Da fome à vontade de comer
Enterramos centenas de mortos cujos corpos ninguém reclama, mas chegámos a acreditar que depois da pandemia íamos ser um mundo melhor.
Um em cada cinco portugueses é pobre, e milhão e meio de famílias vivem mesmo na subcave da pobreza, com menos de 18 euros por dia para sobreviverem. Havendo dias para tudo, acabamos de assinalar do Dia Mundial da Erradicação da Pobreza. Isto quando o parlamento discute o tamanho das fatias do bolo e o governo lança à discussão pública a versão preliminar da Estratégia Nacional que visa, em dez anos, reduzir em 360 mil o número dos nossos que só vivem das migalhas.
O governo quer fazer do rendimento social de inserção (RSI) um dos pontos centrais da nova Estratégia de Combate à Pobreza. A intenção anunciada é chegar a mais pessoas, de forma mais eficaz, mas também com uma ligação mais efetiva ao mercado de trabalho. Atualmente, mais de 250 mil portugueses estão abrangidos por esta prestação social que, em média, ronda os 120 euros por mês. Ainda assim, o número de beneficiários é o mais baixo desde 2006, depois de se ter reduzido a metade o número de beneficiários na última década. Entre estes, as mulheres estão em maioria, e mais de dois em cada cinco (41%) têm menos de 25 anos.
A pandemia instalou milhares de portugueses em ambiente de emergência social, num cenário de precariedade e falta de oportunidades. Mas à escala da União Europeia, em percentagem, o retrato não sai melhor. Daí que a Cimeira Social do Porto, em maio, tenha fixado três objetivos até 2030: 78% de taxa de emprego, 60% de adultos em ações de formação e menos 15 milhões de europeus (dos atuais 100 milhões de pobres) em risco de exclusão.
A travagem brusca a que nos obrigou a peste e as consequentes restrições deixaram a descoberto as debilidades na principal fonte de sustento das famílias, que são os rendimentos do trabalho. Mas a crise veio também revelar as acrescidas dificuldades dos que trabalham sem contrato, ou com baixos salários, e acesso limitado à proteção social, para enfrentarem as despesas relacionadas com mesa e habitação. Aliás, as últimas estatísticas oficiais demonstram que a maior parte dos nossos pobres não o são por falta de emprego ou por dependerem de apoios sociais que menorizem a ausência de salário – estão em situação de pobreza porque auferem salários baixos ou têm empregos precários. Pobreza energética, insuficiência alimentar, pobreza habitacional, pobreza infantil, feminização da pobreza … – eis, afinal, manifestações do mesmo problema. A pobreza estrutural, a precariedade, o aumento das desigualdades e a ausência de mobilidade social são marcas identitárias de um novo modelo de sociedade em que parecemos estacionados.
É claro que só se combate a pobreza com maior mobilização de recursos, seja por via do emprego ou de benefícios sociais, mas tal só é possível com maior crescimento e uma redistribuição mais justa. É disso que trata a Estratégia Nacional cujo plano está em discussão. No imediato, o alargamento do rendimento social de inserção é prescrito como a vacina mais eficaz contra a pobreza. Mas é essencial uma maior agilidade do Estado na relação com os seus beneficiários. Porque as ajudas específicas têm sido tão pouco eficazes que até a esmola burocratiza, denigre e estigmatiza aqueles que podem aceder-lhe. O crescimento das filas da fome à porta de algumas instituições revela a fragilidade das políticas públicas e da justiça social. E a notícia – de ontem, neste jornal – de que enterramos centenas de mortos cujos corpos ninguém reclama descobre-nos a vergonha. Porque acreditámos que depois da pandemia íamos ser melhores pessoas.