O Rei do Rock n’Roll é pop BIOPIC
Elvis é uma fábula sobre alguém chamado Elvis que pode não ser o Elvis Presley que todos conhecem. É um espetáculo à frente do seu tempo de Baz Luhrmann, o australiano louco que pode fazer cinema de autor com alta voltagem em Hollyood. Em Cannes ficou fil
Ver para crer: um novo biopic de Elvis pensado para um público millenial, todo ele trinta por uma linha para não ser um filme de época. Gostando-se ou não, estamos na presença de um Baz Luhrmann em topo de forma de um estilo tão rococó como de síntese de metacinema, capaz de contar uma história a mil à hora e tentar ser visionário. O conto do Rei não tem caução moral nem quer ter, apenas deseja ser uma fatia de História da cultura pop americana. Aliás, convenhamos, a palavra “pop” é a pedra basilar desta fundação – o rock n’ roll de Elvis Presley é tratado com perlimpimpins de imaginário pop: as más-línguas proclamam ser videoclipe, quem adere percebe que é outra coisa, a demência elétrica à Baz.
No Festival de Cannes, apresentado com grande pompa fora-de-competição, dividiu para reinar. Os detratores de Baz não foram no excesso, mas houve quem ficasse estonteado pela positiva. O filme é de uma velocidade furiosa que faz jus ao ideal de fantasia de um mito. De um lado o Coronel Sanders que lança e explora o cantor, do outro o menino, o homem e o artista. Quase
sempre entre flashbacks, desvios temporais e um arraial de exaltantes batotas temporais – para esta excentricidade são sempre convocados os mais “escandalosos” anacronismos tais como rap, R&B e soul contemporânea quando o jovem Presley foge de Graceland para uma noitada em Memphis...
Aquilo que é passível de reservas passa pela narrativa em torno do Coronel, personagem à partida com cambiantes dramáticas interessantes, mas que com a caracterização de látex excessiva e o sotaque “estrangeiro” à Monty Python de Tom Hanks, resulta num certo embaraço. Torna-se daqueles casos em que passamos o tempo a querer que a narrativa volte a Elvis. Não é, de facto, o momento maior da carreira de Tom Hanks, ainda recentemente muito convincente como sobrevivente em Finch, de Miguel Sapochick, ainda disponível na Apple TV +. Mas este será o filme da revelação de um grandíssimo ator, Austin Butler, visto de relance em Era uma
Vez em... Hollywood, de Quentin Tarantino. Ele é um Elvis credível mas sem ser um mero clone. Um ator capaz de dar alma a uma personagem sempre mais próxima de uma carga de tragédia do que de glória. Butler dá a energia certa ao ícone, aqui retratado com uma voltagem capaz de abalar o espetador. O ator californiano encarna Elvis da sua juventude aos últimos dias e mesmo sem respeitar a cronologia da carreira do músico vamos sendo guiados às diversas fases da vida do homem e do músico.
No maximalismo de Baz Luhrmann cabe todo o caos que ninguém imaginava no percurso de Elvis e isso tem a sua piada. A surpresa está nesse desplante, capaz de nos mostrar como o pequeno Elvis era fã de música gospel, mas como logo no começo a sua voz ao vivo fazia qualquer mulher ficar sexualmente atraída. Um Super-Homem a cantar? A ideia é precisamente essa: Elvis lia livros de quadradinhos da Marvel e Baz quis jogar com isso: afinal de contas, este Elvis não é cópia, é apenas uma versão de super-herói: incansável, veloz e imbatível, mas também, tal como manda a regra, com vulnerabilidades e é aí que vemos como a droga, as traições do seu círculo próximo e o veneno da fama o tramam. Depois, há também tempo para olharmos de lado para o mundo que criou: a casa de Graceland, o período na Alemanha, a maneira como se apaixonou por Priscilla Presley, a sua relação com o cinema, os problemas com a lei, o vício do palco, a frustração de nunca sair dos EUA e a forma como se deixou engordar. Planam ainda a figura da mãe e o seu desaparecimento, uma certa passividade do pai e o conflito latente com o Coronel Sanders.
Filmado em cores berrantes e com um eletrizante ritmo, Elvis é um teste de cinema amplificado. E é também muito menos plástico do que Austrália e O Grande Gatsby, os “barretes” de Baz, estando mais próximo do lado radiante de Romeu + Julieta e Moulin Rouge,o que é perfeito para ilustrar os graus de perceção icónica de um país pelo seu deus maior. Daí que a experiência de colagem visual, mesmo que nunca deixe cair uma fórmula de condensação narrativa, seja um caso à parte dentro das quase três horas. Com um pouco de sorte, este é também um documento alucinogénico sobre uma ideia da América. É a abrir, é descontrolado, é louco mas tem a alma que nós queríamos que refletisse sobre Elvis Presley. Em 2022 ainda é possível ficar mais fã do King, mesmo quando se pressente que é na ilusão da biografia que está o ganho. A Warner deu luz verde a um filme perigosamente arriscado. Não foi por acaso que em Cannes Baz contou ao DN que quis mesmo fazer um filme sobre um super-herói com poderes... Neste caso, um super-herói que depois fica preso numa prisão dourada, Vegas, mas também alguém amarrado a uma fascinante iconização do seu carisma. No fim, o espetador que aguente a pedalada está já viciado naquele excesso, em todo aquele “jazz”, onde se sente um prazer do outro mundo a irromper pela diversão do raccord, pela ligação daqueles inflamantes quadros em modo de jukebox.
Aquilo que é passível de reservas passa pela narrativa em torno do Coronel, personagem à partida com cambiantes dramáticas interessantes, mas que com a caracterização de látex excessiva e o sotaque “estrangeiro” à Monty Python de Tom Hanks, resulta num certo embaraço.