem, quando e porquê (algo que quase nunca é verdade, por exemplo, nas ficções de Raymond Chandler). Esta facilidade só não é uma desilusão porque os três filmes tratam o enredo com quase total despreocupação. Como True Detective (uma série feita cinco anos depois, mas que reproduz muitas das qualidades e defeitos de Red Riding), este é um “policial” muito mais à base de ambiente do que de mistérios: um caldo atmosférico de cinematografia imaculada, retórica portentosa, conspirações omnipresentes e intimações sobrenaturais, onde todas as personagens falam como refugiados de um manuscrito perdido de Cormac McCarthy (amostra de diálogo: “Estamos no Norte. Aqui fazemos o que queremos”).
Mas essa é talvez a maior das virtudes de Red Riding, uma qualidade que eleva os filmes até acima do material de origem. David Peace não é um homem do noir e nunca deixa dúvidas sobre a sua falta de respeito pelos géneros que explora e subverte; as adaptações, pelo contrário, não exibem uma centelha de embaraço pela fidelidade a esses géneros.
Essa ausência de ansiedade é especialmente saliente numa altura em que a característica dominante de uma larga fatia do entretenimento cultural ou comercial é a defensiva ostentação do seu autoconhecimento. Na longa histórias dos mecanismos para combater a exaustão formal e manter a suspensão da descrença, o mais influente nas últimas décadas será o distanciamento irónico: o esforço dos criadores para anteciparem certas reacções e incorporarem refutações preventivas no próprio produto. Como muitos dos instrumentos do arsenal da metaficção cooptados pela cultura popular, a eficácia vai diminuindo em proporção inversa à sua familiaridade – e rapidamente se reduz a um sortido de tentativas pífias para contrabandear fórmulas gastas ou lugares-comuns descascando explicitamente o seu funcionamento através de violentas piscadelas de olho ao espectador-cúmplice (pensemos em todas aquelas etapas narrativas predeterminadas nos filmes de super-heróis – a reunião de uma equipa, a formulação de um plano, etc. – acompanhados por diálogos “cómicos”, em que as personagens dizem coisas como “esta é a parte em que reunimos a equipa e formulamos um plano”, etc.).
A trilogia Red Riding tem vários defeitos e a sua solenidade militante arrisca-se a provocar um efeito de irrisão. Mas, ao contrário de muito do cinema e televisão que tenta usar os géneros “menores” como andaimes, comporta-se como um nativo do seu ambiente, e não como um turista nervoso. Cria um mundo noir convictamente artificial, onde o noir nunca existiu, e portanto ninguém sabe que é um lugar-comum, nem precisa de pedir desculpa por esse delito.
A trilogia Red Riding tem vários defeitos e a sua solenidade militante arrisca-se a provocar um efeito de irrisão. Mas, ao contrário de muito do cinema e televisão que tenta usar os géneros “menores” como andaimes, comporta-se como um nativo do seu ambiente, e não como um turista nervoso.