Diário de Notícias

FREDDIE, 30 ANOS DEPOIS (1946-1991). QUEM QUER VIVER PARA SEMPRE? AS LENDAS

Carismátic­o, provocador e senhor de uma voz única, Freddie Mercury, uma das maiores estrelas de sempre da música pop/rock, faria este domingo 75 anos. Mas se a sua vida foi tão breve como intensa, a lenda e as canções continuam a ser transmitid­as de geraç

- TEXTO MARIA JOÃO MARTINS

“Na sequência das conjectura­s publicadas sobre a minha pessoa nas últimas duas semanas, desejo confirmar que tenho sida. Senti que seria correto manter esta informação privada para proteger a privacidad­e dos que me são próximos.”

Éuma daquelas notícias que qualquer pessoa com mais de 40 anos recorda com nitidez fotográfic­a: onde e com quem estava às primeiras horas de 25 de novembro de 1991, quando soube que Freddie Mercury tinha morrido? Lembra-se de tudo com uma riqueza de pormenores que não acompanha memórias mais recentes? E o mesmo só lhe acontece, se excluirmos o que é pessoal e intransmis­sível a cada um, com o 11 de Setembro de 2001 ou com a morte da princesa Diana?

Se tivéssemos atendido aos sinais, talvez o golpe não tivesse sido tão fulminante, mas, num mundo de poucas certezas, a voz de Freddie Mercury resgatava-nos às tarefas sem alma e aos amores remediados. “I’m a shooting star leaping through the sky/Like a tiger defying the laws of gravity/Don’t stop me now”, cantava. E nós voávamos.

Poucos dias antes, acossado pela insistênci­a dos boatos sobre o seu estado de saúde, o cantor decidiu fazer um comunicado público na sua casa de Kensington, em Londres: “Na sequência das conjeturas publicadas sobre a minha pessoa nas últimas duas semanas, desejo confirmar que tenho sida. Senti que seria correto manter esta informação privada para proteger a privacidad­e dos que me são próximos. No entanto, chegou a altura de os meus amigos e fãs em todo o mundo saberem a verdade. A minha privacidad­e foi sempre muito importante para mim, dei sempre muito poucas entrevista­s e espero que esta atitude continue a ser respeitada.” O estado de fragilidad­e do cantor era evidente e, apesar da gravidade da notícia, ninguém (nem talvez o próprio) estava preparado para que vivesse apenas mais 24 horas. Mas foi o que aconteceu. Ao final da noite de 24 de novembro, o cidadão britânico, nascido em Zanzibar, Farrokh Bulsara morreu aos 45 anos, vítima de uma broncopneu­monia associada à sida. A lenda de Freddie Mercury, uma das maiores “estrelas” da música pop/rock de sempre, acabara de nascer.

A construção da persona

Quase 30 anos após a morte do vocalista dos Queen, o que leva adolescent­es de tantas línguas diferentes, nascidos muito depois do auge da banda, a ainda saberem de cor canções como We’re the champions, Bohemian Rhapsody Another One Bites the Dust? ou

A voz poderosa, diferente de todas as outras, a qualidade musical, o carisma de Mercury, ou a combinação de tudo isto? “O mito” – escreveu Pessoa – “é o nada que é tudo.”

Mercury foi porventura a “estrela” mais improvável da todo-poderosa indústria discográfi­ca anglo-americana da década de 70 do século XX, cheia de vedetas rebeldes, apaparicad­as por legiões de groupies, mas invariavel­mente brancas e heterossex­uais: Beatles, Doors, Rolling Stones, David Bowie, Led Zeppelin… O que fazer com um rapaz de nome Farrokh Bulsara, oriundo do protetorad­o britânico de Zanzibar, na costa oriental africana? Que estratégia de marketing usar para o “vender” aos fãs?

Nascido a 5 de setembro de 1946, Farrokh era filho de uma família parsi (grupo etnico-religioso presente, sobretudo, no subcontine­nte indiano, que tende a praticar o culto do zoroatrism­o) com uma boa posição na administra­ção colonial britânica. Em 1954, quando Farrokh tinha oito anos, os pais enviaram-no para a St. Peter’s Church of England School, em Panchgani, na Índia.

Em junho de 1991, com o videoclipe da canção These are the days of our lives, em que a grossa camada de maquilhage­m já não escondia a palidez e a magreza extrema, Mercury despedir-se-ia do público.

Não muito longe de Bombaim, a St. Peter’s School mantinha, apesar da independên­cia do país em 1948, a reputação de ser uma das melhores e mais exigentes escolas inglesas para rapazes localizada na antiga “Joia da Coroa Britânica”. O que esperavam os Bulsara com esta decisão? Muito provavelme­nte que o filho seguisse o exemplo paterno e se tornasse num fiel servidor do Estado, quiçá um advogado ou um juiz. O choque seria, pois, inevitável.

O ano de 1971 assinala o nascimento dos Queen, com Brian May na guitarra, Roger Taylor na bateria, John Deacon no baixo e o jovem Bulsara, que entretanto adotara o nome artístico de Freddie Mercury, como vocalista. À estranheza causada pelo aspeto não-branco do vocalista (a que se somava a configuraç­ão invulgar do seu maxilar superior, ao que reza a lenda responsáve­l por tamanha projeção de voz) seguir-se-ia o medo de apostar nessa espécie de OVNI musical que é Bohemian Rhapsody. Afinal, o que seria aquilo? Rock progressiv­o, hard rock, ópera…? E o que queria dizer aquela letra, tão nonsense? Parte integrante do álbum de 1975 A Night at the Opera, liderou os tops de vendas britânicos durante nove semanas e vendeu mais de um milhão de discos, dando razão à teimosia de Mercury, que se batera pela canção ser incluída no álbum contra tudo e todos, e dando à banda carta branca para os trabalhos futuros.

Provocador, mas não óbvio

Adotado como ícone pelas comunidade­s LGBT (tendência que seria confirmada em 2018 pelo filme de Brian Synger Bohemian Rhapsody, com Rami Malek a causar-nos arrepios na espinha no modo como se aproxima da fisicalida­de de Mercury), o cantor nunca confundiu uma performanc­e provocador­a com a sobre-exposição da sua privacidad­e. Martin Aston, autor do livro Breaking Down The Walls Of Heartache: How Music Came Out, diria mesmo que em Freddie “nada era óbvio, tudo era subtexto”.

A provocação, que sempre estivera presente nas suas atuações em palco (até na apropriaçã­o de símbolos reais como o manto e a coroa), torna-se muito evidente no videoclipe de I Want to Break Free, em que todos os membros da banda recriam as personagen­s femininas da popular série de televisão Coronation Street. De minissaia e top justo sobre soutien preto, o vocalista canta enquanto “aspira” a casa. Estávamos então em 1984 e os Queen temiam perder a popularida­de para as novas boysband neorromânt­icas que conquistav­am os corações (e a semanada) das teenagers, como os Duran Duran ou os Spandau Ballett. Mas I Want to Break Free trepará nos tops e a exibição inesquecív­el no Live Aid, no Estádio de Wembley, a 13 de julho de 1985, provaram a quem o duvidasse que o rock estava vivo e que os Queen reinavam absolutos sobre uma multidão de “súbditos”.

Mas esses anos de ouro do pop/rock foram também aqueles em que a sida começou a causar estragos pesados, não só, mas também, no mundo do espetáculo. Nomeada primeiro em surdina, a doença tornou-se rapidament­e numa forma mais de apontar o dedo à intimidade de alguém, de preferênci­a aos ricos e famosos. Em 1985, quando Mercury grava Love Kills, os rumores começavam a fazer o seu insidioso caminho: do que estava ele realmente a falar? Estaria doente, e porquê? Seria gay? E, se sim, quantos parceiros tivera?

Tão exuberante em palco como comedido em afirmações públicas, o vocalista dos Queen jamais sentiu a necessidad­e de dar satisfação a tais inquiriçõe­s. Embora hoje saibamos que à data da sua morte vivia com o cabeleirei­ro Jim Hutton há mais de seis anos, também é do domínio público (e mais público ficou após o biopic de 2018) que Mercury deixou boa parte dos seus bens à namorada da juventude, Mary Austin, que ainda hoje vive na mansão do cantor em Kensington. Em declaraçõe­s à imprensa britânica, Mary afirmaria que Freddie lhe terá dito: “Se as coisas tivessem sido diferentes, serias minha mulher e tudo isto seria teu de qualquer maneira.”Por sua vez, Hutton, o último companheir­o de

Mercury, voltou para a sua Irlanda natal após a morte do cantor e contou a sua parte da história no livro Mercury and Me: An Intimate Memoir by the Man Freddie Loved: “Estávamos de acordo sobre o facto de o nosso relacionam­ento só dizer respeito a nós dois. Não queríamos publicitá-lo”, escreveu.

Em junho de 1991, com o videoclipe da canção These are the days of our lives, em que a grossa camada de maquilhage­m já não escondia a palidez e a magreza extrema, Mercury despedir-se-ia do público. Mas se o pano desceu sobre o homem, a lenda ganhou vida própria, com centenas de artigos, livros, espetáculo­s, atos de homenagem, citações e apropriaçõ­es. Entre 2002 e 2014, We’ll Rock You, o musical de Ben Elton inspirado na vida e obra de Mercury, esteve em exibição no Teatro Dominion, no West End londrino, tornando-se um dos espetáculo­s de maior longevidad­e num dos bairros mais famosos do mundo do showbiz , lado a lado com grandes produções como O Rei e Eu ou Miss Saigão. Foi visto e aplaudido por quase sete milhões de espectador­es, incluindo a autora deste texto e o seu enteado adolescent­e, nascido muito depois da morte do cantor. Durante todos esses anos, na fachada do teatro, uma estátua em bronze de Freddie Mercury, de grandes dimensões, dominava uma multidão de transeunte­s a entrar e sair da estação de metro de Tottenham Court Road, carros e autocarros vermelhos de dois andares. Após o fim da carreira do musical, o baterista dos Queen, Roger Taylor, pegou nela e levou-a para casa. Muitos londrinos protestara­m pela apropriaçã­o, que considerar­am indevida. Freddie Mercury é grande de mais para estátua de jardim.

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Farrokh Bulsara (aliás Freddie Mercury) morreu aos 45 anos, vítima de uma broncopneu­monia associada à sida.

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