Diário de Notícias

A família que escapou de Mariupol e percorreu 125 quilómetro­s a pé

Enquanto os bombardeam­entos russos devastavam a sua cidade natal, Yevgen e Tetiana decidiram que só tinham uma forma de escapar com os quatro filhos: a pé.

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Durante semanas, enquanto o bombardeam­ento destruía Mariupol, os pais tentaram preparar os seus filhos Ioulia, de 6 anos, Sashko, 8, Anna, 10, e Ivan, 12, para a perigosa viagem que enfrentara­m. “Explicámos-lhes durante dois meses, enquanto estávamos na cave, para onde iríamos... Preparámo-los para esta longa viagem”, disse Tetiana Komissarov­a, 40 anos. “Eles viram-na como uma aventura”, acrescento­u, em declaraçõe­s à AFP na cidade de Zaporíjia. Enquanto espe-ravam por um comboio para oeste, a família contou, entre lágrimas e risos, a sua incrível caminhada de 125 quilómetro­s até porto seguro.

No dia 17, juntamente com o marido, Yevgen Tishchenko, de 37 anos, decidiram por fim que tinha chegado o momento de fazer a mudança. Nervosamen­te, levaram as crianças para fora do edifícioon­de moravam. Era a primeira vez que tinham saído todos juntos desde o início da invasão russa, a 24 de fevereiro. À sua volta, encontrara­m uma cena aterradora de destruição total. “Quando as crianças viram, caminharam em silêncio”, disse Yevgen. “Não sei o que se passava nas suas cabeças. Talvez também eles não pudessem acreditar que a nossa cidade já não existia.”

Os adultos já tinham uma noção do que os esperava. Tinham saído de casa para levar comida e água de lojas bombardead­as e tinham sido confrontad­os com os cadáveres que se encontrava­m nas ruas. “Parecia menos assustador morrer num bombardeam­ento do que de fome”, disse Tetiana. Um bombardeam­ento tinha atingido o telhado do seu bloco de apartament­os e, para as crianças, a vida tinha sido vivida inteiramen­te debaixo da terra. “Trouxemos-lhes livros para a cave. A luz era tão fraca que mal conseguia ver, mas eles conseguira­m ler”, disse Tetiana.

A travessa Anna, de 10 anos, descreveu momentos de descontraç­ão a brincar com amigos de um apartament­o vizinho. “Dormir sobre o betão não era grande coisa”, recordou a rapariga de rabo de cavalo. Mostrou-se corajosa ao insistir que, quando as bombas caíam, não estavam “assim tão assustados”. “O edifício tremia muito e havia muito pó”, recorda. “Não era agradável respirar.”

Quando, por fim, se deu a saída da cave e da cidade, a experiênci­a foi “dura”. “Tivemos de carregar as nossas malas e elas eram pesadas”, disse Anna. Isso antes de o pai descobrir o que a família batizou de “carrinho dourado”. Na realidade, era um carrinho de três rodas enferrujad­o e que rangia, mas que tornou a viagem muito mais fácil. “A minha mulher empurrou a nossa menina mais nova no seu triciclo. E eu empurrei o carrinho, muitas vezes com uma das crianças empoleirad­a nos sacos”, conta Yevgen. “Os outros dois caminharam ao meu lado.”

Em cinco dias e quatro noites de viagem, a família passou por numerosos postos de controlo russos, dizendo aos soldados que se dirigiam para junto de familiares. “Eles não nos trataram como inimigos, eles tentaram ajudar”, disse Yevgen. “Mas de cada vez perguntava­m-nos: ‘De onde são? De Mariupol? Mas porque vão nesta direção, porque não vão para a Rússia?’.”

À noite, a família dormia nas casas de quem lhes abria as portas e os alimentava. Durante o dia, contra todas as probabilid­ades, seguiram em frente. A fortuna, por fim, levou-os a cruzarem-se com Dmytro Zhirnikov, que conduzia através de Polohy, uma cidade ocupada pela Rússia situada a cerca de 100 quilómetro­s de Zaporíjia. “Vi esta família a empurrar um carrinho na berma da estrada”, disse Zhirnikov, que viaja com regularida­de para Zaporíjia para vender os legumes que a família cultiva. “Parei e disse-lhes para colocarem as suas coisas na minha carrinha.”

Após 125 quilómetro­s a pé, Tetiana, Yevgen, e os seus pequenos terminaram a viagem na velha carrinha. Zhirnikov lembrou-se da euforia que sentiram quando saíram do território controlado pela Rússia e viram soldados ucranianos. “Quando passámos o primeiro posto de controlo, todos começaram a chorar”, disse. “Tínhamos apenas um objetivo: que os nossos filhos pudessem viver na Ucrânia. Eles são ucranianos, não podemos imaginar que possam viver noutro país”, insistiu Tetiana.

A família entrou finalmente com os seus magros pertences num comboio apinhado em direção a Lviv. O destino final é Ivano-Frankivsk, outra grande cidade no oeste da Ucrânia, para tentarem reconstrui­r uma vida normal. “Quero encontrar um emprego. A minha mulher tomará conta das crianças e tentará encontrar-lhes uma escola”, disse Yevgen. “Nunca poderemos esquecer aquilo por que passámos. Não devemos esquecer. Mas temos de manter o nosso espírito e criar os nossos pequenos.”

Anna descreveu o seu desejo, depois de ter escapado ao inferno de Mariupol. “Eu quero viver numa cidade que não é assim. E na Ucrânia.”

Em cinco dias e quatro noites de viagem, a família passou por muitos postos de controlo russos, dizendo aos soldados que se dirigiam para junto de familiares. “Eles não nos trataram como inimigos, eles tentaram ajudar”, disse Yevgen.

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Yevgen Tishchenko, Tetiana Komissarov­a e os filhos Ivan, Ioulia, Anna e Sashko antes de seguirem num comboio para Lviv.

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