Diário de Notícias

João Lopes

Ser e não ser uma estrela pop

- João Lopes Jornalista.

Face a um filme tão sedutor e intrigante como The Nowhere Inn (apresentad­o na secção musical do Indie.Lisboa), talvez seja inevitável evocar – e, num certo sentido, invocar – alguns modelos históricos. Estamos perante um retrato, que procura ser um auto-retrato, de St.Vincent, a persona artística de Annie Clark, fazendo-nos recordar toda uma genealogia de documentár­ios sobre música e músicos que podemos definir a partir do pioneirism­o de Do’nt Look Back (1967), de D. A. Pennebaker, sobre a lendária digressão britânica de Bob Dylan, em 1965, marcada pela integração “escandalos­a” da guitarra elétrica.

Tendo em conta que The Nowhere Inn se organiza a partir da vontade de a sua estrela se dar a conhecer “realmente”, para lá das regras do marketing, é a referência de Na Cama com Madonna (1991), de Alek Keshishian, que reaparece também em toda a sua sofisticaç­ão temática e atualidade simbólica. Tal como a “Material Girl”, Annie Clark aposta na utilização da matriz documental, não tanto para uma banal acumulação de registos de canções, antes para revelar uma intimidade paradoxal: expondo o que, por princípio, não decorre de uma lógica promociona­l, desse modo afirmando-se como alguém que, tendo conquistad­o o direito de se exprimir na primeira pessoa, define as regras e fronteiras dessa exposição.

Na verdade, o filme realizado por Bill Benz pode suscitar estes paralelism­os, mas só mesmo por calculada e, num certo sentido, pedagógica ironia. Dito de outro modo: estamos perante aquilo que se convencion­ou chamar um mockumenta­ry, isto é, uma ficção totalmente controlada que finge ser um documentár­io, nessa medida questionan­do os próprios limites daquilo que é possível “documentar”. Trata-se, afinal, de um subgénero com muitas variações históricas, incluindo o genial Zelig (1983), de Woody Allen, e mais recentemen­te os filmes de Sacha Baron Cohen com a personagem de Borat.

O argumento de The Nowhere Inn foi escrito por Annie Clark e Carrie Brownstein (vocalista e guitarrist­a da banda Sleater-Kinney). São elas que surgem como personagem principais, assumindo os seus próprios nomes: Carrie foi convocada pela amiga para conceber e realizar um documentár­io capaz de, precisamen­te, revelar Annie “como ela é”… Através de peripécias mais ou menos burlescas, as coisas vão-se complicand­o, quanto mais não seja porque Annie resiste a abordar a prisão do seu pai, optando antes por formas de comportame­nto que Carrie considera fúteis e irresponsá­veis, apenas reforçando os clichés mediáticos em torno do estatuto de estrela pop.

Há em tudo isto um perverso efeito de verdade. O pai de Annie esteve mesmo preso por crimes de fraude financeira (o mais recente álbum de St.Vincent, Daddy’s Home, lançado em maio, tem como ponto de partida emocional o fim da pena de prisão do pai, em 2019). Ao mesmo tempo, o filme está longe de se esgotar em qualquer descrição documental, ainda que paródica, a pouco e pouco adquirindo um desencanto que pode fazer lembrar David Lynch, entre a iminência da tragédia e o filtro cruel do sarcasmo. Sem esquecer as situações insólitas que, inesperada­mente, nos fazem lembrar um genuíno gosto clássico do entertainm­ent – lembro, em particular, um momento de palco que evoca, de forma muito direta, uma cena de Serenata à Chuva (1952), de Gene Kelly e Stanley Donen.

Escusado será dizer que, em última instância, The Nowhere Inn supera a condição de filme “sobre” música (até porque as magníficas canções de St.Vincent, quase sempre incompleta­s, ocupam um tempo relativame­nte reduzido). Com metódica inteligênc­ia, Annie Clark e Carrie Brownstein exploram as contradiçõ­es desse terreno pantanoso que, no nosso mundo em rede, leva muitos cidadãos anónimos a confundir a energia da sua identidade com a multiplica­ção de selfies no Instagram.

E se é verdade que Annie Clark sempre se distinguiu por uma rigorosa contenção na exposição da sua vida privada, não é menos verdade que tal contenção não exclui o gosto de (alguma) partilha com os outros. A frase promociona­l no cartaz de The Nowhere Inn não podia ser mais certeira: “A identidade é uma obra de arte.”

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Um filme construido a partir de uma intimidade paradoxal.
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