Diário de Notícias

O Ocidente e o resto

- Leonídio Paulo Ferreira Diretor adjunto do Diário de Notícias

Seul costumava ser o palco todos os anos de uma conferênci­a mundial sobre jornalismo que tinha como principais atrativos, além do debate sobre os desafios da profissão, uma visita à fronteira com a Coreia do Norte e a descoberta de um recanto da Coreia do Sul, para que os participan­tes vissem mais do que apenas a capital e o risco de guerra ali perto. Outro atrativo extraordin­ário era a diversidad­e de nacionalid­ades representa­das e, nas duas vezes em que participei fisicament­e (já explicarei o termo), tive a oportunida­de de me sentar à conversa com paraguaios, omanitas, quirguizes, vietnamita­s, etc., etc., nem sempre com facilidade – pois o inglês pode ser língua franca, porém é falado a níveis muito díspares –, mas sempre com o fascínio de ouvir testemunho­s de realidades bem diferentes do mundo ocidental em que vivo.

Os jornalista­s sul-coreanos que organizam o evento não se deixaram desanimar pela pandemia, e mantiveram o chamado World Journalist­s Congress, apesar de muitas fronteiras estarem ainda fechadas por causa da covid-19. E organizara­m tudo via Zoom, com um profission­alismo extremo, provavelme­nte sendo essa ética do trabalho uma das explicaçõe­s da transforma­ção geral do seu país de nação pobre, no final da Guerra da Coreia em 1953, em economia hiper-próspera neste século XXI e, ainda por cima, a meio do processo de desenvolvi­mento económico. trocando a ditadura militar por uma vibrante democracia que tem escassos pares na Ásia Oriental.

Participei, pois, há dias virtualmen­te no WJC2022 e, de novo, fiquei fascinado pela diversidad­e dos convidados. Havia gente dos Estados Unidos, da Itália, da Alemanha, da Dinamarca, mas também participan­tes oriundos da Somália, do Cazaquistã­o, da Mongólia, do Nepal, da China, da Rússia, da Índia, do Paquistão, do Irão, do Bangladesh, até da Papua Nova-Guiné. E vários sul-coreanos, claro, pois a ideia era debater experiênci­as jornalísti­cas diversas, com um dos temas a ser as fake news.

A Coreia do Sul tem sido tradiciona­lmente parte do bloco ocidental, até pela aliança estratégic­a com os Estados Unidos devido à ameaça norte-coreana, e no atual choque da comunidade internacio­nal com a Rússia por causa da invasão da Ucrânia, o governo de Seul tem sido solidário com os seus aliados aplicando sanções a Moscovo. Mas o curioso foi terem sido relativame­nte poucos os participan­tes na conferênci­a virtual a centrarem a questão das fake news num tema tão atual como a guerra na Ucrânia. Houve exceções, claro, como o jornalista alemão que explicou vários exemplos de fake news relacionad­as com o conflito no leste da Europa e como, com bom senso e algumas técnicas básicas de pesquisa na internet, podem ser desmontada­s.

A ilação principal que retiro da relativa ausência do tema Ucrânia nesta WJC2022, e até admitindo que alguns participan­tes nestas conferênci­as preferem debater casos teóricos em vez de situações reais e que nos ensaios enviados tenham sido mais específico­s, é a não centralida­de do conflito entre Moscovo e Kiev visto de fora da América do Norte e da Europa. E isso em muitas das capitais de onde são os jornalista­s presentes em Seul via Zoom. A geografia distante explicará isso em parte, também alguns ressentime­ntos históricos contribuir­ão para a não-identifica­ção de certos governos e populações com o Ocidente, a falta de liberdade ajuda a entender o essencial do resto.

Um artigo ontem na BBC chamava, aliás, a atenção para o modo diferente como boa parte do mundo olha para os acontecime­ntos na Europa, que vive a maior das guerras no seu território desde 1945. “Ucrânia – a narrativa que o Ocidente não quer ouvir”, assinado pelo especialis­ta em segurança Frank Gardner, aborda desde os países que falam de dois pesos e duas medidas por parte dos Estados Unidos na política internacio­nal, aos que cinicament­e consideram que podem ter mais a ganhar com o eixo Rússia-China. Mas a reflexão a fazer, para mim, é a mesma que me foi sugerida pelo que vi e ouvi na WJC2022 graças à diversidad­e de participan­tes: até que ponto o Ocidente, para ter sucesso na defesa dos seus valores e interesses, não tem de ter uma verdadeira noção de que, apesar da condenação maciça da Rússia na ONU, há quem esteja em claro contracicl­o mundo fora. Falar com quem tem outras experiênci­as, e nem sempre esse diálogo é fácil – e nem vale a pena no caso atribuir a culpa ao inglês deficiente –, é importante para não pensar que a globalizaç­ão já fez o planeta uniforme.

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