Rui Couceiro
“A obra de Eça ou de Pessoa resulta de milhares de leituras e não só da escrita deles”
INESPERADO É o que se pode desde já afirmar do romance Baiôa sem data para morrer, do mais recente autor a chegar à ‘praia’ da literatura: Rui Couceiro. Inesperado também porque, sendo editor, pertence a uma classe profissional de onde desde sempre pouco se espera quando se substituem aos escritores que publicam. Inesperado ainda porque a primeira obra tem história e fôlego para atingir as 447 páginas e não desilude.
Numa época em que a ficção perde leitores, Rui Couceiro (n.1984) apresenta o seu romance de estreia aos leitores. Baiôa sem data para morrer incorpora uma pulsão da atualidade logo de início em bastantes referências às tecnologias digitais, tema pouco habitual em romances que se levam a sério, onde o telemóvel é reduzido ao mínimo, bem como o googlar ou as redes sociais. O autor não evitou esta contemporaneidade e escolheu essa forma para desenhar a sociedade atual, aquela que está comprometida – e aposta – na desertificação do interior e no criar de um cemitério de vivos-mortos, com que pouco se importa.
O território do romance é o Alentejo mas poderia ser, diz o autor,Trás-os-Montes ou as Beiras, onde este retrato é cada vez mais a preto e branco e tornou desnecessária a cor devido à repulsa de outras identidades.
O protagonista é o próprio narrador, jovem professor desiludido e que precisa de outra vida que não aquela em que está posto, socorrendo-se de um enorme conjunto de personagens secundárias que povoam a história. Baiôa destaca-se entre elas e torna-se o parceiro principal de uma narrativa em que, tal como o autor, é alguém que tem muito para pôr cá fora.
Sem levantar muito o véu sobre o conteúdo, pode adiantar-se que Baiôa pretende contornar o fim anunciado da sua terra, Gorda-e-Feia, obstinando-se em caiar as casas abandonadas e em iludir a perceção de um fim certo. A ilusão divide-se pelo coro de atores que vão subindo ao palco das páginas e que são explorados na sua intimidade – nunca esquecendo também as suas desilusões –, de modo a exigir que o leitor ponha um pé longe do outro, o citadino, em que se teima em manter.
O truque literário surgirá a meio, quando se começa a explicar o título, devido ao intento de atrair gente nova para compensar a que está numa lista de mortes bem datadas. O destino de Baiôa e do narrador, o que luta e o que relata, surge lá para o fim e até admite uma continuação. Afinal, Baiôa é o único em que o convívio repetido com a morte cria um apego incomum à vida.
Numa época em que a literatura portuguesa se esconde frequentemente de uma localização geográfica para poder ser lida pelo resto do mundo, Baiôa inverte esse erro e valoriza uma realidade que pode ser fundamental para a ficção. Nada que tenha passado despercebido a, por exemplo, Gabriel García Márquez, que se internacionalizou por via do mais recôndito lugarejo do seu país; ou Homero, que foi tão local que se tornou global. Como está dito, num dos diálogos (p.144), “Nós não somos nada”. Daí que o registo encontrado para este romance confirme o facto de que, se a literatura não cumprir a sua função, a própria morte é tão certa como a das personagens de Rui Couceiro.
Baiôa chegou às livrarias na passada quinta-feira e foi apresentado no Porto pelo escritorValter Hugo Mãe.
Amanhã, dia 28, será em Lisboa, na Casa do Alentejo, por Alberto Manguel, o mesmo lugar onde há pouco mais de quatro décadas José Saramago lançou Levantado do Chão, o seu primeiro grande sucesso, também com um cenário alentejano.
Este é um romance de um autor de que ninguém esperava ver o nome na capa. O que o fez dar o primeiro passo?
Em primeiro lugar, a vontade que tenho desde sempre de publicar. Escrevi toda a vida – e muito antes de ser editor –, mas durante muito tempo achei que não fazia sentido publicar. No entanto, a partir de determinado momento, bastante incentivado por pessoas cuja competência reconheço, achei que poderia fazer sentido. Dê-lhes o livro a ler e a decisão foi de avançar.
Uma inspiração inesperada ou estava em gestação há muito tempo?
Escrevi a primeira versão do romance entre os 25 e os 28 anos, mas o resultado desanimou-me. Considerei que a narrativa estava tão aquém do que queria para um romance que desisti do projeto e dediquei-me a um doutoramento. Fiz a investigação, escrevi a tese, mas havia uma situação que se repetia: chegava a casa e a vontade para a escrita académica era em muito inferior à da ficção. O meu pensamento guiava-me constantemente para as personagens e para a história que queria contar.
Era tempo de fazer uma nova versão?
Sim. O curioso é que nessa altura já me sentia mais capaz. Tinha feito outras leituras e escrito mais. Não usei a primeira versão – guardei-a para um dia me rir dela –, antes reescrevi o livro desde o princípio. Com muita coisa que não existia na anterior, pois um mínimo de oitenta por cento é novidade.
Ao fim das 447 páginas, percebe-se que é de alguém que tem muito para pôr cá fora…
Tenho outras coisas escritas e mais vontade de escrever; se as publicarei ou não ainda é cedo para decidir. Estou a trabalhar noutro romance, tenho vários contos prontos, textos de não-ficção finalizados… a razão é apenas uma: gosto de escrever.
Dado o estado letárgico da literatura portuguesa atual houve uma preocupação em montar uma história que marcasse os leitores?
Não concordo. Considero que temos excelentes ficcionistas, designadamente alguns da minha geração, que me entusiasmam. Creio sim que o problema estará no baixo consumo de ficção em Portugal, números que têm vindo a cair drasticamente nos últimos anos, uma situação que não contribui para se reconhecer o trabalho de muitos deles. No meu caso, pretendi dar resposta a uma vontade própria e fazer um livro que me desse prazer em ler – esse foi o meu único critério durante os últimos anos –, daí que as características deste romance sejam aquelas de que gosto na ficção.
No capítulo 10, ao acordar, o protagonista toma notas no telemóvel sobre os seus sonhos. Também fez o mesmo durante a escrita?
Sim, fiz muito disso durante os anos que levei para escrever o Baiôa. A minha vida enquanto editor não me permite uma grande disponibilidade de tempo e quando me lembrava de pormenores, diálogos, situações, que fariam sentido no romance, obrigava-me a anotá-los de imediato para não me esquecer. Tanto no telemóvel, como faz a personagem, como num caderno que tenho, sendo que ao fim de semana, quando estava de folga, começava por organizar esses apontamentos tomados durante a semana. Ordenados, aí sim, dedicava-me a escrever. Lia o que havia de mais recente e arrancava a partir daí.
Escolhe um território, o Alentejo, onde existe “o hábito do silêncio forçado”. Como foi pôr as personagens a falar?
Essa é uma informação do narrador, que é alguém citadino e é obrigado a habituar-se a um contexto que não é o dele. O cenário é rural, de desertificação, onde impera o silêncio e uma aparente ausência de ação e de acontecimentos. O que creio que ele demonstra com este relato é que esse silêncio e quietude trouxeram uma profunda alteração à sua vida e uma agitação que mostra que os lugares mais esquecidos e a desaparecer, como é esta aldeia, têm muito para dar a quem mora na capital e, na maior parte das vezes, ignora estas geografias mais longínquas.
Há uma grande idealização da natureza, que até pode fazer lembrar Thoreau. É intencional?
O meu objetivo era mostrar um certo deslumbre do narrador com uma realidade que desconhece; enquanto autor, queria uma personagem que descobre a natureza, a beleza até a ausência dela. Ou seja, desejava a exposição de uma realidade que o narrador desconhece, mas pela qual tenho um apreço grande.
O narrador é o protagonista também, que opta por esse “exílio” em vez de uma carreira docente. Por que razão o faz escravo das novas tecnologias, como o telemóvel e as redes sociais?
Na verdade, vai para lá por sugestão da mãe e da psicóloga com quem faz terapia. Essa é uma quase obsessão que reflete a de uma maioria de pessoas que vivem em permanente ansiedade e dependência tecnológica. Ele próprio confessa muitas vezes que cai na tentação de procurar no telemóvel o que há de novidade, sendo que tal se reflete na incapacidade de dormir e em sofrer de insónias. É uma pessoa que vivia na cidade em solidão e, ao ir para um local aparentemente mais solitário, encontra o oposto dessa situação. Daí que se possa dizer que, além de ser uma história de amizade, é também de reencontro com a vida, pois confronta-se com uma socialização que as grandes cidades dificultam.
Escreve-se, a dado momento, que é possível encontrar a felicidade no interior ao voltar as costas à “civilização”. A povoação de Gorda-e-Feia é essa resposta ou não passa de um pretexto para o que interessa à narrativa?
Não quero dar uma receita, se é que há alguma, nem existe uma tentativa de passar uma mensagem. A história aconteceu desta forma e a leitura que cada um fizer é de sua responsabilidade, isolada e indepen-dente da vontade do autor.
A Ti Zulmira é alguém que conta “histórias em fila indiana e sem parar”. É real?
As personagens não são inspiradas em ninguém da vida real. Isso só aconteceu parcialmente na figura de Baiôa, principalmente no nome, um sucateiro que conheci em 2009 em Palmela. Apropriei-me do seu apelido e rosto. Esta é a única ponte entre a realidade e a ficção, nada vem da minha experiência pessoal.
Vamos ao método de criação. Ataca a página em branco de cada vez que começa ou existe, por norma, uma história já muito estruturada?
Os acontecimentos vão surgindo e são episódios que posteriormente se encaixam à medida que escrevo. Não tive a história à partida. Sim, no que respeita ao ambiente onde a queria situar. Sabia que certas coisas iriam acontecer, mas não dominava o resultado final, que é completamente diferente do que imaginei ao início – por exemplo, a partir do momento em que me apareceu o Dr. Bártolo, médico que possui uma lista que mudou radicalmente o curso da narrativa. É uma construção como a de um castelo de cartas em que, à medida que as ia colocando umas sobre as outras, acrescentava novos níveis. Existia um único pressuposto, o de que Baiôa não deixaria morrer aquela aldeia e, por isso, reabilitava de forma simbólica as casas antigas para evitar que a povoação se extinguisse. No fundo, o lugar onde vivia era a sua vida e as memórias que não queria perder.
Conhece bem o Alentejo ou foi necessária uma investigação?
O livro não resulta de uma grande investigação, até porque fugi dela pois queria liberdade. Servi-me do meu conhecimento para ambientar a história, mesmo que aqui e ali tivesse de confirmar dados geográficos para tudo bater certo. Tenho uma ligação com este Alentejo que permitiu contar a história sem fazer um retrato – não o queria fazer. Até poderia passar-se noutro interior, por exemplo Trás-os-Montes ou nas Beiras, mas desejava uma associação ao suicídio – foi assim que tudo surgiu – para que fizesse sentido. Quando imaginei Baiôa, ele mais não era do que alguém que passava o dia a caiar as paredes das casas para lhes devolver o branco.
Daí que refira, apesar de tudo à sua volta estar a morrer, que caiar as casas era “inútil mas belo”…
Havia nele um estoicismo e uma recusa de um fim, mesmo que a lista do médico apontasse a todos uma data para morrer, menos a ele. Está perante um dilema; desconhece quando vai morrer e, simultaneamente, teme que esse fim chegue sem dar por terminada a tarefa de recuperar uma aldeia em que todos estão velhos e que vai definhando ano após ano.
O que há de autobiográfico no livro?
Posso dizer que há pedaços de mim em todas as personagens, mas nada têm a ver comigo, com a minha história ou a minha vida. É ficção pura.
O protagonista faz uma autocrítica: a sua preocupação em documentar os acontecimentos faz perder o instante. É uma crítica à sociedade atual?
Sem dúvida. É um símbolo da nossa sociedade, que está refém do telemóvel, que fotografa ou filma, em vez de apreciar. No outro dia estava a ver imagens de um espetáculo que eram captadas por espetadores que em vez de assistirem ao concerto estão a filmá-lo. Não há, de momento, a fruição natural, mas a tentativa de construção de um cenário de fruição. Procuram passar uma imagem de prazer em vez de o terem por completo. O protagonista depara-se continuadamente com esse dilema por ser desta geração que cresceu com o telemóvel na mão e como uma extensão do próprio corpo. A tecnologia transformou-se numa das pontes com a atualidade.
A única personagem culta é um inglês, o Mr. Beardsley!...
Não é bem assim, as personagens não são ignorantes, pelo contrário. A Ti Zulmira é uma mulher que utiliza a internet, apesar de ser idosa, e que aprendeu sozinha – o grande dilema da vida dela é a velocidade na internet –, e o Baiôa lê e está informado. É preciso perceber que o contexto em que tudo se passa é o campesino, não podia ser muito diferente ou tornava-se pouco credível.
O editor esteve sempre ausente do processo de criação do escritor ou tentou intrometer-se?
Na maior parte do tempo consegui não me policiar enquanto escrevia. Foi um desafio em certos momentos, mas ao entrar de forma mais profunda na escrita o editor estava a milhas de distância. Quis dar-me o direito à ficção e, por isso, deixei o profissional no escritório para não deixar estar presente alguém mais do que o autor. Depois, claro, na fase de revisão, aí o olhar foi mais o do editor. Era obrigatório.
Quais as suas grandes influências literárias?
Posso dizer dois ou três escritores: Italo Calvino, José Saramago e Laurence Sterne. São os que me dizem bastante, os que têm muito a ver com o que gosto na ficção: a imaginação. Há uma frase interessante do Julian Barnes em que diz que a literatura é a melhor maneira de dizer a verdade. Eu, no entanto, diria que a mentira – a ficção – é a melhor maneira de dizer a verdade. O Umberto Eco também dizia que, embora aceitássemos alterações de verdades históricas que tomamos como factuais, ninguém pode negar o que acontece no domínio da ficção. Portanto, a ficção pode conter mais verdade do que a própria realidade. Isso interessa-me muito e os autores que me oferecem esse jogo ficcional também. A ficção é inocente, não é território de corrupção ou de burla, porque ao que ali está a nascer não interessa se é verdade e sim que funcione.
Este é o romance de estreia. Como será a reação?
Estou numa fase de aprender sobre este livro e tenho curiosidade em perceber o que é que os leitores vão achar dele. Ou seja, primeiro havia uma intenção, agora preparo-me para a fase em que os leitores vão ensinar-me sobre o livro. Sei o que quis fazer, não o que realmente fiz. Cabe aos leitores esse entendimento, como aconteceu com a obra de Eça ou de Pessoa, que resulta de milhares de leituras e não só da escrita deles. Um livro tem a dimensão da escrita e a da leitura, portanto estou perante a fase da perceção do leitor.
Como se chama o narrador protagonista?
Não tem nome! Se atentarmos ao final do romance, será fácil compreender a razão dessa ausência.
O romance Baiôa sem data para morrer certifica que o país exterior às grandes cidades não é apenas paisagem. Afinal, a humanidade também se fez por aí.