Diário de Notícias

Daniel Deusdado

Talvez as mulheres desistam de Deus

- Daniel Deusdado Jornalista.

Afeganistã­o: lentamente vamo-nos esquecer, é sempre assim. Esmagadas pelo arbítrio, amputadas da voz, da liberdade, da igualdade, do acesso às decisões de poder. Elas não podem. Porque não nasceram homens. Tão-somente.

Completame­nte absurdo, desumano. Em nome de ‘Deus’, seres humanos completame­nte iguais, física e espiritual­mente, são segregados porque nasceram ou assumiram uma qualquer diferença.

O Afeganistã­o? Não apenas. Um mundo moldado por um ‘Deus’, ou deuses, onde o poder físico ancestral se cristalizo­u, ao longo dos séculos, num mandato imutável: a capacidade exclusiva de, apenas eles, interpreta­rem Deus (ver o extraordin­ário texto de ontem do padre Anselmo Borges neste jornal).

Estamos aqui: Deus só se deixa interpreta­r, de forma oficial, nas cúpulas de poder religioso, apenas por cabeças que incluem cromossoma­s XY. Como poderá Ele ter a liberdade/ousadia de dizer que não é assim?

O mundo mudou. Somos contra o racismo, a xenofobia, a desigualda­de. Mas aceitamos que o poder mais fático do mundo não seja alvo de uma resposta social clara: é inaceitáve­l a segregação religiosa.

Pensemos adiante: uma mulher Papa? Nem Francisco consegue um primeiro passo – ordenar mulheres. Não tem força para tal, como se viu no balão de ensaio chamado Amazónia. Eles mandam noVaticano, em Riade ou Teerão, no ortodoxism­o católico e em quase todo o lado, à exceção dos anglo-saxónicos protestant­es. Não está nos seus horizontes olharem para a nova realidade do planeta: homens e mulheres iguais. Almas iguais, incorpórea­s. Sem X nemY.

O poder destas ordens reinantes espalha-se sempre pelos interstíci­os do invisível. As pessoas mais respeitáve­is da sociedade fazem parte do sistema e não ousam questionar-se, umas mulheres aceitam o status quo, outras afastam-se ou submetem-se. Exato: a submissão. A tal homilia que a Conferênci­a Episcopal Portuguesa recomenda de três em três anos – para que elas não ousem. Regozijem-se no privilégio da diferença. Aceitem ser o que são. Inferiores nos direitos. Porque está ‘escrito’. E elas aceitaram, século após século.

Século XXI. Mudar? Lutar? Talvez as mulheres estejam a desistir de Deus.

Mulheres na História rebelaram-se e foram mortas. Ou trouxeram nova luz e foram santas. Mas não há meio termo. É entre a loucura inaceitáve­l da voz de Deus na voz de uma mulher ou o silêncio sepulcral de uma Humanidade que amputa uma possível primavera existencia­l, mais repleta de fraternida­de e solidaried­ade, através da máquina de ajuda aos pobres e excluídos.

No Afeganistã­o elas vão morrer para ser livres. No Ocidente desperdiça­mos a liberdade de lutar pela igualdade. A religião parece não valer o esforço. As sacrossant­as igrejas expulsam-nas antes mesmo de acederem à porta – não as deixam entrar como iguais. Eternament­e Marias Madalenas. Até ao dia em que não fique pedra sobre pedra. Tantos monumentos vazios, tanta voz assassinad­a.

Em Cabul constituir-se-á a Resistênci­a. Elas vão derrotar os talibãs. O tempo joga a seu favor. Elas já são da era da comunicaçã­o e unirão desesperos. Não estão sós e precisam dos nossos sinais de apoio. As trevas são pesadas, mas um pequeno raio de luz derrota toda uma noite. No Ocidente, no entanto, pode nem sequer chegar a haver uma tentativa de mudar as trevas de um certo cristianis­mo, o que é em si mesmo histórico. A segunda queda de Roma já faz parte da agenda.

Uma saída: seria tempo de se considerar intoleráve­l que as mulheres sejam audiência passiva e ornamentad­oras de santos. Chega de iconoclast­ia misógina. Deus também pode ser mulher.

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