Um cardeal no coração da História
Há 25 anos, o DN publicava uma das poucas entrevistas alguma vez concedidas pelo então Cardeal Patriarca de Lisboa, D. António Ribeiro. Uma espécie de testamento espiritual que os jornalistas José António Santos e Ricardo de Saavedra fixaram também num livro que volta agora às livrarias, em edição revista e aumentada.
U “m profundo conhecedor da sociedade em que viveu, mas que esteve sempre à frente do seu tempo”, é assim que os autores do livro D. António Ribeiro – Patriarca de Lisboa definem o seu entrevistado de há 25 anos, figura cimeira da Igreja Católica em Portugal entre 1971 e 24 de março de 1998, data da sua morte. Há um quarto de século, numa sociedade totalmente diferente da de hoje, em que as comunicações ainda circulavam a uma velocidade do século XX, um mistério podia resistir durante décadas às investidas da curiosidade pública. De temperamento secreto, quase um príncipe da igreja à moda da Renascença, o sucessor do Cardeal Cerejeira era muito avesso a entrevistas e a qualquer tipo de exposição mediática decorrente da sua posição. Como haveria então o DN de tratar a efeméride, sabendo-se que a discrição da atitude era inversamente proporcional à real importância da sua intervenção na sociedade portuguesa antes e depois do 25 de Abril? Jornalistas da casa, José António Santos e Ricardo de Saavedra foram à procura da entrevista que muitos lhes diziam impossível: “Sabíamos que muitas vezes lhe tinham solicitadas entrevistas, quer pelo DN, quer por outros órgãos de comunicação social, sem que ele acedesse”, contam agora. “Era um homem muito reservado, aproveitava para se pronunciar sobre os assuntos que considerava importantes quando fazia homilias na Sé, e pouco mais.”
Perante isto, o que fazer? Como recorda Ricardo de Saavedra, avançaram em várias frentes. José António Santos rumou à terra natal do Cardeal (o lugar de Pereira, em Celorico de Basto) para lhe traçar o perfil, falando com várias pessoas que o conheciam há muito, como o abade local, e publicou o artigo a 10 de maio. Tentou-se também pelas vias habituais do jornalismo procurar alguém que, por sua vez, conhecesse quem tivesse acesso privilegiado ao Cardeal. Tudo vago e incerto, baseado no talvez, até que, já depois da publicação do referido perfil, D. António Ribeiro telefonou a Mário Bettencourt Resendes, então diretor do DN. Acedia a conceder a entrevista mediante uma conversa prévia com os jornalistas que a iriam fazer. No final de junho, o resultado desse trabalho pôde ser lido nas páginas do jornal, ao mesmo tempo que, dada a sua extensão e importância, era compilada em livro, publicado pela Editorial Notícias, na coleção “Diário de Notícias – Textos & Documentos”.
Novas investigações
O mesmo livro que, agora com chancela das Edições Paulinas, volta às livrarias, em edição revista e aumentada com o resultado da investigação que os autores nunca deixaram de fazer.“D. António Ribeiro não era homem para ceder a pressões”, diz José António Santos. “Acredito, por isso, que dar-nos a entrevista foi uma decisão só sua. Ele sabia que estava gravemente doente (o que, na época, ninguém suspeitava) e quis deixar a sua marca. A entrevista, bastante longa, acabou por se tornar o seu testamento espiritual.” D. António Ribeiro morreria menos de dois anos depois e seria sucedido por D. José Policarpo, que já era seu bispo auxiliar.
Mas a importância dos tempos em que desempenhou o seu ministério episcopal tornaram-no um protagonista da História recente de Portugal e levaram os jornalistas a aprofundar o trabalho realizado há 25 anos. Nesta segunda edição, com novas fontes orais e escritas, ficamos a conhecer aspetos novos, como a história da sua expulsão do seminário de Braga em jovem ou o modo como confrontou a ditadura em violenta agonia, nomeadamente após os massacres cometidos pelas tropas portuguesas na aldeia moçambicana de Wiriyamu, em dezembro de 1972 (um episódio a que Ricardo de Saavedra já dedicou o livro Os Dias do Fim). Para desenvolver o tema (ainda envolto em muito silêncio) foi crucial o testemunho do antigo secretário do Cardeal, António Costa Pires, obtido há cerca de dois anos, como diz José António Santos. “Quando D. António foi bispo auxiliar de Braga, o padre, que não teria mais de 25 anos, foi nomeado seu secretário. Estabeleceram uma relação de grande confiança, de tal maneira que D. António o traria consigo quando vem para Lisboa. Mantiveram uma relação de grande proximidade mesmo depois de o padre ter partido para o Canadá, para acompanhar espiritualmente a comunidade portuguesa, já que essa era a alternativa a tornar-se capelão das Forças Armadas e a partir para a Guerra Colonial.”
Seria graças a António Costa Pires (que entretanto deixou o sacerdócio para casar e se dedicar à advocacia) que os dois jornalistas ficariam a sa
“Era um homem muito reservado, aproveitava para se pronunciar sobre os assuntos que considerava importantes quando fazia homilias na Sé, e pouco mais.”
“Podemos mesmo dizer que D. António Ribeiro é o homem que carrega e transporta a Igreja Católica do Estado Novo para o 25 de Abril e para uma vida em democracia.”
ber que em meados de 1973 o Cardeal e o Bispo de Quelimane e presidente da Conferência Episcopal de Moçambique, D.Francisco Nunes Teixeira, tiveram uma audiência muito tensa com Marcello Caetano no Palácio de Queluz. “O que nós sabemos”, diz Ricardo de Saavedra, “é que D. António Ribeiro quis denunciar a situação e à última hora, ele e os bispos que tinham vindo de Moçambique, decidiram silenciar o assunto, limitando-se, a conselho do núncio, a enviar as informações para Roma.” Para os dois jornalistas, este volte-face é um mistério, já que contraria todas as tomadas de posição que o Cardeal vinha a assumir de confronto com o regime.
“Do que nunca poderemos duvidar é que D. António Ribeiro era um democrata convicto, que acolheu o 25 de Abril de braços abertos”, afirma José António Santos. Uma posição que era do pleno conhecimento do Papa Paulo VI, mas também do antecessor no episcopado de Lisboa, o Cardeal Cerejeira, que, ainda em vida de Salazar, já se vinha a demarcar da política do regime, sobretudo em questões relacionadas com a Guerra Colonial ou com os presos políticos. Já cardeal, D. António Ribeiro mostrar-se-á intransigente na defesa dos católicos da Capela do Rato, que não ocultavam a sua oposição ao governo e à continuidade da guerra em África. Quando, a 31 de dezembro de 1972, a PIDE e a polícia de choque interromperam violentamente uma vigília pela paz, interveio e, contrariando a decisão policial, ordenou que as missas de 1 de janeiro fossem celebradas como habitualmente. Nesse mesmo dia, quando o padre António Janela foi detido pela PIDE, enfrentou o tristemente célebre inspetor Sachetti e não saiu da porta da sede da polícia política até o padre ser libertado.
Do mesmo modo, aquando do 10.º aniversário da encíclica de João XXIII Pacem in Terris, D. António Ribeiro proferiu uma homilia em que a denúncia da Guerra Colonial era muito evidente. Mas dessa vez o regime não ousou interferir.
Para José António Santos, “o valor da democracia estava há muito enraizado nele”. Quando, jovem estudante, “foi para Roma estudar Teologia, estabeleceu contactos com correntes de pensamento diversas, sobretudo com pessoas de universidades alemãs. Durante as férias escolares, aproveitava para vir a Portugal ver a mãe, mas viajava sobretudo pela Alemanha e pela Áustria. Em Itália, acompanhou a construção da democracia no pós-guerra. Quando voltou a Portugal, já com os doutoramentos feitos, veio para Lisboa e os bispos entregam-lhe assistência espiritual das elites católicas, nomeadamente os grupos de Ação Católica, onde contactou com pessoas como João Salgueiro, Sousa Franco, Xavier Pintado, Sedas Nunes ou Joaquim Silva Pinto”.
A sua posição pró-democracia seria, aliás, tão pública e notória que, em 1967, o seu nome seria vetado para bispo da Beira, em Moçambique, numa posição inédita do governo português, que, apesar da prerrogativa de vetar as nomeações de Roma para os bispos das chamadas províncias ultramarinas, nunca a tinha usado.
A mesma serenidade com que enfrentara a ditadura tê-la-ia também nos tempos conturbados do Processo Revolucionário em Curso (PREC), “mostrando sempre grande compreensão perante os tumultos que se geraram”, nomeadamente a ocupação da Rádio Renascença após a tentativa de golpe de 11 de março de 1975 e o cerco ao Palácio do Patriarcado. “Creio que a sua atitude ajudou a desbloquear várias situações que podiam ter sido complicadas”, diz José António Santos. E dá como exemplo esse cerco ao Patriarcado, no Campo dos Mártires da Pátria (o belo edifício setecentista que a Igreja deixou há anos e à porta do qual o DN fotografou agora os autores do livro), em que D. António Ribeiro mandou abrir as portas do palácio para acolher os católicos que tinham vindo em seu auxílio ao saberem do cerco montado por alguns movimentos de extrema-esquerda. “Ficaram ali algum tempo e esvaziaram a despensa, para desespero das freiras”, conta José António Santos. Mas tudo acabou por correr bem. “Ele assistira à construção (bem mais turbulenta) da democracia em Itália, era um homem que lia muito, sabia perfeitamente lidar com a situação. Podemos mesmo dizer que D. António Ribeiro é o homem que carrega e transporta a Igreja Católica do Estado Novo para o 25 de Abril e para uma vida em democracia.” Uma visão que vai ao encontro do que o atual Cardeal~Patriarca, D.Manuel Clemente, escreve no prefácio a esta 2.ª edição: “Muitas vezes ouvi classificar o Cardeal Ribeiro como homem prudente. Na verdade, ouvia e lia muito, falava quando achava preciso, sempre claro e mesmo intrépido, aparecia onde tinha de aparecer. Em tempos que já era de muita pressão mediática, resistia ao figurar por figurar e falar por falar. Também por isso a sua intervenção ganhava peso dentro e fora do espaço eclesial.”
Estabilizada a situação política, o Cardeal mantém a atitude discreta, mas de atenção plena.
A partir das 18 horas, no Patriarcado, recebe dirigentes da Intersindical, como Manuel Carvalho da Silva, mas também de outros sindicatos, políticos como Mário Soares, economistas, frequenta as casas das famílias de uma certa elite. Em privado, era um homem austero, que tinha a “fraqueza” de fumar desalmadamente e o gosto das viagens em Portugal e no estrangeiro.
O legado
As preocupações sociais de que D. António Ribeiro nunca abriu mão estão bem patentes nessa entrevista de 1996, como o tinham estado em duas cartas pastorais que marcaram o seu episcopado: Carta Pastoral sobre algumas questões da habitação e do urbanismo em Lisboa (1984) e Carta Pastoral sobre os jovens na sociedade e na Igreja (1986). Acreditava numa fé que não fosse irracional, como diz na entrevista: “A fé passa a ser a vida da pessoa, e não apenas uma crença abstrata. Não apenas um sentimento, mas também inteligência, vontade e sensibilidade. É preciso atingir a pessoa toda.”
Batia-se pelo direito a uma habitação condigna para todos (numa época em que, mesmo em Lisboa, ainda existiam vários bairros de “barracas”), e, dentro da sua esfera de poder, alterou as condições de vida dos priores da sua diocese, o que depois viria a ser replicado noutras um pouco por todo o país: “Até aí, a precariedade era total. Os priores das paróquias não tinham ordenado, não tinham Segurança Social e não tinham para onde ir”, conta José António Santos. “Ele redefiniu o sistema de assistência ao clero. Fixou o ordenado dos párocos, conseguiu que eles fossem inscritos na Segurança Social e instituiu uma casa de repouso para a assistência na velhice.”
E hoje, 23 anos após a sua morte, o que resta do pensamento e da obra de D. António Ribeiro? Para José António Santos, “esta é uma oportunidade para lembrar o Cardeal Ribeiro, a importância que ele teve e tem. A Igreja de Lisboa (bispo, padres, cristãos, pessoas interessadas pelo fenómeno religioso) fazia muito bem se lesse o texto da homilia que o Cardeal leu a 21 de setembro de 1971, na Sé Patriarcal, que consubstancia o pensamento dele em torno do tema da Igreja que partilha a condição dos homens, no espírito do ConcílioVaticano II. Tínhamos todos a ganhar”.