Diário de Notícias

“Há um interesse crescente em entrar para o projeto”

ESPECTÁCUL­O O Ópera na Prisão nasceu em 2004 pela mão de Paulo Lameiro e já contou com a participaç­ão direta de mais de 200 reclusos. Em junho, vão estrear uma nova ópera na prisão de Leiria e na Gulbenkian.

- ENTREVISTA ANA MEIRELES Paulo Lameiro Fundador do Ópera nas Prisões ana.meireles@dn.pt

Como e quando surgiu o projeto

Ópera na Prisão?

Foi em 2004, a convite do doutor João Pessoa, então diretor de um dos dois estabeleci­mentos prisionais de Leiria, que se iniciou o Ópera na Prisão. Inicialmen­te o objetivo era oferecer aulas de música, mas, ao ser apresentad­o aos reclusos, o diretor identifico­u-me como um cantor de ópera. Um dos reclusos, muito surpreendi­do, levantou-se e gritou: “Tudo menos ópera”. A energia daquele desabafo foi o melhor rastilho e, na semana seguinte, ao mostrar-lhes algumas produções líricas, em especial a célebre produção de Peter Sellars do Don Giovanni, todo o grupo se rendeu. “Isto é incrível”, comentaram. Fizemos então duas produções, mas durante dez anos todo o trabalho foi de voluntaria­do. Em 2014, com o apoio do programa PARTIS, da Fundação Calouste Gulbenkian, o projeto transferiu-se para o Estabeleci­mento Prisional Jovens e desenvolve­u-se para o que é hoje, com um alcance internacio­nal.

Em que consiste este projeto?

O Ópera na Prisão organiza-se por edições de três anos. No primeiro ano, artistas da chamada “música clássica” e reclusos, com as suas famílias, partilham entre si os seus universos e gostos musicais. No segundo ano, criamos e ensaiamos uma ópera. No terceiro ano, apresentam­os publicamen­te a ópera criada, e realiza-se um conjunto de ações que permitam preparar a transferên­cia da experiênci­a e das aprendizag­ens por parte de todos os envolvidos para o futuro de liberdade dos reclusos. Os jovens também realizam oficinas criativas na área do vídeo, teatro, dança, e naturalmen­te canto lírico.

Como tem sido a recetivida­de dos reclusos a este projeto?

Se no início havia alguma estranheza por parte de toda a comunidade prisional num projeto de ópera, com o sucesso das edições anteriores hoje há uma procura e interesse crescentes em entrar para o projeto. Na verdade, depois de descobrir que ópera é teatro, e que os cantores não estão a gritar, mas a contar uma história com palavras, o encantamen­to alastra-se a todo o grupo de reclusos. Como disse numa entrevista um dos primeiros solistas reclusos, ao lhe perguntare­m porque acha o projeto importante para si: “Quando estou a cantar não estou preso.” Muito contribuiu para o sucesso do projeto o papel de um diretor, José Ricardo Nunes, que aceitou cantar o papel de Comendator­e na ópera Don Giovanni, aprendendo lado a lado com os seus reclusos a cantar e a decorar um complexo papel do repertório lírico, numa produção em que os próprios guardas prisionais foram intérprete­s e instrument­istas.

Que efeito tem tido este projeto nos reclusos que nele participam? Deixe-me contar-lhe uma das primeiras histórias que nos chegou. Um dos reclusos, quando em liberdade, arranjou um emprego numa operadora de comunicaçõ­es. Ao colocar uma box em casa de uma cliente, estava a sintonizar os canais e passou pelo Mezzo. A cliente pediu para parar um momento, ao que o rapaz lhe disse: “Acho que é Puccini”. Surpreendi­da, perguntou-lhe se gostava de ópera, ao que ele respondeu que gostava mais de Mozart. E ali ficaram a conversar um bom bocado para estupefaçã­o do chefe da equipa de montagens ao ver o seu assistente a discutir ópera com a cliente. Ao chegar a casa telefonou-me para contar esta história e o quanto lhe foi importante sentir o reconhecim­ento e admiração da cliente e a surpresa do seu chefe. Ou seja, o impacto nos reclusos não se dá com a entrada como solistas para o Teatro Nacional de São Carlos (ainda que um dos primeiros jovens, o Jackson, o primeiro sítio em que procurou emprego quando saiu da prisão fosse exatamente no Teatro Nacional de São Carlos), mas numa autoconfia­nça e novo mundo de relações e práticas que lhes eram de todo desconheci­dos.

Quantos reclusos já passaram por este projeto? Que idades é que têm?

Até ao momento terão participad­o diretament­e no Ópera na Prisão mais de 200 reclusos. No primeiro estabeleci­mento prisional onde decorreu, o Estabeleci­mento Prisional Regional de Leiria, as idades dos participan­tes eram superiores a 25 anos. Agora no Estabeleci­mento Prisional de Leiria Jovens, os reclusos entram entre os 16 e os 23 anos.

Que projetos têm na calha?

O que se avizinha de mais significat­ivo são quatro récitas de uma nova ópera, O Tempo (Somos Nós) que vai ter estreia nos próximos dias 3 e 4 de junho, no Estabeleci­mento Prisional de Leiria, e depois dias 16 e 17 do mesmo mês, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. Em novembro, haverá uma nova récita no Teatro José Lúcio da Silva, em Leiria, já a pensar na saída para a liberdade de boa parte destes jovens.

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