Hacks: a hora das comediantes
A relação complexa entre uma comediante veterana e a sua “aprendiza” compõe uma das séries mais bem-sucedidas da HBO Max. A segunda temporada de Hacks chega esta sexta-feira à plataforma de streaming e traz de volta a multipremiada personagem de Jean Smar
Quando a veterana Deborah e a millennial Ava se encontram, o choque geracional é tão grande que a declaração de ódio à primeira vista só pode dar certo nos episódios seguintes. E a razão é simples: os defeitos de ambas refletem-se mutuamente, mas elas também têm plena consciência do talento uma da outra.
Quando a HBO Max ficou acessível em Portugal no passado mês de março, uma das séries que já brilhava no seu catálogo era Hacks. Com três Emmys, dois Globos de Ouro e um SAG (Screen Actors Guild) – todos estes prémios contemplando a atriz principal, Jean Smart –, a aposta parecia segura mas revelou-se ainda melhor. Estamos perante muito boa escrita, que não significa necessariamente comédia de partir a louça toda, mas sim um humor calibrado, com tendência para tocar as notas graves dos sentimentos mais humanos. Digamos que, aqui, a lágrima de comoção espreita na esquina do riso e vice-versa. Um exercício de equilibrismo não muito óbvio e só possível com atrizes capazes de alcançar sem esforço tons diferentes na mesma cena.
Em primeiro lugar está, claro, Jean Smart, que interpreta DeborahVance, uma lenda da comédia stand-up estabelecida num casino em LasVegas cujos espetáculos, embora não dececionem os fãs antigos, já não enchem a sala como outrora.
Este é o mote da primeira temporada de Hacks (e não deixa de ser o da segunda), que mostra como, chegada àquele momento crítico da carreira em que é preciso sair da zona de conforto, Deborah não tem outro remédio senão aceitar a ajuda de uma jovem argumentista de comédia, com o objetivo de refrescar o seu número...
Senhoras e senhores, entra em cena Hannah Einbinder, na pele de Ava, que no primeiro episódio é destacada para essa missão, na vertigem do desemprego, depois de um tweet com uma piada que – em linguagem contemporânea – a “cancelou” para muita gente. Quando a veterana Deborah e a millennial Ava se encontram, o choque geracional é tão grande que a declaração de ódio à primeira vista só pode dar certo nos episódios seguintes. E a razão é simples: os defeitos de ambas refletem-se mutuamente, mas elas também têm plena consciência do talento uma da outra, mesmo quando são miseráveis na vida quotidiana. Enfim, merecem-se.
Criada por Lucia Aniello, Jen Statsky e PaulW. Downs (este último acumula o papel do manager stressado das comediantes), a série tinha tudo para cair na irrelevância dos clichés da mentoria, com duas personagens às turras e os tiques das comédias americanas sobre o assunto. Mas acontece que o humor em Hacks é usado com moderação e inteligência, levando quase sempre a verdades duras. E nessa dureza cabe também o olhar à realidade da mulher comediante, num meio onde elas têm de prestar mais provas do que eles.
Recusando-se a ficar refém do politicamente correto que afeta grande parte das séries mais recentes, Hacks chega à segunda temporada mantendo o registo que nos fez apreciar tanto a primeira: qualquer coisa como uma aptidão para oscilar entre o conforto e o desconforto, com personagens genuínas no centro e um conjunto de secundários à volta que habitam maravilhosamente a peculiar “estrutura emocional” de Deborah e Ava, na alegria e na tristeza. Neste novo capítulo, Ava está a lidar em silêncio com a asneira que fez depois de uma discussão valente com Deborah no último episódio (e não revelamos, em respeito a quem ainda vai ver a primeira temporada). Mas continua a ser o propósito de reavivar a carreira desta estrela que as põe na estrada, numa tournée pelo país em pequenas salas de espetáculo, passando por uma feira popular e um cruzeiro de lésbicas, onde Ava se sente em casa...
Renascimento de Jean Smart e novo talento Hannah Einbinder
Com uma estrela no Passeio da Fama em Hollywood adquirida há poucas semanas, pode dizer-se que, ao contrário da sua personagem em fase descendente, o percurso de Jean Smart ganhou uma segunda vida. De certa maneira, é como se já se sentisse essa necessidade de a puxar para a linha da frente na anterior minissérie Mare of Easttown, onde interpreta a mãe da detetive protagonista (Kate Winslet), roubando todas as cenas com um humor que rasga a atmosfera dramática sem pedir licença. Uma atriz que já anda nas lides televisivas, com um pezinho no cinema, há algumas décadas – destacou-se em 1986 na série Designing Woman – e cujas nomeações para Emmys nos últimos anos, com papéis secundários em Fargo, Watchmen e mesmo Mare of Easttown, são apenas indicadores de que estava na altura de dar o passo seguinte.
Se Smart é a insuperável rainha de Hacks, finalmente com uma oportunidade digna para expandir o potencial contido nas personagens de suporte que a levaram a este ponto, importa não desconsiderar, por outro lado, a descoberta de Hannah Einbinder. Filha de Laraine Newman, um dos nomes do elenco fundador de Saturday Night Live, ela é, na vida real, uma comediante de stand-up que se estreou nesta série como atriz. Ou para sermos mais precisos: Hacks veio a ser o seu ganha-pão durante os bloqueios da pandemia, quando os espetáculos a solo em nightclubs tiveram de ser interrompidos. E para se perceber ainda melhor este caso sério de talento: com 23 anos, Einbinder tornou-se a mais jovem comediante a apresentar um número próprio no programa The Late Show de Stephen Colbert, que mais tarde a entrevistou já na qualidade de atriz.
Também por isto, não se sente uma nota em falso na química e no respeito mútuo das atrizes que dão alma aos episódios de Hacks. A veterana encarnada por Jean Smart pode trazer a Hannah Einbinder certas memórias da mãe, e do que significa ser filha de uma comediante, mas a sua dinâmica maternal nunca chega a sê-lo completamente – há uma independência intrínseca que faz brilhar cada uma delas, para além do espantoso dueto.