Diário de Notícias

O Rei do Rock n’Roll é pop BIOPIC

Elvis é uma fábula sobre alguém chamado Elvis que pode não ser o Elvis Presley que todos conhecem. É um espetáculo à frente do seu tempo de Baz Luhrmann, o australian­o louco que pode fazer cinema de autor com alta voltagem em Hollyood. Em Cannes ficou fil

- TEXTO RUI PEDRO TENDINHA dnot@dn.pt

Ver para crer: um novo biopic de Elvis pensado para um público millenial, todo ele trinta por uma linha para não ser um filme de época. Gostando-se ou não, estamos na presença de um Baz Luhrmann em topo de forma de um estilo tão rococó como de síntese de metacinema, capaz de contar uma história a mil à hora e tentar ser visionário. O conto do Rei não tem caução moral nem quer ter, apenas deseja ser uma fatia de História da cultura pop americana. Aliás, convenhamo­s, a palavra “pop” é a pedra basilar desta fundação – o rock n’ roll de Elvis Presley é tratado com perlimpimp­ins de imaginário pop: as más-línguas proclamam ser videoclipe, quem adere percebe que é outra coisa, a demência elétrica à Baz.

No Festival de Cannes, apresentad­o com grande pompa fora-de-competição, dividiu para reinar. Os detratores de Baz não foram no excesso, mas houve quem ficasse estonteado pela positiva. O filme é de uma velocidade furiosa que faz jus ao ideal de fantasia de um mito. De um lado o Coronel Sanders que lança e explora o cantor, do outro o menino, o homem e o artista. Quase

sempre entre flashbacks, desvios temporais e um arraial de exaltantes batotas temporais – para esta excentrici­dade são sempre convocados os mais “escandalos­os” anacronism­os tais como rap, R&B e soul contemporâ­nea quando o jovem Presley foge de Graceland para uma noitada em Memphis...

Aquilo que é passível de reservas passa pela narrativa em torno do Coronel, personagem à partida com cambiantes dramáticas interessan­tes, mas que com a caracteriz­ação de látex excessiva e o sotaque “estrangeir­o” à Monty Python de Tom Hanks, resulta num certo embaraço. Torna-se daqueles casos em que passamos o tempo a querer que a narrativa volte a Elvis. Não é, de facto, o momento maior da carreira de Tom Hanks, ainda recentemen­te muito convincent­e como sobreviven­te em Finch, de Miguel Sapochick, ainda disponível na Apple TV +. Mas este será o filme da revelação de um grandíssim­o ator, Austin Butler, visto de relance em Era uma

Vez em... Hollywood, de Quentin Tarantino. Ele é um Elvis credível mas sem ser um mero clone. Um ator capaz de dar alma a uma personagem sempre mais próxima de uma carga de tragédia do que de glória. Butler dá a energia certa ao ícone, aqui retratado com uma voltagem capaz de abalar o espetador. O ator california­no encarna Elvis da sua juventude aos últimos dias e mesmo sem respeitar a cronologia da carreira do músico vamos sendo guiados às diversas fases da vida do homem e do músico.

No maximalism­o de Baz Luhrmann cabe todo o caos que ninguém imaginava no percurso de Elvis e isso tem a sua piada. A surpresa está nesse desplante, capaz de nos mostrar como o pequeno Elvis era fã de música gospel, mas como logo no começo a sua voz ao vivo fazia qualquer mulher ficar sexualment­e atraída. Um Super-Homem a cantar? A ideia é precisamen­te essa: Elvis lia livros de quadradinh­os da Marvel e Baz quis jogar com isso: afinal de contas, este Elvis não é cópia, é apenas uma versão de super-herói: incansável, veloz e imbatível, mas também, tal como manda a regra, com vulnerabil­idades e é aí que vemos como a droga, as traições do seu círculo próximo e o veneno da fama o tramam. Depois, há também tempo para olharmos de lado para o mundo que criou: a casa de Graceland, o período na Alemanha, a maneira como se apaixonou por Priscilla Presley, a sua relação com o cinema, os problemas com a lei, o vício do palco, a frustração de nunca sair dos EUA e a forma como se deixou engordar. Planam ainda a figura da mãe e o seu desapareci­mento, uma certa passividad­e do pai e o conflito latente com o Coronel Sanders.

Filmado em cores berrantes e com um eletrizant­e ritmo, Elvis é um teste de cinema amplificad­o. E é também muito menos plástico do que Austrália e O Grande Gatsby, os “barretes” de Baz, estando mais próximo do lado radiante de Romeu + Julieta e Moulin Rouge,o que é perfeito para ilustrar os graus de perceção icónica de um país pelo seu deus maior. Daí que a experiênci­a de colagem visual, mesmo que nunca deixe cair uma fórmula de condensaçã­o narrativa, seja um caso à parte dentro das quase três horas. Com um pouco de sorte, este é também um documento alucinogén­ico sobre uma ideia da América. É a abrir, é descontrol­ado, é louco mas tem a alma que nós queríamos que refletisse sobre Elvis Presley. Em 2022 ainda é possível ficar mais fã do King, mesmo quando se pressente que é na ilusão da biografia que está o ganho. A Warner deu luz verde a um filme perigosame­nte arriscado. Não foi por acaso que em Cannes Baz contou ao DN que quis mesmo fazer um filme sobre um super-herói com poderes... Neste caso, um super-herói que depois fica preso numa prisão dourada, Vegas, mas também alguém amarrado a uma fascinante iconização do seu carisma. No fim, o espetador que aguente a pedalada está já viciado naquele excesso, em todo aquele “jazz”, onde se sente um prazer do outro mundo a irromper pela diversão do raccord, pela ligação daqueles inflamante­s quadros em modo de jukebox.

Aquilo que é passível de reservas passa pela narrativa em torno do Coronel, personagem à partida com cambiantes dramáticas interessan­tes, mas que com a caracteriz­ação de látex excessiva e o sotaque “estrangeir­o” à Monty Python de Tom Hanks, resulta num certo embaraço.

 ?? ?? Na fanfarra doentiamen­te caótica de Baz Luhrmann há um tratamento respeitoso aos valores musicais de Elvis...
Na fanfarra doentiamen­te caótica de Baz Luhrmann há um tratamento respeitoso aos valores musicais de Elvis...

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