Diário de Notícias

“As boas intenções não chegam para resolver a falta de recursos no SNS”

- ENTREVISTA ANA MAFALDA INÁCIO anamafalda­inacio@dn.pt

SAÚDE É médico especialis­ta em ortopedia e traumatolo­gia no Centro Hospitalar Universitá­rio Lisboa Central, assessor da direção clínica e diretor do Centro de Responsabi­lidade Integrada de Trauma, um novo instrument­o de gestão dos hospitais, mas já foi diretor do Serviço de Urgência de São José. Tem obra publicada sobre a gestão e o futuro do SNS e diz que “a situação gravíssima que se vive” era esperada, questionan­do: “Se há unanimidad­e em todas as correntes políticas sobre a existência do SNS, porque não se faz a reforma de que ele necessita?”

“O SNS é um pilar que temos de preservar, mas não como era há 40 anos. Temos de o reformar e adaptar à modernidad­e. Enquanto isto não acontecer, não conseguire­mos sair deste problema.”

Há um ano referiu, numa entrevista ao DN, que a pandemia era uma ótima oportunida­de para se fazer mudanças no SNS. A falta de recursos humanos para assegurar as escalas das Urgências é prova de que nada está a ser feito nesse sentido?

O problema gravíssimo que vivemos agora era já um colapso anunciado no Serviço Nacional de Saúde (SNS). É um sinal da degradação existente. Repare, no final de 2021 havia 1,2 milhões de utentes sem médico de família e este número tem vindo a aumentar. Ou seja, tem havido um agravament­o da situação e um distanciam­ento cada vez maior da trajetória de objetivos anunciados e prometidos pelo governo da ‘geringonça’ e já pelo atual governo, que era dar cobertura plena em medicina familiar à população. Isto revela falta de planeament­o e de investimen­to, quer em meios profission­ais quer em meios técnicos. E, na minha opinião, esta falha na cobertura de médicos de família faz com que Portugal seja o país da OCDE com mais episódios de urgência per capita, resultando daqui também os atrasos na marcação de consultas hospitalar­es – neste ano houve um aumento nos pedidos de referencia­ção para primeiras consultas –, de cirurgias e, obviamente, num aumento das listas de espera. O governo da ‘geringonça’ e o atual governo prometeram investimen­tos nos recursos humanos e a correção da remuneraçã­o dos profission­ais, mas ainda nada aconteceu. Os casos relatados nas últimas semanas, Urgências de vários hospitais que encerraram por falta de médicos nas escalas, reportavam sobretudo à especialid­ade de ginecologi­a-obstetríci­a, mas o problema é estrutural. O que tem falhado na sua resolução ? Falta de planeament­o e de investimen­to ou também falta de vontade política? Têm falhado três coisas: gestão, planeament­o e investimen­to. Mas tenho de dizer aqui uma coisa: enquanto não se conseguir colocar a funcionar em colaboraçã­o o setor público com os setores privado e social – sem que o SNS perca a sua génese, porque é um pilar importante da democracia em Portugal e do nosso sistema social, juntamente com a educação –, não conseguire­mos mudar nada. O SNS é um pilar que temos de preservar, mas não o podemos preservar como há 40 anos. Temos de o preservar reformando-o e adaptando-o à modernidad­e. Enquanto isto não acontecer, não conseguire­mos sair deste problema. Mas também não conseguire­mos sair deste problema se não houver um pacto para a reorientaç­ão das Urgências.

Quando fala em pacto para a reorientaç­ão das Urgências, o que quer dizer especifica­mente? Quando não há recursos humanos suficiente­s numa determinad­a Urgência hospitalar, de forma a contemplar as normas deontológi­cas, de qualidade de cuidados e de segurança, obviamente que estas têm de fechar. Mas se houvesse um pacto de reorientaç­ão das Urgências, não seria preciso criarem-se comissões de acompanham­ento para se resolver a situação. As administra­ções regionais de saúde têm a competênci­a de orientar e gerir os hospitais da sua região. Não sei porque não o fazem. Até pode haver boas intenções na criação de mais uma comissão, como foi criada agora para a área da ginecologi­a-obstetríci­a, mas, na minha opinião, esta solução não vem trazer nada de novo.

E o pacto para as Urgências...

Se houvesse um pacto para as Urgências, sempre que um serviço de uma especialid­ade tivesse de encerrar e os casos que aparecesse­m fossem reorientad­os para outro hospital, este teria de ter os recursos humanos necessário­s para atender todos os episódios, porque sabemos que haveria maior afluência de doentes. Ou seja, uma reorientaç­ão das Urgências tem de ser acompanhad­a de recursos humanos. E sem um pacto para as Urgências isto não é feito.

Quer explicar melhor?

Quando se encerra uma Urgência, os poucos recursos que existem neste serviço ficam lá, enquanto os doentes são encaminhad­os para outro hospital, que não é reforçado nos recursos humanos e em pouco tempo acaba por ficar sobrecarre­gado e com o mesmo problema. Portanto, quando há o encerramen­to de uma Urgência, os recursos que lá estão devem reforçar a outra unidade. Esta medida não é tomada. E as boas intenções não chegam para resolver os problemas do SNS.

O que está a falhar?

Há uma desorienta­ção total nesta área. O governo continua a apagar fogos sem qualquer planeament­o. A situação atual do SNS não é uma surpresa para quem trabalha nele ou para quem a ele recorre. A situação era esperada por todas as condiciona­ntes que já referi: falta de planeament­o e de investimen­to em profission­ais e em equipament­os, deficiente cobertura dos cuidados primários e dos cuidados paliativos à população, falta de articulaçã­o entre os setores público, privado e social e, acima de tudo, por não ter havido uma reforma profunda na remuneraçã­o dos profission­ais do SNS, que tem de ser feita obrigatori­amente. Tudo indica que será aumentado o preço da hora extraordin­ária... Mas não é aumentando o preço da hora extraordin­ária que se resolve a situação. E os hospitais já estão a sentir as consequênc­ias dos aumentos definidos pelas empresas de outsourcin­g, com pagamentos em atraso e acumulação da dívida. O aumento da hora extra só vai provocar o inevitável aumento do preço cobrado por essas empresas, porque há um mercado de prestação de serviços médicos que gere os valores pagos por especialid­ade e região do país. Portanto, aumentar o preço da hora extraordin­ária não resolverá o problema. Não irá suprir a escassez de recursos humanos em algumas especialid­ades ou em todo o SNS. A falta de recursos humanos vai manter-se, quer nas Urgências quer nos serviços de internamen­to e até nas Urgências internas, sobre as quais não estamos a falar mas para as quais são precisos médicos para as fazer.

Este mercado de serviços médicos faz sentido no SNS?

É o que existe neste momento. E não é de um momento para o outro que o SNS poderá deixar de usar estes serviços, porque senão o desespero e o colapso do sistema seriam ainda maiores. Deixar de usar estes serviços terá de ser feito de forma progressiv­a. Mas temos outro problema gravíssimo na saúde que é: todos estamos de acordo em que o SNS é um pilar do Estado social, mas o SNS não pode estar refém das amarras ideológica­s. E em Portugal há uma amarra ideológica que nos tem prendido a algumas situações, fazendo com que avancemos e recuemos na mudança do SNS.

Que amarras ideológica­s? Avançou-se com as parcerias público-privadas (PPP), e estou à vontade para falar porque pertenci à pri

meira PPP no Hospital de Cascais. As PPP vieram trazer serviços assistenci­ais que nunca tinham sido dados a algumas populações, com hospitais novos em Braga, Cascais, Loures e Vila Franca de Xira e com uma poupança para o Estado da ordem dos 200 milhões de euros. As PPP era auditadas com regularida­de e tinham de responder perante as ARS e outras entidades de saúde sobre os parâmetros de qualidade que tinham contratual­izado com o Estado. Eram contratos de 10 anos negociávei­s, mas, se estavam a funcionar, porque carga de água se acabou com as PPP? Só porque a esquerda em Portugal exige que a parte privada não entre nas parcerias? Se isto não é decidir por amarra ideológica, o que é então?

Não foi pela avaliação feita aos cuidados prestados pelas PPP?

Não. Foi uma opção ideológica. Não tenho de a comentar, mas a verdade é que isto não resultou no desenvolvi­mento do sistema de saúde em Portugal. Estávamos a caminhar para um sistema global e esta decisão interrompe­u esse caminho e fez-nos retroceder alguns anos.

As PPP não sofriam do mesmo mal do SNS: falta de recursos?

Não tinham este problema. Havia uma maior flexibilid­ade na gestão, objetivos a cumprir e, obviamente, pagamentos diferentes, porque os profission­ais não têm de ser todos remunerado­s de igual forma. A remuneraçã­o tem de ser pela competênci­a, mérito, objetivos cumpridos e responsabi­lidade. Não podemos ganhar todos o mesmo, quer se faça bem ou mal ou quer se faça ou não faça. Tem de haver uma hierarquiz­ação, até para estimular os profission­ais que trabalham no SNS.

O problema da falta de recursos no SNS é só por causa da remuneraçã­o ou é por algo mais do que isso?

Vai mais além. Tem também a ver com a falta de planeament­o, de organizaçã­o dos serviços e as condições de trabalho. Olhe, para dar um exemplo, em 2000 foi divulgado um documento pelas autoridade­s de saúde sobre as metas para a saúde e uma saúde para todos, em que já se referia que, no ano de 2020, o fosso entre as idades dos especialis­tas mais velhos e dos especialis­tas que surgiriam nas gerações imediatame­nte a seguir seria grande. Ou seja, existiria um fosso entre os médicos que estão à beira da reforma, com mais de 60 anos, e os especialis­tas da geração seguinte, que têm agora 40 e poucos anos. Como é que nada foi feito em termos de planeament­o neste tempo? Por isso é que agora temos especialis­tas, e eu conheço alguns, como pediatras, que fazem Urgências de 24 horas dia sim, dia não, neonatolog­istas que fazem Urgências de 24 horas seis, sete e oito vezes por mês e colegas de outras especialid­ades que estão na mesma situação. Isto é esgotante. O que poderia ter sido feito? Poderia ter-se investido no SNS, nas universida­des, formando-se mais médicos e abrindo maior número de vagas para as especialid­ades. Naquela altura, deveria ter havido planeament­o e investimen­to nos recursos humanos do SNS, porque era o que a situação exigia, mas não houve.

Vinte anos depois, as escalas são assegurada­s por prestadore­s de serviços. É uma solução de remendo? Pode colocar em risco a prestação de cuidados aos utentes?

É uma solução de remendo. É um penso rápido para uma ferida que não pára de crescer. E o penso rápido nunca é bom para feridas grandes. Farto-me de dizer isto: o trabalho no SNS é um trabalho de equipa, o médico não atua sozinho, atua numa equipa que demora anos a formar. Portanto, não é muito positivo que essas equipas sejam desmantela­das ou que tenham curto-circuitos provocados pela saída de pessoas ou pela entrada de novos elementos. As equipas têm o seu tempo de adaptação. A solução dos prestadore­s de serviço até pode ser uma ótima solução, mas não é a ideal. A ideal é haver médicos no SNS que consigam cumprir as metas e os objetivos para os quais foram contratado­s. Isto é o importante. E existem instrument­os de gestão que permitem funcionar assim. Quais?

Os centros de responsabi­lidade integrada (CRI). Aliás, na minha opinião o SNS e as suas especialid­ades têm de evoluir para este novo mecanismo de gestão. Sou diretor do primeiro CRI, que formámos no CHULC há um ano. É um CRI de trauma, mas neste tempo já se formaram outros e ao todo já temos sete. No CRI de Trauma temos cinco especialis­tas e 23 camas e num ano conseguimo­s operar cerca de mil doentes. Isto significa que há formas diferentes de gerir.

Este tipo de gestão é o futuro?

Em minha opinião, é. Obviamente que tem de haver disponibil­idade dos profission­ais de saúde para aderirem a este sistema, porque a adesão é voluntária, mas considero que tem grandes virtudes. A primeira grande virtude é para o doente, que é o centro de tudo, não é um doente de uma especialid­ade, mas de várias, a abordagem é multidisci­plinar e isso é muito importante. Depois tem objetivos a cumprir, que contratual­iza com os conselhos de administra­ção das unidades, como tempos médios para consultas e cirurgias, tempos para internamen­tos no pré-operatório e pós-operatório, número de infeções registadas, etc., tudo isto é contemplad­o nos contratos-programa entre os CRI e as administra­ções hospitalar­es. Por outro lado, já integra formas de premiar os profission­ais pelo que fazem, há incentivos, embora esta situação ainda tenha de ser aperfeiçoa­da, mas no seu conjunto tudo é muito positivo.

Já não é desafiante para os médicos trabalhare­m no SNS?

O setor privado paga melhor e dá condições de trabalho. No SNS, a sobrecarga de trabalho e a pressão que se vive nos Serviços de Urgência é muito grande. Exige que o especialis­ta faça mais do que o tempo normal definido e os médicos também gostam de operar doentes, de os seguir nas consultas, de discutir os casos em equipa, mas quando têm sobrecarga de trabalho nas Urgências isso não é possível e, obviamente, não os realiza. Por outro lado, todas as pessoas gostariam de poder conciliar a atividade profission­al com a vida familiar, o que é cada vez mais difícil neste momento no SNS. E os médicos acabam por recorrer a outras soluções, como o privado.

Se não forem feitas mudanças no SNS, o que poderá acontecer?

Se nada for feito, o que acontecerá é o que ouvi o Sr. Presidente da República dizer, que é “a questão de fundo” continuar a “ser empurrada com a barriga para a frente”. Esta expressão é o protótipo da ação dos governos socialista­s e do da ‘geringonça’, o que é mau. É confranged­or, porque há unanimidad­e nas correntes políticas em relação à existência do SNS. E se há, porque não é possível um pacto para a reforma de que necessita o SNS? Se não se faz é porque não há vontade política ou então há outros constrangi­mentos que desconheço em absoluto.

“O trabalho no SNS é de equipa, o médico não atua sozinho, atua numa equipa que demora anos a formar. Não é positivo que essas equipas sejam desmantela­das ou que tenham curto-circuitos provocados pela saída de pessoas ou pela entrada de novos elementos.” “As ARS têm a competênci­a de orientar e gerir os hospitais da sua região. Não sei porque não o fazem. Criar uma comissão de acompanham­ento para resolver a situação não vem trazer nada de novo.”

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