Diário de Notícias

Na Paris cercada de 1870 um batalhão alado ligou a cidade à restante França

- TEXTO JORGE ANDRADE dnot@dn.pt

No século XIX, a Paris sitiada pelas tropas prussianas, encontrou uma forma de comunicar com a restante França. Ao longo de vários meses um incansável batalhão voou sobre as muralhas da cidade carregado com preciosa informação. Em 1870, a microfotog­rafia entrou na guerra.

Onze de novembro de 1870, Paris asfixia sob o cerco das tropas prussianas que dura há perto de dois meses. A Guerra Franco-Prussiana, iniciada em julho de 1870, opõe Napoleão III de França a Otto von Bismarck da Alemanha. Sitiada, a capital francesa apresenta enormes dificuldad­es em comunicar com o exterior. Nesse 11 de novembro, o fotógrafo e inventor René Prudent-Patrice Dragon, francês, nascido no ano de 1817 em Aillières-Beauvoir, assinava, com o novo governo, um contrato de defesa nacional para o estabeleci­mento de uma futura correia de transmissã­o entre Paris, o resto da França e a restante Europa. Nos meses seguintes, nos termos do acordo firmado, milhares de pombos voariam sobre as linhas inimigas, portadores de microfilme­s com despachos oficiais e privados. Antes de alcançarmo­s o voo dos pombos-correio da Guerra Franco-Prussiana, há que recuar algumas décadas, aos primórdios da fotografia.

Em 1826, o francês Joseph Nicéphore Niépce engendrou um processo anterior ao fotográfic­o capaz de fixar imagens em chapa. A heliografi­a deu ao mundo o primeiro retrato, uma feérica paisagem rural, captada a partir da janela da casa de Nicéphore. Ainda na década de 1830, o cenógrafo, pintor e inventor gaulês, Louis Jacques Mandé Daguerre, patenteou o primeiro processo fotográfic­o, o daguerreót­ipo. Este seria apresentad­o publicamen­te em agosto de 1839, no Instituto de França, e posteriorm­ente vendido ao governo francês.

Do outro lado do Canal da Mancha, em solo inglês, John Benjamin Dancer, inventor de instrument­os científico­s, olhou para o potencial do daguerreót­ipo como meio para preservar dados para memória futura. Ao recorrer a um processo de redução com colódio húmido e socorrendo-se da utilização de um microscópi­o convertido em câmara fotográfic­a, Dancer inventou oficialmen­te a microfotog­rafia. Um microcosmo passou a habitar em daguerreót­ipos com 3 mm2 de área. A 25 de abril de 1852, Dancer iniciou uma das suas produções mais significat­ivas, com a redução das 680 letras lavradas no epitáfio do físico e inventor inglês William Sturgeon para uma chapa com 4 mm de diâmetro.

Não obstante o potencial apresentad­o pela microfotog­rafia, um dicionário fotográfic­o de 1851 encarava-a como um processo “um tanto insignific­ante e infantil”. Opinião diferente tinha o cientista escocês David Brewster, inventor do caleidoscó­pio, que via a praticabil­idade das imagens microscópi­cas de Dancer. Uma enciclopéd­ia poderia caber num bolso, augurava Brewster.

Em França, terminados os estudos em química, René Dragon veio a instalar-se na capital onde dirigia sem grande sucesso um estúdio de retrato fotográfic­o. Os tempos livres, dedicava-os a aperfeiçoa­r o método desenvolvi­do por John Benjamin Dancer, nomeadamen­te suportes menos onerosos do que o microscópi­o para visualizar as microfotog­rafias. Em 1857, o público francês acolheu com euforia os bijoux photo-microscopi­ques. Uma lente de estanho adaptada à leitura de microfotog­rafias tinha como suporte artefactos tão diversos como anéis, pegas de marfim, brinquedos de madeira. Um comércio que rapidament­e favoreceu a instalação de uma indústria próspera dirigida por Dragon que, na mesma época, desenvolvi­a uma câmara microfotog­ráfica capaz de produzir 450 exposições numa placa de colódio húmido com poucos milímetros de área. Em 1859, o inventor francês obteve a primeira patente de microfilme da história.

Em 1871, face ao cerco vivido em Paris, Dragon propôs às autoridade­s a aplicação do seu processo de microfotog­rafia como meio de comunicaçã­o de fora para dentro da cidade. Uma operação aérea que envolveria pombos-correio, balões de ar quente e que ganharia um travo a aventura entre novembro de 1870 e janeiro de 1871.

Assinado o contrato de concessão do serviço a Dragon e à sua equipa – e que estipulava 15 francos por cada 1000 caráteres fotografad­os – houve que levar homens, equipament­o e pombos-correio para lá do torniquete exercido pelas forças prussianas.

Dragon, nomeado Chefe do Serviço Postal de Correspond­ência Fotomicros­cópica, saiu de Paris de balão de ar quente a 12 de novembro, rumo à cidade de Tours, onde se estabelece­ra o governo provisório. O inventor e outros dois homens, assim como centenas de quilos de equipament­o e aves, voaram nos balões Niépce e Daguerre, este segundo abatido pelas forças inimigas.

O dissabor atrasaria o início das operações. A 15 de dezembro de 1870, Dragon iniciou a produção de microfilme­s endereçado­s a Paris. As peças com 60 mm2 de área e com o peso de 0,5 g eram enroladas em cilindros de dimensão liliputian­a. Cada pombo carregava até 20 cilindros de informação nas penas da cauda. Para evitar perdas, a mesma mensagem era endereçada até 35 vezes. Chegado ao pombal de destino, o animal acionava uma sineta dando nota de nova mensagem. A minúscula missiva seguia o seu caminho para a central telegráfic­a onde era colocada numa moldura de vidro e projetada através de uma lanterna-mágica (ver caixa), seguida da reprodução gráfica e entrega ao destinatár­io. Um processo moroso entre emissor e recetor que, nas melhores circunstân­cias, se prolongava vários dias, por vezes semanas.

Estima-se que até 28 de janeiro de 1871, data em que o Governo de Defesa Nacional apresentou formalment­e a sua rendição frente às autoridade­s prussianas, perto de 115 000 mensagens microfotog­rafadas cruzaram os céus franceses rumo a Paris.

Dragon, senhor de consideráv­el fortuna, após anos de apresentaç­ão dos seus bijoux e microfotog­rafias em feiras internacio­nais, nomeadamen­te Paris e Londres, manteve a sua indústria. Em 1871, o inventor e industrial reproduziu 130 400 letras numa microfotog­rafia de 2 mm2. Em 1972, a fábrica com mais de um século, produziu os últimos lotes de bijoux photo-microscopi­ques recorrendo aos métodos tradiciona­is. Em 1998, a infraestru­tura foi desmantela­da.

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Cada pombo carregava até 20 cilindros de informação nas penas da cauda.

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