Semana de quatro dias pode “criar mais problemas de produtividade ao país”, avisa Durão Barroso
Antigo presidente da Comissão Europeia faz o retrato de Portugal e do mundo com alertas para as dificuldades que se avizinham. E deixa pistas para que o caminho seja menos difícil.
Político e gestor, antigo primeiro-ministro e presidente da Comissão Europeia e atual presidente da GAVI, José Manuel Durão Barroso foi um dos oradores convidados para o evento Estado da Nação 2022, sobre Educação, Emprego e Competências em Portugal, da Fundação Farfetch, realizado ontem, e falou ao DN. Deixou alertas sobre o que aí vem em Portugal e no mundo.
Começando pelo exterior: “Putin é um autocrata que quer manter o poder. Tem um sentimento ultranacionalista de frustração, porque a Rússia perdeu o poder que tinha”.
Além disso, “a Rússia tem sido um desastre do ponto de vista económico. Putin está a usar as armas que tem e nega a Ucrânia como país independente”, diz. “Conheci e falei com Putin e, na altura, disse-me que a Ucrânia foi uma criação artificial da União Europeia”, relata.
Claramente, para Barroso, “Putin tem dificuldade política, intelectual e emocional em reconhecer a independência da Ucrânia”.
A guerra é um enorme fator de instabilidade. Questionado sobre como é que tudo isto pode acabar, o antigo presidente da Comissão Europeia admite: “É minha preocupação e não estou a ver solução”. Considera que mesmo com um cessar-fogo “a tensão iria continuar” e que a “adesão da Finlândia à NATO vai provocar ainda maior tensão”.
Conflito “será longo”
Para José Manuel Barroso, “temos de estar preparados para um conflito longo”. E quanto ao risco de alastramento do conflito à China, entende que este país “não está nada satisfeito com esta situação”.
“Conheço a China e [o seu presidente] Xi-Jinping, e os chineses gostam de controlar o tempo, não gostam de surpresas”. Daqui em diante, “haverá maior dependência da China-Rússia, mas a China não está satisfeita com esta situação”.
Barroso recorda que “já antes havia tensão com os Estados Unidos e isso preocupa” os chineses, no sentido de uma eventual “separação do mundo ocidental em relação à China e Rússia. Vivemos hoje um momento semelhante à Guerra Fria. Para o planeta não nos interessa ter o mundo fraturado. Precisamos, sim, de uma ordem natural”.
“Águas turbulentas” dos juros
A inflação “é um problema estrutural e não conjuntural”, considerou Barroso. “A inflação já estava em pressão, incluindo na energia, mesmo antes da invasão [da Ucrânia]. No fundo, a pandemia acelerou as tendências que já existiam”.
O dirigente está preocupado com a forma como as famílias e empresas portuguesas vão enfrentar este problema, bem como o da subida das taxas de juro. Não diria que estamos a viver uma “desglobalização ou reversão”, mas num novo tipo de globalização com mais fricção e incerteza. “Estamos numa situação grave: a situação da energia está fora controlo e a transição climática terá muitos custos. Tudo isto tem efeitos que podem levar a uma recessão, é um cenário possível”, admite.
A partir deste ano, “temos de saber navegar em águas muito mais turbulentas do que até aqui”, diz.
A Educação é outra das suas preocupações. “A incerteza traz a necessidade de formar com competências e de adaptação para ao longo da vida. É preciso um reforço de competências, sobretudo na digitalização e a Comissão Europeia foca-se nisso e bem. Matemática e Ciências são áreas em que é preciso apostar, mas eu sou de humanidades e creio que também é preciso investimento nessas áreas, para que se saiba analisar e criticar o mundo”, diz.
“A inveja e a pequenez”
O dirigente diz que “os portugueses quando estão lá fora são bons, o problema está na qualidade das políticas públicas que criam desigualdade. Quem tem poder não está interessado, por vezes, no desenvolvimento. As chamadas elites devem deixar privilégios e corporações”.
E atira: “Em Portugal, há obstáculos culturais ao desenvolvimento, como a inveja e a pequenez.”
O país tem um “problema sério quando vê países que estavam atrás a passar à frente em PIB per capita. E isso explica-se por erros de políticas públicas. É motivo para os políticos verem o que se pode fazer para que Portugal não se deixe ficar.”
As notícias relativas ao estado da Saúde também fazem soar alarmes. Hoje, “vejo mal a descentralização na Saúde, porque não há uma verdadeira descentralização”, diz.
Para o antigo primeiro-ministro, há mesmo “um inaceitável centralismo em Lisboa”. A solução? “O governo e o Parlamento, também o Presidente da República, conseguirem um consenso nacional de avançarem no sentido de verdadeira descentralização”.
“Prematuro” semana de 4 dias
Ao nível do emprego, sobre a semana de quatro dias, “julgo ser prematuro falar nisso no nosso país. O mais importante não é quantidade, mas a qualidade do trabalho num país com problemas de produtividade. Se ainda reduzimos mais o tempo de trabalho, vamos ter um problema maior na produtividade”.
Defende, antes, “a flexibilidade , o que foi acelerado com a pandemia. Agora dar uma imagem de trabalhar menos não me parece sinal adequado”, conclui.
No raios-X ao Estado da Nação, Durão Barroso põe o dedo em mais outras feridas. “Portugal tem outros dois problemas: tem uma justiça lenta e uma justiça lenta acaba por não ser justiça; e tem uma fiscalidade que não atrai talento, bem como não nos permite dar o salto para uma dimensão maior. Veja-se o que aconteceu com algumas startups que passaram as suas sedes para outros países”.