José Mendes
MBA Ronaldo
Quando olharmos para trás, com a distância que o tempo permite e a que a História obriga, a queda de Zaki Anwari, a 16 de agosto de 2021, ocupará um espaço na consciência de quem a tiver.
Chamava-se Zaki. Zaki Anwari. Havia nascido em 2002, sem ter vivido sequer o dia, do outro lado do mundo, que tudo despontou. Era um jovem atleta nacional, futebolista afegão. Pereceu no passado dia 16, caído de um avião da Força Aérea americana que descolou com dezenas de vidas agarradas ao seu exterior. Tinha 17 anos. Usava a camisola 10. Nasceu, cresceu e viveu num país em guerra, mas com esperança de este ser diferente do que fora. Não houve um dia da sua existência que não houvesse sido moldado por terrores, invasões e políticas das quais não poderia ser mais alheado. Era um miúdo que jogava à bola. Usava a camisola 10. Era um miúdo que queria, pelo menos, que o futuro continuasse sem um regresso ao negrume que ouvira dos seus pais, mas que ele, com os seus olhos e direitos, não havia presenciado. Quando caiu, crente de que a aeronave dos Estados Unidos não levantaria voo com gente colada às suas rodas, era desse negrume que ansiava escapar. Quando caiu, no momento em que caiu, o negrume havia triunfado. Usava a camisola 10.
Nos dias seguintes, as famílias dos outros tantos que também caíram percorreram os arredores do aeroporto de
Cabul em busca dos corpos dos seus, achando-os no topo de prédios, em descampados ou simplesmente estropiados numa das estradas já tomadas pelos talibãs. Zaki surgiu, ainda reconhecível, ainda perto da pista. Usava a camisola 10.
Quando olharmos para trás, com a distância que o tempo permite e a que a História obriga, a queda de Zaki Anwari, a 16 de agosto de 2021, ocupará um espaço na consciência de quem a tiver. Usava a camisola 10. Zaki é não o culminar de uma tragédia, não a consequência de uma imprevisibilidade, mas o oposto disso tudo. É a continuação de um inevitável que ninguém se preocupou em evitar. É um fracasso moral do Ocidente e, em concreto, dos Estados Unidos da América. É Alan Kurdi, nas margens do Mediterrâneo, criança de três anos, refugiado, afogado, cujo destino, que não foi, era o Canadá. É Tursunay Ziawudun, uigur, que passou nove meses num campo de concentração em Xinjiang, onde sofreu e assistiu a violações sistemáticas e esterilizações forçadas. É, invariavelmente, mais um encolher de ombros, mais uma declaração vazia, mais um tweet que “acompanha a situação com preocupação” vindo de um Ministério dos Negócios Estrangeiros alemão, de um alto representante para a política externa europeia ou de um país como o nosso, que faz o que pode para sobreviver diplomaticamente num mundo em que ser democrata e precário obriga a um cinismo pouco aconselhável. Zaki, provavelmente, não sabia nem queria saber de nada disto. Usava a camisola 10.
Joe Biden, com décadas de experiência em assuntos internacionais e uma campanha que apregoava o regresso da competência e da consciência à Casa Branca, fez duas intervenções onde culpou os afegãos pela queda de Cabul. “Não podemos lutar quando eles não lutaram”, afirmou. Os 69 mil soldados afegãos que perderam a vida nas últimas duas décadas talvez discordassem.
Nunca saberemos o que Zaki Anwari pensaria sobre isso. Mas podemos imaginar.
Ele usava a camisola 10.