William Hurt, o ator acidental
Falecido no passado mês de março, a uma semana de completar 72 anos, William Hurt é homenageado pela Cinemateca Portuguesa, em Lisboa, com um ciclo que recupera alguns dos seus melhores papéis. Quase todos eles da década de 80, quando a sua presença era quanto bastava para um filme valer a pena.
Louro de olhos azuis, por vezes muito abertos, um sorriso que não se desatava completamente, um cansaço charmoso na postura e uma voz disciplinada que trazia a urgência do silêncio para ficarmos só com a intensidade mansa daquele corpo, quase sempre à beira de um gesto inesperado. A presença jovem de William Hurt é tão marcante que a mera menção do seu nome tem o poder de nos transportar para a essência de um tempo – os anos em que se impôs no grande ecrã, invariavelmente como leading man. São sobretudo esses anos 80 que a Cinemateca recupera num ciclo em memória do ator americano, a arrancar amanhã com Noites Escaldantes, de Lawrence Kasdan, um dos exemplos maiores do seu erotismo desarmado.
Hurt (com este apelido certeiro que também sinaliza a eterna beleza “magoada” do seu rosto) morreu no passado dia 13 de março, aos 71 anos, deixando para trás uma longa filmografia, nem sempre na mó de cima. Como já se referiu, a década de 80 foi definitivamente a sua era dourada individual, com uma estreia impressiva em Viagens Alucinantes (1980), de Ken Russell, na pele de um cientista em rota de delírio, seguido de títulos que lhe valeram nomeações para Óscares, como Filhos de Um Deus Menor (1986), de Randa Haines, Edição Especial (1987), de James L. Brooks, e O
Beijo da Mulher-Aranha (1985), de Héctor Babenco, tendo sido logo com este primeiro que venceu a sua única estatueta da Academia. Pelo meio, as colaborações com Kasdan em três filmes cruciais agarraram toda uma geração de espectadores: para além de Noites Escaldantes (1981), Os Amigos de Alex (1983) – onde se supera numa cena divertida e melancólica de autoentrevista – e O Turista Acidental (1988), qualquer deles a evidenciar o seu carisma, a dado momento com os traços venustos da juventude em conflito com os sinais ainda não muito pronunciados da maturidade.
Foi no início dos anos 90 que a carreira deste outrora estudante de Teologia, formado em Interpretação na Juilliard School, começou a perder o gás. E parte dessa desaceleração pode estar ligada à rápida ascensão. “No instante em que me deram o Óscar, pensei: raios, o que é que faço agora? Como é que vou entrar numa sala e ter outro ator que confie em mim?”, confessou William Hurt numa das raras entrevistas que deu, em 1994, ao Los Angeles Times. Por essa altura já era assunto mediático o seu distanciamento das lógicas de Hollywood, que de resto nunca foi o sonho deste ator com raízes no teatro – o cinema foi um romance acidental e algo complexo. Hurt não era feliz na condição de “pessoa famosa”, e a
sua tentativa de recato público acabou por se confundir com a reputação de ator “difícil” (curiosamente, no dito artigo a jornalista escreve: “Ao contrário dos avisos de que perguntas pessoais podem inspirar uma ‘luta’ com o ator reservado, Hurt é gentil e relaxado quando recebe alguém pela primeira vez”).
A sua questão é de facto a inteligência da composição das suas personagens – mesmo as mais “simples” –, onde se destaca, apesar de se ir esfumando ao longo dos anos o protagonismo antigo. Para o público jovem, Hurt pode ser apenas o general Thaddeus Ross do universo Marvel...
De sex symbol a vilão
Com oito filmes para ver ou rever nos próximos dias, a Cinemateca propõe um regresso à matéria nostálgica do percurso do ator, mas também um ou outro título mais esquecido. Body Heat, que em português se chamou Noites Escaldantes, marca então o início do ciclo com o simbolismo tórrido da dupla William Hurt/Kathleen Turner – ele um advogado ingénuo e de carne fraca, ela (na estreia avassaladora de Turner) uma femme fatale que arranja o cúmplice perfeito para levar avante os seus planos de matar o marido rico. Lawrence Kasdan ressuscitou aqui a alma moribunda do noir e misturou atmosfera, sexo e altas temperaturas na expressão inatingível da juventude (lá está) dos corpos destes dois.
O outro filme programado de Kasdan é O Turista Acidental, que reúne de novo Hurt e Turner, mas num contexto em tudo diferente de Body Heat. O seu protagonista emocionalmente alheado – um escritor de guias de viagem para quem não gosta de viajar – contém aquele laconismo tristonho de que só Hurt parecia ser capaz, sugerindo uma imensidão de vida
interior com gestos mínimos. Esta é uma personagem cujo casamento não resiste à morte trágica de um filho, mas com direito a uma segunda oportunidade (Geena Davis, em modo excêntrico). É também em O Turista Acidental que encontramos um dos cães mais especiais do cinema americano, nada a ver com o de Os Olhos da Testemunha (1981), que se atira ao dono com uma agressividade ensaiada. Este título, do britânico Peter Yates, surge no ciclo como uma raridade, sendo um dos papéis favoritos do próprio Hurt, apesar de modesto: um zelador de um prédio caidinho por uma pivô da televisão local (Sigourney Weaver), que depois de um assassínio nesse edifício chega à fala com ela...
E por falar em pivôs, Broadcast News, ou Edição Especial, traz mais um dos grandes momentos do ator, ao lado de Holly Hunter e Albert Brooks, numa afinadíssima reflexão, mascarada de comédia romântica, sobre a ética jornalística quando se passa a fronteira da informação séria para tocar o entretenimento televisivo. Ainda dos anos 80 não podia faltar O Beijo da Mulher-Aranha. Mesmo não sendo um filme que envelheceu bem, é inequivocamente uma interpretação antológica de Hurt (a do Óscar) na pele de um amável prisioneiro gay que conta histórias – recriadas como películas antigas – ao seu companheiro de cela (Raul Julia), um preso político com pouca paciência para romantismos mas que acaba envolvido pela sensibilidade do narrador. Antes deste, William Hurt foi um inspetor da polícia russo em O Mistério de Gorky Park (1983), de Michael Apted, filmado numa falsa Moscovo (ou seja, Helsínquia), por impedimento do governo do Kremlin, que não alinhou com um retrato de corrupção do KGB – terá a sua primeira exibição na Cinemateca. As cartas fora do baralho dos eighties são duas. Por um lado,
Smoke – Fumo (1995), de Wayne Wang, um belo objeto independente que reúne personagens de Paul Auster à volta de uma tabacaria em Brooklyn, com Hurt a dar a gravidade e empatia necessárias a um romancista de luto; figura como uma pequena pérola dos seus papéis secundários na fase mais apagada da carreira. Por outro, e num registo radicalmente distinto, Uma História de Violência (2005), obra-prima de David Cronenberg que conta com oito minutos de uma performance genial de Hurt enquanto líder criminoso com ânsias de estrangular o irmão. Valeu-lhe uma última nomeação para o Óscar.
Foi no início dos anos 90 que a carreira deste outrora estudante de Teologia, formado em Interpretação na Juilliard School, começou a perder o gás. E parte dessa desaceleração pode estar ligada à rápida ascensão. “No instante em que me deram o Óscar, pensei: raios, o que é que faço agora?”