Cristina Robalo Cordeiro “Vivemos no reino da uniformidade, não sendo a diversidade senão um embuste publicitário”
CICLO Diversidade e Diálogo: uma bela ilusão? é o título da primeira conferência do ciclo “Diversidade Cultural para o Diálogo e o Desenvolvimento” organizado pelo Instituto de Altos Estudos da Academia das Ciências de Lisboa. A palestra de Cristina Robalo Cordeiro, catedrática da Faculdade de Letras de Coimbra, pode ser vista esta segunda-feira às 18.00 por Zoom.
Diversidade numa sociedade moderna significa o quê? Deveria significar liberdade. Mas acontece que vivemos no reino da uniformidade, não sendo a diversidade senão um embuste publicitário. É a publicidade e, atrás dela e com ela, todos os interesses comerciais que querem fazer-nos acreditar, que modernidade e diversidade formam um casal feliz. Ora, as “united colors” da Benetton são um slogan mercantil e não podem pretender ser emblema de um pluralismo autêntico. Henry Ford era mais sincero quando dizia, falando de automóveis, que aceitava que fossem de todas as cores, desde que fossem pretos! E, para dizer a verdade, isto não é o mais grave: há uniformizações muito mais perniciosas. Já nos anos 20, evocando o maquinismo, o filósofo Bergson escrevia: “Censuravam-se os americanos por usarem todos o mesmo chapéu. Mas a cabeça deve passar antes do chapéu. Autorizai-me a que possa mobilar a minha cabeça segundo o meu gosto próprio e aceitarei para ela o chapéu de toda a gente”. A verdadeira diversidade é a dos espíritos!
Essa diversidade torna mais fortes as sociedades ou há limites para essa diversidade?
A diversidade não faz imediatamente a união. Se a diversidade é o dado – e pensamos logo na diversidade das cores da pele e dos costumes –, a harmonia é uma conquista, resultando a aceitação do outro de todo um trabalho de educação. Sendo a diversidade, para mim, um sinónimo de liberdade, os seus limites são os do domínio da liberdade que termina no exato ponto em que choca com a de outrem. Uma diferença que não aceitasse a diferença do vizinho contradizer-se-ia. Uma ética da diversidade obriga ao respeito do outro, à tolerância e à compreensão mútua. A diversidade fomenta o diálogo ou ela só existe por haver antes dela o diálogo que a permitiu?
O verdadeiro diálogo – que não é a simples conversação e ainda menos o “chat” – é uma construção feita a dois, implicando sinceridade e boa vontade. É um trabalho discursivo. Podemos dizer que a diversidade nasce do diálogo, na medida em que é na linguagem que a diferença se exprime em plenitude, com as suas nuances e subtilezas. E é aqui que intervém a questão das línguas ditas naturais. Como falar seriamente de diversidade cultural hoje, num tempo em que, na nossa sociedade globalizada, nos é praticamente interdito que nos expressemos senão em inglês? A diversidade linguística é consubstancial à diversidade cultural. Este é um obstáculo ainda intransponível, e que assim permanecerá enquanto a tecnologia não tiver encontrado uma solução que torne perfeita a tradução simultânea.
Há algum tipo de diversidade que mais dificilmente seja funcional, por exemplo a diversidade religiosa? Coloca de novo a questão do diálogo pondo o dedo numa ferida incurável. O diálogo inter-religioso só pode existir entre mulheres e homens de boa-fé e de boa vontade, mas também conhecedores da história da sua própria crença e da dos outros, dito de outra maneira, capazes de relativizar, senão o Absoluto, pelo menos o valor das suas expressões e manifestações. Vivi alguns anos no Magrebe e não posso estar mais de acordo com os padres e os imãs que, em caso de casamento misto, recomendavam aos jovens casais que nunca falassem de religião. Aqui, a moral deve levar a melhor sobre a teologia: a moral une, a teologia separa. E não esqueçamos, no próprio domínio do ecumenismo, isto é, do diálogo entre cristãos, o pomo de discórdia que constitui o que Freud denomina, em Malaise dans la Culture, “o narcisismo das pequenas diferenças”, de onde surgiram as terríveis guerras de religião no século XVI. Diversidade e crioulização: semelhança e diferença? Interesso-me pelo conceito de crioulização desde que li, recentemente, o Manifesto, de Mário Lúcio Sousa, na sequência de um encontro em Coimbra. Para ele, a crioulização é um processo dinâmico – ele diz dialético – de harmonização das diferenças. Trata-se não de fazer desaparecer a diversidade (racial, étnica, religiosa…), mas de a assumir em si, isto é, de se converter à diversidade, tornando-nos, tanto quanto possível, o outro. Há uma “poética da Relação” que, bem compreendida e, sobretudo, bem praticada, poderia mudar a face do mundo. É uma utopia, ou, se quisermos, um rejuvenescimento da mensagem cristã pelo budismo, sem referência a uma transcendência divina. A crioulização é, assim, uma tentativa de resposta ao problema humano dilacerante da diversidade. Não haverá paz universal senão na concórdia dos corações: sem a fraternidade, a diversidade permanecerá sempre conflitual. Mário Lúcio Sousa, enquanto cabo-verdiano, provindo da colonização, aliando no seu ser biológico o sangue (e os genes) do carrasco e da vítima, propõe-nos uma sageza difícil, mas, no mundo louco que é o nosso, não há salvação senão na sageza, numa sageza nova, adaptada ao nosso tempo… e na crioulização de cada um e de cada uma.
“Vivi alguns anos no Magrebe e não posso estar mais de acordo com os padres e os imãs que, em caso de casamento misto, recomendavam aos jovens casais que nunca falassem de religião”.